21 setembro 2012

Missão da Igreja num país em crise


Finalmente a Igreja portuguesa pela voz coletiva dos seus Bispos disse uma palavra relevante e sobre a situação de crise económica e social que o país está a viver.
Vozes dispersas e solitárias de vários quadrantes eclesiais, alguns Bispos, alguns responsáveis de organismos eclesiais como a Caritas e dos movimentos operários da Ação Católica, e ainda alguns leigos reconhecidamente católicos, tinham alertado para a gravidade da situação presente.

O silêncio incómodo da Comissão Nacional Justiça e Paz que apenas agora prepara uma posição pública, mostra bem como o jogo de forças e contradições em que estamos todos envolvidos, como cidadãos e como cristãos leva a opções distintas de interpretação do sentido dos sacrifícios que estamos a viver.

Retomemos pois o que é fundamental na Doutrina Social da Igreja (DSI); esta não é uma receita milagrosa para a solução dos problemas (bem jeito daria talvez), não é uma ideologia política com uma agenda de transformação imediata da sociedade, mas é apenas e isso é muito o relembrar dos princípios e dos valores fundamentais que toda a intervenção política, económica e social deve ter em conta se quer permanecer no nível básico de respeito pelos direitos humanos. Embora estes últimos sejam o fruto imediato da revolução francesa, na realidade mais não são do que as concretizações dos princípios cristãos do amor ao próximo e da proteção aos mais necessitados tendo como horizonte a condição de igualdade humana que todos partilhamos, a mesma família humana, una e diversa, mas fraterna.

Deixar-se levar na onda do capitalismo financeiro sem rosto nem legitimidade democrática que assola grande parte do mundo, procurando manter-se na crista da onda, qual surfista em equilíbrio instável, corre-se o risco de mergulhar de vez ou pelo contrário e com muita sorte passar os tempos de borrasca e sobreviver.

Só que os países, os Estados, são menos homogéneos do que a metáfora usada, não é a liderança política apenas que vive no mar encapelado, é o povo todo que procura não se afogar na situação. Gerir esse equilíbrio que é não só resultado de medidas económicas e financeiras para saldar parte da dívida aos nossos credores mas é igualmente o procurar consensos sociais que são um dos pontos nevrálgicos de qualquer política que evite o abismo.

Nos últimos dias a coligação mostrou claramente as suas fragilidades, com discursos distintos sobre a bondade ou iniquidade da Taxa Social Única (TSU) a par da contestação dos barões de ambos os partidos sobre as medidas económicas e do seu efeito social, nas ruas foi o que se viu; uma manifestação só comparável aos tempos da revolução dos cravos. Já não se trata apenas das oposições do costume, com a contestação habitual de quem está quase sempre do contra porque não está no poder na ocasião.

A função simbólica do efeito da anunciada subida da contribuição dos trabalhadores para TSU, a par da sua correspondente diminuição para os empregadores, pensada pelo governo como benéfica para a economia (o que falta provar), é mais ou menos vista pelo comum dos cidadãos como “tirar o pão do pobre Zé Povinho para dar ao rico”, além do rombo financeiro no salário real dos trabalhadores que é obviamente muito pesado.

Ora este simbolismo tocou num ponto sensível da nossa condição de portugueses e, mais fundo ainda, na questão da equidade (ou falta dela) que se revela na situação atual. E estamos zangados, muito zangados, pois é a nossa dignidade de seres humanos que está em causa. Este estado de espírito não é bom sinal para ninguém, nem para as pessoas singulares nem para grande parte do povo.

Assim a DSI, como vem bem explicado na Nota pastoral remete para a reflexão de áreas sensíveis, de valores éticos, que todas as medidas políticas devem respeitar, a saber;

“Prioridade na busca do bem-comum
Direito ao trabalho
Estabilidade política
Respeito pela verdade
Generosidade na honestidade”

Em suma são os valores da “dignidade da pessoa humana, a solidariedade como vitória sobre os diversos egoísmos, a equidade nas soluções e na distribuição dos sacrifícios, atendendo aos mais desfavorecidos, a verdade nas afirmações e análises, a coragem para aceitar que momentos difíceis podem ser a semente de novas etapas de convivência e de sentido coletivo da vida.” 
Se conseguirmos respeitar estes princípios, talvez se recomponha o equilíbrio instável em que vivemos e o nosso tecido social, económico e político não se estilhace de vez.

