26 julho 2020


P / Info: Crónicas & Igreja: Especialista português diz que nova instrução do Vaticano sobre paróquias é oportunidade perdida, notícia publicada na Ag. Ecclesia
Fr. Bento: Quem foi Frei Mateus Peres?
Pe. Anselmo: Paz entre as religiões, paz entre as nações
Cardeal Tolentino: Férias
Pe. Vitor: Que tesouros procuramos?
QUEM FOI FREI MATEUS PERES, O.P.?
Frei Bento Domingues, O.P.
Figura internacional da Ordem dos Pregadores, Frei Mateus Cardoso Peres (1933-2020) foi membro activo de um grupo de grande relevo na renovação do catolicismo português e é um dos teólogos de contribuição mais original na renovação da teologia moral na Igreja portuguesa no pós-Concílio Vaticano II.

1. A crónica projectada para este Domingo – a última antes das férias – inspirava-se numa passagem bíblica do Primeiro Livro dos Reis. É muito bela. Salomão reconhece os seus limites para ser um bom governante. Pede a Deus um coração cheio de entendimento para governar o Seu povo, para discernir entre o bem e o mal. Esta oração agradou ao Senhor, que lhe disse:
«Já que me pediste não uma longa vida, nem riqueza, nem a morte dos teus inimigos, mas sim o discernimento para governar com rectidão, vou proceder conforme as tuas palavras: dou-te um coração sábio e perspicaz, tão hábil que nunca existiu nem existirá jamais alguém como tu»[i]. Quem dera que não só D. Trump e Bolsonaro, mas muitos outros governantes, renunciando ao espírito de dominação, fossem guiados por um coração sábio, perspicaz e hábil!
Quando ia começar a crónica deste Domingo, tive de mudar o seu rumo. Morreu, na passada segunda-feira, um confrade do Convento de S. Domingos que nos acolhe, o Frei Mateus Cardoso Peres (1933-2020). Pelo muito que lhe devo, vou deixar, aqui, algumas palavras de agradecimento.
2. Nasceu em Lisboa numa família profundamente cristã. Tinha 9 irmãos e licenciou-se em Direito, em 1956. Nesse mesmo ano, entrou na Ordem dos Pregadores, no Convento dos Dominicanos de Fátima que já frequentara como estudante. Estudou filosofia e teologia no Centro Sedes Sapientiae de Fátima e teologia em Otava (Canadá). Foi ordenado presbítero em 1962.
Com o seu consentimento, permito-me seguir o esboço do seu itinerário feito por Luiza Sarsfield Cabral [ii].
Foi membro activo de um grupo de grande relevo na renovação do catolicismo português. Figura internacional da Ordem dos Pregadores, é um dos teólogos de contribuição mais original na renovação da teologia moral na Igreja portuguesa no pós-Concílio Vaticano II.
Pertenceu a uma geração de católicos que, marcada por preocupações políticas e sociais, constituiu uma referência obrigatória na década de cinquenta-sessenta em Portugal. João Bénard da Costa retracta-a do seguinte modo: «Na JUC, entre os “contestatários” havia dois ramos distintos: o dos “sociólogos” (mais bem “comportados” e menos “intelectuais”) e o dos “vanguardistas”, quer em posições políticas, quer no interior da Acção Católica, quer numa predominante atenção aos fenómenos estéticos mais inconformistas. Esses eram (éramos) [...] o Nuno Peres (Frei Mateus Cardoso Peres OP), o Nuno Portas, o Nuno Bragança, o Luís Sousa Costa, o Pedro Tamen, o Alberto Vaz da Silva, o M. S. Lourenço, o Cristóvão Pavia, o José Escada, o Manuel de Lucena, o José Domingos Morais, o Duarte Nuno Simões – o Mário Murteira e o Carlos Portas eram a charneira entre os dois grupos»[iii].
Com alguns entusiastas desse grupo, Frei Mateus Peres participou na criação do CCC (Centro Cultural de Cinema – Cineclube de Universitários para uma Cultura Cinematográfica Cristã), que teve o seu início em Novembro de 1956.
