PACIÊNCIA COM DEUS (1)
Frei Bento Domingues, O.P.
1. Há pessoas que falam da vontade de Deus e dos seus desígnios, com tanta certeza e desenvoltura, que até parece que Deus lhes lê o seu jornal todas as manhãs. Fico, depois, perplexo com o recurso ignorante a certas construções teológicas acerca da vida interna da SS. Trindade, como se andassem nos corredores de um museu de antiguidades. Não posso deixar de admirar essa arrojada arquitectura mental, cheia de subtilezas, para que o mistério da divina unidade na trindade das pessoas não surja como um absurdo, no contexto da sua recepção na cultura grega. Admito que esta concepção possa ajudar a acolher e cultivar a unidade plural nas nossas sociedades e no mundo em geral. Não tenho, todavia, paciência para a racionalização neutralizante da vida das metáforas. Ao perderem a sua energia poética passam a ser conceitos de nada. Tenho diante de mim, uma curiosa imagem com três cabeças numa só. Coitada. Prefiro a sobriedade enigmática dos textos do Novo Testamento.
Ninguém pode, no entanto, ser proibido de imaginar o mundo divino segundo os recursos das suas tradições culturais e religiosas, com a liberdade e ousadia criadoras dos artistas de cada época. A beleza do livro de Rebecca Hind[1] resulta da recolha esmerada de expressões artísticas na diversidade do mundo religioso. Nesta imensa diversidade, nenhuma obra pode pretender ser a expressão adequada de Deus e muito menos a sua fotografia. A verdadeira arte não fecha o mundo. Sugere universos que não cabem em conceitos e representações definidas. Não fixa, abre a imaginação. Fruto de uma grande viagem, este livro ajuda a visitar mundos que nunca podem ser circunscritos. Apenas modestamente sugeridos.
Entre todas as artes, aquela que menos distrai do infinito divino, por absoluta ausência de referente, é a grande música. A de J. S. Bach nasceu para nos dar o sentimento de Deus e dos mistérios cristãos. K. Barth prometeu que, ao chegar ao céu, iria pedir aos anjos para tocarem Mozart. Eduardo Lourenço, como sempre, sabe escrever destas coisas como ninguém[2].
2. Sob o ponto de vista cultural, viveu-se, no Ocidente, durante muito tempo, na ideia de que Deus tinha morrido e que nada o poderia ressuscitar. Como alguém observou, a notícia era exagerada. Passou-se, depois, à conversa sociológica do retorno do sagrado, da religiosidade flutuante, a propósito de tudo e de nada. A Europa laica acolheu, entretanto, uma imigração muito diversificada que alterou o seu panorama religioso e está a obrigar a rever os simplismos com que estava habituada a abordar esses universos.
A laicidade comporta três princípios fundamentais, com acentuações diferentes, segundo os países: a liberdade de ter, não ter ou mudar de religião; a defesa da igualdade de direitos e deveres, sejam as pessoas crentes ou não; finalmente, o princípio da autonomia do político e do religioso. Neste sentido, a laicidade tem sido considerada um fenómeno religioso europeu, com história diferente, segundo os países. Se a chamada Primavera Árabe tivesse podido beber nestes princípios fundamentais, em vez de os combater, não continuaria a invocar Deus para destruir os adversários, dentro e fora de portas.
3. Com um título algo surpreendente, Paciência Com Deus, Tomáš Halík[3], escreveu um livro que recebeu o galardão de “Melhor Livro Europeu de Teologia” de 2009/10 e, nos EUA, foi destacado como o “Livro do Mês”, em Julho de 2010.
O autor nasceu em Praga, em 1948, licenciou-se em Ciências Sociais e Humanas na mesma cidade, em 1972; estudou teologia na clandestinidade e foi ordenado padre, em 1978. Só depois da queda do Muro de Berlim, pôde completar os seus estudos de teologia. De assessor do cardeal Tomásek, figura emblemática da “Igreja do Silêncio”, foi conselheiro de Václav Havel. Além de várias vezes premiado, é professor convidado de prestigiadas universidades, Oxford, Cambridge e Harvard.
T. Halík escreveu uma obra de teologia, num estilo pouco habitual. Os grandes teólogos que ajudaram e elaborar os textos do Vaticano II e a lançar a teologia em novos horizontes, já são raros e idosos. Não admira que seja saudada uma teologia que continua a apresentar-se com perguntas antes de respostas feitas e que incita o pensamento a caminhar pelo mundo do desassossego, das interrogações e dúvidas, o território onde se vive a “paciência de Deus”, desse Deus que interrogou o interessante Zaqueu desta obra: “A fé – se fôr uma fé viva – tem de respirar; tem os seus dias e as suas noites. Deus não fala apenas através das suas palavras, mas também através do seu silêncio. Fala às pessoas não só através da sua proximidade, mas também do seu afastamento. Tu esqueceste-te de escutar a minha voz nos que experimentam o meu silêncio, a minha distância, nos que olham do outro lado, do vale de trevas, para o monte do meu mistério, escondido numa nuvem. Aí é que me devias ter procurado. A esses é que devias ter acompanhado, fazendo-os aproximar-se um pouco mais do limiar da minha casa. Era essa a porta especialmente preparada para ti.”
Voltarei a esta problemática.
07.07.2013
in Público
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