Temos pois muito que fazer!

AFF

16 setembro 2012

Crónicas do Frei Bento Domingues dos dias 9 e 16

Política sacrificial
Frei Bento Domingues, o.p.
1. Conheci teologias que apresentavam e justificavam divindades que exigiam sacrifícios humanos. Algumas atreveram-se a fazer, da própria crucifixão de Jesus Cristo – um crime político preparado por instâncias religiosas –, uma exigência de pagamento da infinita dívida a Deus contraída pelos pecados dos seres humanos. Jesus mandou às urtigas essas teologias macabras. O seu Deus não quer sacrifícios humanos. É amigo da vida e só quer justiça e misericórdia. A conversão cristã consiste numa reorientação da existência pessoal, guiada pelo primado do dom, fruto do amor.
Agora, Victor Gaspar, ministro das Finanças, não se importa muito com as suas contas mal feitas, pois “a disponibilidade dos portugueses para fazer sacrifícios é muito grande” (DN 12.09.2012). Conta, também, com Passos Coelho, mais troikista do que a troika: quem não gostar que emigre e nada de lamechices.
Se é pelos frutos que se conhece a árvore, estamos aviados: 89% dos portugueses dizem-se afectados pessoalmente pela crise e 90% pensa que a maioria dos benefícios deste sistema só vai para alguns, alargando o abismo entre pobres e ricos.
André Macedo, Director de Dinheiro Vivo, pergunta: “onde é que isto vai acabar? Impostos altíssimos, desemprego explosivo, um governo possuído por modelos económicos de alto risco e que, agora, até na gestão da tesouraria das empresas se intromete. Porquê esta loucura?” (DN 12.09.2012). Manuela Ferreira Leite entende que se o país seguir a linha traçada, “não só não se atingem os objectivos, como o país chega ao fim destroçado”. Para Silva Lopes, este governo é “o Robin dos Bosques, ao contrário: tira aos pobres para dar aos ricos”.
2. Não podem ser ignoradas as tomadas de posição de D. Januário Torgal, Bispo das Forças Armadas, do Bispo de Viseu, D. Ilídio Leandro, e as homilias de D. Pio Alves, Bispo auxiliar do Porto, em Fátima nos passados dias 12 e 13.
Bagão Felix considera, no entanto, que a Igreja Católica, em nome da sua doutrina social e da “opção preferencial pelos pobres”, é chamada a pronunciar-se sobre as medidas de austeridade, “não apenas através de vozes isoladas, que nem sempre representam a instituição”, mas “como um todo”. Para Manuel Pinto, da Universidade do Minho e conhecido militante católico, “começa a ser ensurdecedor o silêncio da Conferência Episcopal Portuguesa sobre a gravidade da situação social e económica em Portugal” (Blog Religionline, 09.09.2012).
Alguns amigos mostraram-me a vontade de propor à Conferência Episcopal Portuguesa uma manifestação nacional para alterar as políticas que sacrificam sempre os que deveriam ser mais beneficiados. Como o país não é do governo e o governo foi eleito, baseado num programa que despreza, seria preciso levá-lo a ganhar juízo.
Não escondi as minhas reticências, embora não seja um propósito a excluir. Convém, no entanto, que não seja um duplicado das diversas manifestações anunciadas para os próximos tempos. Antes de mais, não podem ser um meio para manipular a fé dos católicos e surgir como uma espécie de partido ou associação política confessional. Seria pior a emenda que o soneto. Se resultasse nisso, preferia ver a Conferência Episcopal calada na sacristia. Mas existem muitas formas de manifestação de defesa dos mais pobres e empobrecidos sem cair nessa confusão e sem pairar nos grandes princípios ou nas “caridadezinhas” que ofendem a virtude teologal da Caridade, inimiga da propaganda.
3. Não poderia, por exemplo, a Conferência Episcopal promover, através das paróquias e das dioceses, dos movimentos e associações católicas, vigílias de oração e aprofundamento das incidências do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja, na situação actual, convergindo depois tudo para a peregrinação nacional a Fátima nos próximos dias 12 e 13 de Outubro?
Com estes gestos e iniciativas estaria a seguir a liturgia do passado e deste Domingo. Liturgias de cura da cegueira, da surdez e da fala. A Eucaristia é para não esquecer a memória da prática de Jesus. No coração de todas as Eucaristias do mundo, somos avisados: “Fazei isto em memória de Mim”. Traduziria assim: conservai diante dos olhos, em todas as épocas, em todas as situações, aquilo que foi a minha prática; tereis de fazer ainda coisas maiores, os tempos serão sempre outros, sempre com novos desafios; mas vede sempre o mundo, a história, as sociedades, as organizações culturais, económicas, políticas e sociais a partir dos mais pobres, dos excluídos, de modo local e global.
Um adágio antigo dizia que se deve rezar conforme a fé cristã. Hoje, na missa, S. Tiago vem com esta: “de que serve alguém dizer que tem fé se não tem obras? Poderá essa fé obter-lhe a salvação? (…) A fé sem obras está completamente morta. Mas dirá alguém: Tu tens a fé e eu tenho as obras. Mostra-me a tua fé sem obras, que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé”.
São perversas as teologias e as políticas sacrificiais. O amor do sacrifício é uma doença. Um chá de tília espiritual não é o mais indicado para multiplicar e alimentar grupos de investigação e debate que desenhem alternativas políticas viáveis, postas ao serviço de quem as quiser usar, sem direitos de propriedade.
in Público 16 de Setembro