Foi colaborador em O Tempo e o Modo, Revista de Pensamento e Acção – importante espaço de diálogo e confronto de diferentes sensibilidades culturais, políticas e religiosas –, tratando do significado histórico e impacto do Concílio Vaticano II (1963-1965), no aggiornamento interno da Igreja e na sua relação com o mundo contemporâneo. A problematização teológica, introduzida em Portugal por Frei Mateus, nos seus textos de O Tempo e o Modo[iv], é hoje considerada, pelos analistas dessa época, como um contributo único para a compreensão da novidade doutrinal e pastoral do Vaticano II[v]. O recurso ao pseudónimo Manuel Frade, com que assinou o último destes artigos, revela as dificuldades e limitações que existiam na Igreja portuguesa, então muito à margem desse acontecimento mundial.
Fez parte da primeira direcção internacional da famosa revista teológica Concilium, editada em português pela Livraria Morais Editora (1965), devido ao empenhamento de A. Alçada Baptista. Era esta a forma de Portugal e o Brasil terem acesso à grande renovação teológica pós-conciliar.
Pertenceu ainda à equipa que, no âmbito das actividades dessa revista, lançou entre nós os «Colóquios para Assinantes», destinados sobretudo a equacionar as questões da Igreja portuguesa à luz de um Concílio por ela praticamente ignorado.
Frei Mateus Peres dedicou muito da sua vida à renovação da teologia moral, na investigação e no ensino: a partir de 1963, no Studium Sedes Sapientiae dos dominicanos, em Fátima; de 1967 a 1972, na Faculdade de Teologia de Otava (Canadá). Regressado a Portugal, continuou a sua dedicação à teologia, no campo da Moral, no Porto (ISET, ICHT, UCP) e, finalmente, na UCP, em Lisboa.
É autor de alguma colaboração em obras colectivas e de inúmeros estudos na área da teologia moral, em revistas como Humanística e Teologia, Communio, Cadernos ISTA e outras. Muito apreciado como professor e conferencista, investigou as razões históricas e teóricas que contribuíram para a «má reputação da moral» (sic).
Ao fazer da ética uma construção do sujeito – em «uma visão teológica que faça justiça ao sujeito» –, deu um contributo decisivo para a superação de dois persistentes dilemas da teologia e filosofia moral, subjectivismo/objectivismo e autonomia/teonomia. Esta proposta encontra-se na sua obra fundamental, apresentada como tese de doutoramento em 1987, O Sujeito Moral: Ensaio de Síntese Tomista, 1992.
3. A nível dos Dominicanos, viveu em várias comunidades em Portugal e no estrangeiro. Assumiu vários cargos institucionais para que foi eleito: provincial em 3 mandatos, várias vezes prior conventual, mestre de estudantes, sócio do Mestre Geral para a vida intelectual, o que o obrigava a viver em Roma e a visitar vários países, de vários continentes.
Acompanhou o Mosteiro das Monjas do Lumiar, onde se desenvolveram as célebres Conferências do Lumiar. No mundo das congregações religiosas, foi presidente de CNIR.
Tendo desempenhado várias funções de relevo, ao nível da Ordem dos Pregadores, para ele, assumir o poder era o encargo de servir. Não apenas de servir segundo o seu critério individual, mas segundo as instituições democráticas que podem ser adaptadas e nunca postas em causa.
Compreendeu, na prática, a resposta de Deus à oração de Salomão: exerceu o poder com um coração sábio, perspicaz e muito hábil.
26. 07. 2020
in Público 26.07.2020


[i] Cf. 1Rs 3, 1-15
[ii] Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Volume VI, pp. 211-213
[iii] João B. da Costa, «Meus tempos, meus modos» in Diário de Notícias, «Revista de Livros», 9/11/83,1
[iv] A Igreja entre Duas Guerras (TM, 16-17, 1964), Tradição e Progresso (TM, 18, 1964), A 4ª Sessão: O Concílio e a Igreja (TM, 32, 1965).
