21 setembro 2014

Convidados para jantar, proibidos de comer (1)

Frei Bento Domingues, O. P.

1. No contexto da preparação do Sínodo dos Bispos, convocado para o Vaticano pelo Papa Francisco, a realizar de 5 a 9 de Outubro, sobre os desafios pastorais da família no contexto da evangelização, é normal que se tenham intensificado, nos diferentes continentes, os confrontos de tendências pastorais e teológicas sobre os antigos e novos modelos de família. Na realidade, desde o Vaticano II, não houve pausa nas controvérsias sobre as implicações da celebração católica do casamento. Não serão extintas no próximo Sínodo dos Bispos. O Papa Francisco não pode nem deve fazer tudo sozinho e tem de contar com os pedregulhos que os adversários da sua orientação lhe colocaram e colocam no caminho.

Não estamos na situação dos primeiros cristãos. Eles julgavam que o fim do mundo estava mesmo a chegar, como se pode ver nas cartas de S. Paulo aos Tessalonicenses. Os próprios textos do NT acusam uma certa evolução acerca do casamento, pois as comunidades cristãs tiveram de responder a desafios que Jesus não pode nem podia humanamente prever. Para lhe serem fiéis tiveram de inovar.
Por outro lado, se a identidade cristã da família não tivesse nada a ver com a pluralidade de mundos em mudança e tivesse sido configurada na eternidade, de uma vez para sempre, nem sequer seria precisa tanta despesa na preparação, nas viagens e na estadia, em Roma, dos 253 participantes dessa Assembleia, que continua mais representativa da hierarquia eclesiástica do que dos fiéis.
     
2. O próprio Jesus nasceu na história de uma família com a qual nem sempre teve uma relação tranquila. A esse respeito, as narrativas de S. Marcos sobre a família de Nazaré são pouco piedosas.         

Depois do cenário da constituição dos Doze para a pregação, Jesus voltou para casa. A multidão era tanta que os familiares nem se podiam alimentar. Perante esse facto, “os seus saíram para o deter, dizendo, ele está louco”.    

Chegaram os escribas, os intérpretes da Lei de Moisés, confirmaram a sentença e manifestaram que era diabólica a causa daquela loucura: Beelzebu está nele e “é pelo príncipe dos demónios que ele expulsa os demónios”.   

O final desse texto regressa, de forma insólita, à questão da sua família: “Chegaram então a sua mãe e os seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram-no chamar. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: a tua mãe, os teus irmãos e as tuas irmãs estão lá fora e procuram-te. Ele, porém, perguntou: quem é a minha mãe e os meus irmãos? Percorrendo com o olhar os que estavam sentados ao seu redor,  disse: Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”(Mc 3).   

Sobre o ponto de vista familiar, a sua visita a Nazaré foi um desastre completo (Mc 6,1-6). Na narrativa de S. João diz-se, longamente, que os seus irmãos o gozavam e não acreditavam nele (Jo 7, 3-5). 

Existe um contencioso evidente entre Jesus, a sua família e a dos discípulos. Porque será? O seu propósito não era a destruição, mas a evangelização da família. Esta, grande ou pequena, não pode ser um mundo fechado. Não consta que este nazareno tenha constituído família, apesar dos romances que lhe atribuem. Ele pretendia algo que pode parecer uma loucura, mas que permanecerá como o verdadeiro sentido da história humana: somos todos filhos de Deus, chamados a fazer do mundo uma família de muitas famílias, de muitos povos e culturas. Somos todos irmãos.

3. Voltemos a assuntos caseiros que farão parte dos debates do próximo sínodo. A pergunta inevitável é esta: qual é o estatuto espiritual dos católicos que vivem em união de facto e dos católicos divorciados recasados?

Acerca dos que vivem em união de facto, há esperança que se venham a casar. Não há certeza de que não se venham a divorciar. Não está definido que os que vivem em união de facto não possam ser católicos e comungar.

Quanto aos divorciados recasados a controvérsia já conta com um grande dossier [1]. Houve a tentação de os considerar não católicos, de os situar fora da Igreja. João Paulo II não alinhou. Insistiu em que devem inserir-se na vida da Igreja, nas suas actividades e frequentar a Eucaristia.
Já ninguém se atreve a dizer que estão excomungados. Alguns configuram estratégias espirituais para que possam desenvolver uma profunda vida cristã e, na missa, comungarem espiritualmente, nunca, no entanto, aceder à comunhão sacramental. Mesmo em estado de graça divina, estão marcados por uma ruptura de uma aliança indissolúvel.

Há divorciados recasados que são convidados a seguir a espiritualidade desse caminho. Existem outros que não aceitam qualquer descriminação. Também encontramos teólogos e pastoralistas, bispos, padres e cardeais advogados das duas orientações. No Sínodo, terão de conversar. Em qualquer dos casos seria importante que os interessados tivessem uma palavra a dizer e uma consciência a seguir.
De qualquer modo, a participação numa refeição pertence à simbólica da Eucaristia. Quem aceitaria um convite para jantar, com a seguinte cláusula: vem jantar, mas olha que não podes comer?  
Pensemos nisto nas próximas Celebrações Eucarísticas.

Precisamos de voltar a este assunto.


[1]   Cf. Michel Legrain, Os divorciados na Igreja, Círculo dos Leitores, 1995; Fidélité et divorce, Lumière et Vie, nº 206, 1992; A. Mattheeuws, S.J., L’ amour de Dieu ne meurt jamais, La sainteté des divorcés remariés dans l’ Église, NRT 136 (2014) 423-444 ; B. Petrà Divorziati risposati e seconde nozze nella chiesa. Una via di soluzione, Assisi Cittadella, 2012

Público, 21.09.2014

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