O direito absoluto é o direito a ter direitos
Frei Bento Domingues, O.P.
1. Dizia um anjo, desesperado na sua missão iluminista, a outro vestido de ortodoxia que não aprendia nada com ninguém, nem sequer com as liberdades de Jesus Cristo em relação às regras da moral convencional: “Mói um estúpido com trigo num almofariz e nem assim conseguirás arrancar-lhe a estupidez” (William Blake).
Dizem-me que esta experiência poderá ser verificada tanto no âmbito da estupidez religiosa como no da política. Talvez. Mas daí não se segue que todos os mundos religiosos e políticos estejam condenados a repetir os mesmos erros. Alguns dos que conheço melhor, quando não teimam em fechar-se dentro dos seus fantasmas e ilusões, dispõem de grandes fontes de transformação do indivíduo e da sociedade. Não cabem neste espaço as provas históricas de verdadeiras e falsas reformas nas igrejas cristãs. São memórias de santos, de mártires e déspotas.
2. Morreu o Cardeal Martini e António Marujo já evocou a sua memória neste jornal. Seria insignificante dizer que é uma memória incómoda para muitos, por razões diversas. Dizem uns que era um disfarçado lobo na Igreja católica, opondo-se em diversas tomadas de posição às modificações que João Paulo II e Bento XVI introduziram para corrigir os desmandos abertos pelo Vaticano II. Agora, terá de prestar contas a Deus. Para outros, foi sempre alguém que desejava reformas na Igreja, que iam além do Vaticano II, mas só as formulou, de modo frontal, quando já eram a voz de um velho aposentado e doente. Não as fez quando podia desencadear, no interior das estruturas eclesiásticas, mudanças que dizia urgentes, pois “a Igreja está atrasada 200 anos”. Outros ainda acrescentam: mais vale tarde do que nunca.
É evidente que preferimos projectar nos outros aquilo que nos compete dizer e fazer. Dou graças a Deus por esta grande figura. Espero que se acabe com anátemas contra aqueles que sustentam aquilo que o cardeal Martini, na última fase da sua vida, defendeu e reprovou ou, então, que haja a coragem de o declarar herege e cismático. Sei que já Cristo se queixava do costume de, primeiro, matarem os profetas e, depois, levantarem-lhes monumentos, sem deixarem de repetir o crime.
Não tenho nenhuma receita para as reformas que julgo urgentes. O tempo não espera sentado. Quando forem reconhecidas, poderá ser irremediavelmente tarde.
Alexandre Soares dos Santos, numa entrevista a Ana Bela Mota Ribeiro, deixou cair alguns “pingos amargos” sobre uma questão sentida por muitos: “por que é que a Igreja é tão lenta a reformar-se? São coisas que discuto com o bispo D. Manuel Clemente. Por que é que não se devem admitir mulheres padres? Por que é que a Cúria Romana é constituída por uns tipos que têm 80 anos, que não sabem nada da vida, que estão ali fechados?”
3. Participei, em Agosto, na paróquia de Ribeira Seca (Madeira), na celebração, impressionante de beleza e verdade, do 50º aniversário da Ordenação Sacerdotal do padre José Martins Júnior, uma figura polémica incontornável da Igreja da Madeira e da intervenção cívica e política a favor dos oprimidos. Esteve sempre atento à parábola de Jesus que não aguenta a exibição do luxo perante a miséria do pobre, seja onde for.
Nasceu no Machico em 1938. Foi ordenado por D. David de Sousa a 15 de Agosto de 1962. Foi professor no Seminário Menor, pároco de Porto Santo, coadjutor da Sé do Funchal, capelão militar em Moçambique. Voltou à Madeira em 1969, como pároco da Ribeira Seca.
Depois do 25 de Abril, foi deputado na Assembleia Legislativa Regional como independente, nas listas da UDP. Em 1977, é suspenso “a divinis” pelo bispo D. Francisco Santana, sem processo canónico formado. Em 1980, recandidata-se e é eleito novamente deputado. Presidiu à Junta de Freguesia de Machico. Em 1985, a Igreja da Ribeira Seca foi tomada de assalto, por 70 polícias armados, a pedido do governo e da diocese, mas também sem qualquer mandado judicial e sem processo formal. Presidente municipal de Machico, por duas vezes. Recebeu, em 1995, das mãos do Presidente da República, Dr. Mário Soares, as insígnias de Comendador, no Dia de Portugal. Deputado à Assembleia Legislativa Regional, como independente, nas listas do PS, até 2007. Deu, então, por terminada a sua actividade política activa.
Continua a exercer o sacerdócio, em consonância com o povo sediado na Ribeira Seca, numa igreja e residência feitas exclusivamente a expensas da população local.
Recolho estas breves referências de um livro, Olhares Múltiplos sobre um Homem de Causas, com textos de amigos e admiradores, a começar por um, muito belo, de Mário Soares, apresentado na igreja da Ribeira Seca, por Anselmo Borges, de forma brilhante.
As celebrações desenvolveram-se ao longo de uma semana, porque a cronologia que apresentei pode dar a ideia de uma figura só política e eclesiástica, mas o padre Martins Júnior é, em tudo, um grande homem de cultura, da música e do teatro, um pedagogo de jovens e crianças, para que a memória viva de Jesus Cristo seja uma fonte permanente de recriação da Igreja e da sociedade.
O direito absoluto é o direito a ter direitos, seja na sociedade seja na Igreja. É um absurdo eclesiástico continuar a não os reconhecer ao padre Martins Júnior.
in Público 9 de Setembro