[v] Cf. tese de licenciatura em Teologia de Nuno E. Ferreira, in Lusitania Sacra, 2.ª série, 6, 1994, pp.129/294

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Paz entre as religiões, paz entre as nações
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
1. A Basílica de Santa Sofia, em Constantinopla/Istambul, inaugurada pelo imperador Justiniano no século VI e dedicada a Cristo, Sabedoria de Deus, foi durante quase mil anos o maior templo cristão, impondo-se pela sua beleza e majestade. Muitos que lá entraram e contemplaram a cúpula, com 55 metros de altura e 30 de diâmetro, e o Cristo Pantocrator a olhar do alto disseram ter feito uma experiência do Céu.
A sua história tem sido atribulada. Foi realmente durante quase um milénio (537-1453) o santuário mais significativo da cristandade; a seguir ao Grande Cisma (1054), tornou-se a igreja mais importante dos cristãos ortodoxos, que os católicos, no tempo das cruzadas, conquistaram e dominaram (1204-1261); depois, durante quase 500 anos (1453-1931), tornou-se, com a conquista de Constantinopla, a mesquita “imperial” mais importante do islão, tendo Constantinopla passado a chamar-se Istambul, pois era tal o esplendor e a força de Constantinopla que não se dizia “ir a Constantinopla” mas “ir à cidade” (em grego: eis tên polín). Em 1931, depois da dissolução do império otomano, Mustafá Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna, como sinal da laicidade do Estado, dessacralizou-a e transformou-a num “museu oferecido à Humanidade”, aberto ao público em 1935 já com os vitrais e os ícones cristãos, que tinham sido cobertos com gesso, porque o islão proíbe as imagens, e, em 1985, declarado património mundial da Humanidade pela Unesco. O actual presidente da Turquia, Recep Erdogan, decretou, no passado dia 10, que voltasse a mesquita, recomeçando a ser lugar de oração a partir de ontem, dia 24. Entretanto, o Governo turco assegurou que terá os mosaicos com imagens cristãs tapados durante as orações e que continuará aberta ao turismo, nacional e estrangeiro, com entrada gratuita (até agora, as visitas rendiam 50 milhões de euros anuais).
2. As reacções à reconversão em mesquita por Erdogan choveram de todo o lado. A Grécia, a Unesco, a Rússia, os Estados Unidos manifestaram inquietação. O governo grego foi dos primeiros a reagir, qualificando a decisão de “provocação ao mundo civilizado”. O Papa Francisco, logo no dia 12, na oração do Angelus, disse: “O meu pensamento vai para Istambul, penso em Santa Sofia e sinto muita dor”. É natural que os cristãos ortodoxos se exprimam de modo mais contundente, pois Santa Sofia é simbolicamente para a Igreja ortodoxa o que São Pedro é para os católicos. Assim, a Igreja da Grécia, antes ainda da reconversão, lembrou que Santa Sofia é uma “obra-prima, mundialmente reconhecida como um dos monumentos eminentes da civilização cristã. Toda a mudança provocará um vivo protesto e a frustração entre os cristãos de todo o mundo, e prejudicará a própria Turquia.” Sua Beatitude Jerónimo II, arcebispo de Atenas, qualificou a decisão de “insulto à ortodoxia, ao cristianismo em geral e a toda a pessoa sensata”, instrumentalizando a religião para conveniências partidárias, geopolíticas e geoestratégicas. A Igreja ortodoxa russa antevê que possa ter “graves consequências para toda a civilização humana”. O patriarca Cirilo de Moscovo declarou que “uma ameaça a Santa Sofia é uma ameaça ao conjunto da civilização cristã.” O Conselho Ecuménico das Igrejas, que reúne 350 Igrejas cristãs no mundo, exprimiu o seu “pesar e consternação”; para o seu secretário-geral, I. Sauca, Santa Sofia era uma bela prova da “ligação da Turquia à laicidade”. A França “deplorou” a mudança, enquanto a Unesco poderá rever o seu estatuto, considerando “lamentável” a decisão tomada “sem diálogo nem notificação prévia”.
3. Sempre que se fala em religião/religiões vem inevitavelmente à mente a declaração célebre do teólogo Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, sem um ethos mundial.”