29 julho 2012

PÃO PARA TODOS

Estou a lembrar-me de professores e investigadores como Jeffrey Sachs, Joseph E.Stiglitz, Abhijit V. Baneerjee/ Esther Duflo, Paul Krugman, etc.. Se isto não acontece, seria interessante identificar os interesses que ganham com a crise e a consideram uma grande oportunidade de negócios. As indústrias envolvidas nos incêndios não podem ser as mais preocupadas em convencer os governos e particulares a investir nos cuidados da prevenção ao longo do ano.      
2. Portugal faz parte de uma paisagem humana muito vasta. Aproximemos alguns números disponíveis referidos por Carlos Borrego (Brotéria 5/6 p. 449). Se o mundo tem agora 7 mil milhões de pessoas, em 2050 terá 9 mil milhões. Se a natalidade, mesmo em países como a África está diminuir, este aumento populacional será feito com idosos.
        Neste momento, 1,4 mil milhões vive actualmente com cerca de 1 euro por dia ou menos; 1, 5 mil milhões de pessoas no mundo não tem acesso à electricidade e 2,5 mil milhões não tem tratamento de esgotos. Quase mil milhões passam fome.
     Leonardo Boff, um famoso eco-teólogo, pergunta-se se não estaremos perante a crise terminal do nosso modo de viver. Diz que foram encontradas 25 formas diferentes para destruir a espécie humana. Como a humanidade e a terra estão interligadas de forma indivisível, tudo é afectado pelas mudanças climáticas. Estamos a chegar ao fim da matriz energética baseada em produtos fósseis – petróleo, gás e carvão – o que obriga a procurar fontes alternativas e limpas e, mesmo assim, serão insuficientes para sustentar o nosso tipo de civilização. A tragédia social não é menor. As três pessoas mais ricas do mundo possuem activos superiores a toda a riqueza dos 48 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas; 257 pessoas sozinhas acumulam mais riqueza do que 3 biliões de pessoas, o que equivale a 45 por cento da humanidade. Resultado: 1, 2 biliões de pessoas passam fome e outros tantos vivem na miséria. Leonardo Boff, de quem recebo estes números, sem os ter ido verificar a outras fontes, acrescenta que, no Brasil, cerca de cinco mil famílias possuem 46 por cento da riqueza nacional.
     3. Os números apresentados neste texto são conhecidos. Tornou-se, aliás, um lugar-comum dizer que, também em Portugal, cresce o abismo entre os poucos muito ricos e os muitos muito pobres. A Doutrina Social da Igreja, acerca do destino universal dos bens, é outro belo lugar-comum, do qual nada se espera.
A consciência ética começa quando chegamos à conclusão de que o mundo como está é uma vergonha, mas não é uma fatalidade. Jesus Cristo não deixou nenhuma receita automática para vencer este escândalo. Como se pode ler no Evangelho de S. Lucas, Jesus não alinhou nem com o regime de austeridade de João Baptista, nem com o estilo de vida do rico avarento. Gostava da vida, de comer e de beber, como toda a gente que tenha os sentidos bem apurados. Até lhe chamaram glutão e beberrão (Lc.7 e 16). Não suportava ver uns à mesa e outros à porta. Era a partir dos excluídos que encarava a transformação da sociedade.
Hoje, na Eucaristia, é lida uma narrativa da multiplicação dos pães e dos peixes. Já serviu para boas peças de humor. Tudo o que está escrito no Novo Testamento é para a nossa alegria.
Nos Evangelhos, os milagres não são reportagens. São parábolas. Faz-se uma coisa para dizer outra e para que os discípulos façam coisas ainda maiores. A aclamação e a meditação da leitura da multiplicação dos pães podem ter muitos efeitos: primeiro, não tem efeito nenhum; segundo, pode incomodar-nos, mas não muito; terceiro, pode abalar-nos. Quarto, pode tornar-nos militantes. Quem tem ouvidos para ouvir, oiça.
Até Setembro.

Frei Bento Domingues, O.P.

26 julho 2012

Olhar de Deus sobre Nós, Simpatia e Amor

1. Levada em pensamento pela tese de Karen Armstrong, retomo o Evangelho de São Mateus “Tudo o que desejais que os outros vos façam, fazei-o também a eles.”(7-12) Eu tinha começado a ler o livro “Doze Passos para uma Vida Solidária”(ed.Temas e Debates), desta autora que foi freira, é historiadora das religiões e defensora da liberdade religiosa, consagrada pelos mais importantes prémios internacionais pela sua obra e personalidade. Karen Armstrong viaja pelo mundo, faz conferências, é protagonista nas televisões. Neste livro, ela evoca as religiões mais importantes para propor a prática da Regra de Ouro: “Fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem,” e assim desenvolve a ética da compaixão em doze passos crescentes, ou outras tantas atitudes nas situações que enfrentamos no dia a dia. Situações muito concretas, em simultâneo profundamente espiritualizadas se as integrarmos num contexto mais amplo. Karen Armstrong recorre a citações, recorda conselhos, relembra conversas. Ensina como cada um se deve amar a si mesmo para poder amar os outros. Leva-nos a experimentar a condição de um outro alguém, das suas perdas, angústias, aflições, para poder praticar a compaixão. Diz que começando pelo mais próximo na casa, se poderá partir para a família, os amigos, o país, o mundo. A sua tese ajuda a humanizar os nossos atos. É um modo de entender, em perspetiva de fé, a palavra do Evangelho. Vale a pena lê-la e sublinhá-la.     

2. Dou por mim em lágrimas, oiço as notícias, os depoimentos, os comentários. E vejo as imagens. A televisão não pede licença para entrar na casa. Passo horas aqui, no silêncio de que preciso para trabalhar o ponto e a vírgula. E descubro-me na balbúrdia do silêncio, que me traz o discurso interior, mais fértil às vezes na solidão. Vejo o empobrecimento, as falências no meu bairro, as queixas, os justos lamentos. Assisto á greve dos médicos e ao protesto dos professores no dia de hoje, há multidões a sair à rua, a gota de água está aí, na nossa gente. Não sei o que mais me emociona e desgosta, no tumultuado espetáculo do mundo. Oiço as notícias de barbaridades contra as comunidades cristãs na Nigéria e no Quénia, vejo os massacres na Síria, as multidões exaltadas no Egito e no Paraguai, pelo desagrado contra os presidentes depostos e o agrado pelos novos eleitos. Vejo os flagelados da fome e da seca no Nordeste brasileiro e os favelados do Rio ainda de luto pela destruidora chuva. Vejo os mineiros espanhóis em manifestação e os cidadãos russos em revolta. Os mortos e os feridos desfilam. Vivo a inquietude dos dias, que nos faz saber de tanta gente muito mal, tão perto, tão à nossa volta. Dou graças a Deus pela fé que me anima. Por ter aprendido que muitos outros períodos de sofrimento e desgraça passaram pela história da Humanidade, vou passando pelos textos, o Antigo Testamento é fértil em narrativas de tempos maus, o Evangelho é palavra de esperança.
 
3. Em casa dos meus pais, fazíamos muito o jogo da associação de ideias, talvez por isso haja em mim este gosto de tecer o que me vai pela cabeça, como um bordado de bastidor. Tomo, assim, e a propósito dos nossos atuais desgostos, a liberdade de ligar uma citação de Frei Bento Domingues ao nome de um Bloco de Carnaval no Rio de Janeiro. Por motivos diferentes. No seu recente artigo sobre o culto popular ao Senhor dos Desamparados e o seu Oratório em Guimarães, diz o Frei Bento: “ Ao longo dos tempos cresceu a convicção de que havia sempre alguém que tinha os olhos postos nos desamparados, o mesmo que conserva este costume, desde há dois mil anos.” E no Rio de Janeiro nasceu nos anos 80 o Simpatia é Quase Amor, em que eu desfilei, cantando um refrão em que estas palavras apareciam. Penso no olhar de Jesus sobre nós, puro amor no conhecimento destas horas más. E em vários momentos dos dias, vou também experimentando um tom de simpatia na fala com os outros. Forma pequena, tentada, de amor. Olhada, acima do mundo e no mundo, pelo Senhor, Senhor dos Desamparados, Nosso Senhor.

Leonor Xavier
12 de Julho de 2012   

22 julho 2012

O ESTADO DA IGREJA

        1. Este título é excessivamente pretensioso para um assunto tão vasto num espaço tão reduzido. Foi-me sugerido por uns amigos sobre um texto magnífico do blogue do padre António Teixeira, que transpõe o nome do debate, ”Estado da Nação”, para outro cenário e outro objectivo: “Por que razão não poderia a Igreja ter oportunidade de se congregar em torno do Pastor Diocesano, à volta de cada Pároco, para a partilha de ideias, de sonhos, preocupações, desafios, a ponto de todos e cada um dos cristãos se saberem e sentirem responsáveis e cúmplices, protagonistas e conscientes da missão comum de edificar a Igreja e construir o Reino de Deus - afinal a tarefa que o Mestre confiou aos Seus discípulos de todos os tempos (…). Nada teria a perder – bem pelo contrário - se usufruísse de tempos e espaços de maior diálogo, de alargada troca de experiências, dificuldades, êxitos e projectos. Para isso, importa distinguir categoricamente realidade da “unidade”, daquela outra, sempre pejorativa, de “conformismo”.
        Tanto no plano político como no religioso, é difícil a analise do presente fugidio, sem cair no estilo de jornalista ou de oráculo. Por outro lado, gastar o tempo todo a fazer autópsias do passado e a prometer ressurreições gloriosas para o futuro é, por vezes, uma fuga para não ver e questionar o que está diante dos olhos.
        2. A Igreja Católica é um mundo com modos de presença muito diversificados nas sociedades dos cinco continentes e na grande variedade cultural e social das comunidades de cada país.
        O centro do seu crescimento já não se encontra na Europa, embora o papa seja o Bispo de Roma e o chefe político de um pequeno Estado, o Vaticano, com um território de 40 hectares. Para uns, esta realidade é um instrumento precioso de independência da Igreja; para outros, embora sem o peso dos anteriores Estados Pontifícios - que duraram desde 756 até 1870 – acaba por situá-lo nos jogos da política internacional.
        Como Estado, é um sistema fechado, com grande dificuldade de auto-reforma. O que é transmitido pelos meios de comunicação acerca do que nele acontece - na banca, no tráfico de influências e no funcionamento da Cúria - afecta, a nível local e global, a imagem pública da Igreja e a credibilidade da sua transcendência divina.
        Os bispos do mundo inteiro são reformados aos 75 anos. O bispo de Roma, que além de chefe de Estado é o papa, o dirigente de toda a Igreja, em regime de parca colegialidade, não tem limite de idade para as suas funções. Valeria a pena meditar e conversar sobre essa estranha situação.
        Os bispos surgem à frente das dioceses, sem que os diocesanos tenham uma palavra a dizer. Os párocos são nomeados sem que os paroquianos possam interferir no processo da sua designação. O que a todos diz respeito deve ser tratado por todos, da forma mais responsabilizante. Quanto às modalidades e dificuldades nessa participação, nunca será um assunto resolvido de forma definitiva, mas também não pode continuar adiado.
       Sem o enfrentamento de algumas questões básicas, que se arrastam há demasiados anos, os programas da nova evangelização, das reformas da catequese, da pastoral da juventude e da família, do incitamento à participação nas celebrações dos sacramentos e especialmente da Eucaristia, são esforços louváveis para o relançamento espiritual, mas servem sobretudo para esconder e tentar esquecer problemas urgentes. Muitos católicos resolvem-nos abandonando a prática religiosa ou até a própria Igreja.
        Dito de forma mais explícita: sem o aprofundamento da ética social e sexual, sem a possibilidade de chamar mulheres e homens casados para os ministérios ordenados, sem a possibilidade de celebrar o casamento de divorciados recasados e de os incitar à participação plena na vida das comunidades cristãs, as instituições da Igreja perdem o presente e o futuro, enquanto sacramento, sinal e instrumento, da cura do mundo, isto é, o rosto visível da graça, da bondade e da misericórdia de Deus. Este caminho não tem nada a ver com “facilitismo pastoral”, cobertura da irresponsabilidade ou do vale tudo, pois sem conversão permanente não há Igreja que valha a pena.
       3. Para responder à pergunta sobre o “Estado da Igreja” no mundo actual temos de sair da sacristia e olhar para o que está a acontecer. Como observa Jean-Claude Guillebaud (Cf. La Vie – Le Monde 2012), desde o começo dos anos 80, vivemos quatro revoluções ao mesmo tempo: uma revolução económica, com a mundialização; uma revolução numérica e cibernética que deu à luz um quase-planeta, um sexto continente; uma revolução genética, que transforma os fundamentos da humanidade, as nossas relações com a vida, com a procriação e com a genealogia; uma revolução ecológica, com a tomada de consciência de que não nos podemos desenvolver como se fazia, desde há milénios. Por estas quatro razões, vivemos uma mudança, talvez tão importante como a revolução neolítica, há 12 mil anos (…), na qual o ser humano passou "de parasita a sócio activo da natureza", por vezes, também a seu agressor.
Perante estas esperançosas e assustadoras revoluções, o estado da Igreja terá de ser o de escuta e intervenção, para oferecer a todas as pessoas de boa vontade a sua gramática da transcendência da vida humana.
Frei Bento Domingues, O.P.

21 julho 2012

Se não comungas, não lês


De atitude decidida, caminhava com passos seguros em direcção ao altar. Inclinou-se, dirigiu-se para o ambão e passou o olhar pelas duas páginas do livro para se assegurar onde começava a segunda leitura. Mas a primeira palavra que iria pronunciar ficou-lhe suspensa na abóbada do céu-da-boca. A voz do padre sobrepôs-se: Francisca, tu não lês porque não comungas. Ela abriu um pouco mais os olhos grandes que Deus lhe ofereceu e sorriu com uma certa doçura na direcção da assembleia. Saiu da estante, fez novamente inclinação diante do altar e do celebrante e regressou ao seu lugar com a mesma passada firme e sem qualquer sombra de perturbação. Talvez um leve sinal de quem se interroga interiormente: mas o que é isto? Não sei o que pensaram as outras pessoas, se isso é normal acontecer, se já dão um desconto às atitudes do senhor abade, ou se ficaram a pensar no que se passará com aquela rapariga. Eu não pensei nela, estive toda a missa atento a ver se a outra leitora iria comungar. Foi. Por isso pus-me a pensar nas causas de tal proibição e vieram-me à mente as proibições que actualmente andam em voga na Igreja. Era isso. Depois da missa alguém me explicou a situação familiar da jovem que não leu. Casou pela Igreja com um não crente. Ela crescera num contexto eclesial católico, ele distante de tudo isso. Mas aceitou muito bem o casamento pela Igreja, o casamento é que não teve um desenvolvimento feliz. Entretanto ela tem agora um companheiro de vida a quem aconteceu qualquer coisa de semelhante. Não tendo possibilidade de que este seu amor seja abençoado pela Igreja, vivem placidamente na graça de Deus e dos amigos. Deve ser por isto que ela não pode comungar, pois já ouvi muitas histórias semelhantes. Não percebi se isso a preocupa, espero que não. Trata-se de uma espécie de lei da Igreja que deixa muita gente perplexa, tipo uma rua com o sinal de trânsito que indica: sem saída. A rua não tem continuação, mas pode-se lá entrar. O mesmo acontece com algumas pessoas na missa: podem entrar, participar, sabendo porém que não têm saída para os lados do altar. Esta jovem não pôde ler porque não vai à comunhão, mas não vai à comunhão porque a proíbem de ir. Ou seja, proíbem-na de fazer uma coisa, por não fazer outra que também lhe é proibida. Extraordinário! Que dirá o JP de tudo isto quando crescer mais um pouco? Baptizado aos seis anos, a meio da cerimónia levantou os dois dedos polegares virado para a assembleia e disse com segurança: está a ser fixe! Não sei o que terá querido dizer com isto, mas a verdade é que estava a ser feliz com o baptismo e, para a sua idade, já tinha suficiente consciência do que estava a fazer. Agora com doze anos fez a comunhão solene e parece continuar convencido de que é fixe. Que virá um dia a pensar o JP destas leis tão absurdas que em vez de incluírem excluem, em oposição ao que Jesus disse e fez? E não se pode evocar a autoridade da Igreja porque o ridículo e a parvoíce não têm qualquer autoridade. Nem Igreja. Diante disso só se pode dizer: valha-nos Deus! Estes dois acontecimentos passaram-se bastante longe um do outro, mas por casualidade estive relativamente perto de ambos. No primeiro caso fiquei perplexo porque fui completamente surpreendido. No segundo identifico-me bastante com o avô do JP: à cautela fica-se na ponta do banco para basar quando a fartação já é muita. Confesso que já o fiz. Quando saía reparei que o Jesus da tela da Ascensão mantinha o seu semblante glorioso.
frei matias, op  

15 julho 2012

Chamo a atenção para a publicação de um excelente livro que não é fácil de encontrar nas livrarias mas pode ser encomendado – primeiro: o autor, um teólogo de grande qualidade, com uma idade muito respeitável mas com uma cabeça excelente e uma bonomia encantadora. Trata-se de Artur Cunha de Oliveira que publicou Jesus de Nazaré e as Mulheres, a propósito de Maria Madalena (Angra do Heroísmo, 2011, edição do Instituto Açoriano de Cultura.) É um tomo respeitável de 583 páginas – ou seja, não é necessariamente para ler todo de uma só vez mas é uma fonte de alto nível que recomendo a quem se interesse por estas temáticas, chamando também a atenção de todos e todas aqueles e aquelas que se encontram em formação em seminários ou ordens religiosas.  O autor refere que o seu objectivo foi «fundamentar cientificamente a minha convicção a respeito das relações entre Jesus da Nazaré e Maria Madalena e (…) proporcionar ao leitor o mais largo e por vezes profundo contacto e familiaridade com as fontes primigénias e mais credíveis do Cristianismo que são as Sagradas Escrituras e os Padres e Escritores Eclesiásticos dos primeiros séculos da Igreja. (…) Quanto a Maria de Madalena a mesma investigação o que nos oferece é alguém do círculo íntimo de Jesus de Nazaré, senhora de bens e casada não se sabe com quem, que a primitiva tradição cristã aponta como alguém a quem primeiro foi revelada a Ressurreição. Tal qual sucedeu a tantas outras mulheres e quem o itinerante profeta galileu dispensou humana atenção, carinho e até ternura, foi curada de grandes males, pelo que Lhe ficou eternamente grata, acompanhando-O e socorrendo-O (e aos discípulos) com os seus bens. Nada mais. Foi o papa Gregório Magno que, numa homília no dia 21 de Setembro de 591, na Basílica de S. Clemente, em Roma, a confundiu com a ‘pecadora arrependida’ do evangelista Lucas (7, 36-50). A partir de então terminou a História e prinicpiou a Lenda.»
Ana Vicente