Condição essencial para a paz entre as religiões e para que haja liberdade religiosa é a laicidade do Estado, a não confundir evidentemente com laicismo. O Estado não pode ser confessional, não pode ter nenhuma religião, precisamente para garantir a liberdade religiosa de todos. Erdogan, porque está a perder poder, quer apoiar-se nos sectores mais islamistas e ultranacionalistas. De facto, como disse o turco Ohran Pamuk, Nobel da Literatura, “esta reconversão é dizer ao resto do mundo que, infelizmente, não somos um Estado laico”. Deste modo, acabou por dar um duro golpe no diálogo inter-religioso, que tem a sua prova de verdade no combate comum pela paz, pela justiça, por aquele ethos que Hans Küng refere e que está presente no documento histórico, a que aqui me referi amplamente, “A Fraternidade Humana”, assinado em Abu Dhabi pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã da Universidade Al-Azhar, no Cairo. Não há dúvida de que, transformando Santa Sofia em mesquita e aliando religião e nacionalismo, Erdogan “pode criar um terreno fértil para a intolerância religiosa e a violência”, alertou a Conferência de Igrejas Europeias.
Erdogan foi perigosamente muito longe, ao celebrar, no discurso oficial em árabe —a referência não é mencionada nem na versão em turco nem em inglês —, esta reconversão como um primeiro passo de um “renascimento” islâmico, que deve ir de Bucara, no Uzbequistão, a Al Andalus, Espanha: ele “é o símbolo do regresso do sol nascente da nossa civilização islâmica”.
in DN 25 de Julho 2020
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

FÉRIAS

AQUILO QUE NOS PERMITE RELANÇAR A VIDA SÃO COISAS PEQUENAS QUE PRECISAMOS DE REAPRENDER
No seu filme “Caro Diário”,Noretti acaba (quase!) por fugir a nado das ilhas eólias. Os que viram o filme recordar-se-ão que ele partira para essa “peregrinação interior” projetando aí uma espécie de grande e necessário reencontro com a vida, na sua pulsão mais verdadeira, essencial e longínqua. Esperava desse reencontro o que muitas vezes desejamos nós das férias: que nos renovem, que libertem o nosso olhar blindado e alterem o nosso intermitente humor, que nos tragam paisagens diversas, que nos reconciliem... E contava com o influxo positivo das eólias para isso, como nós contamos com o que está ao nosso alcance: uma casa, um lugar que visitamos, um livro, uma montanha, um toldo arejado ao pé do mar... Mas, no filme de Moretti, as ilhas do tirreno revelam-se rapidamente um mal-entendido, igual ao de todos esses massificados paraísos de estampa em que a propaganda estival é fértil, e que servem apenas para ampliar o vazio, pois, mais uma vez, roubam à vida o seu prometido verão. Quando ele constata que o que ali vigora é o mesmo omnipresente formato consumista, porventura num registo ainda mais feérico, lança-se abruptamente para o barco de regresso, confessando, com desalentada ironia: “Sou feliz só no mar, na travessia entre uma ilha que acabei de deixar e de uma outra que devo ainda conhecer.”
Bem, a dizer a verdade, a finalidade deste introito não é o cancelamento das férias, que constituem uma variação do tempo tão propícia e necessária. Pelo contrário, pretende bramar que é possível encontrar saída. Se repararmos, no filme “Caro Diário”, mesmo um escrutínio escovado severamente como o de Nanni Moretti, encontra, por exemplo, numa das ilhas — a bela ilha de Salina — dois clarões preciosos que, depois do filme terminar, continuam a luzir na nossa cabeça. Trata-se de duas breves cenas, desenhadas na sua aparente simplicidade como pontos de fuga em relação ao confronto desiludido e áspero com o real, mas que insinuam uma efetiva possibilidade de sentido, o tracejado de um caminho.
Em Salina, um dos lugares que quis muito visitar foi o farol. “Mas é anódino, não tem nada de especial” — explicaram-me. Porém, eu sabia que não era assim
A primeira delas é uma cena de corte: para romper com o circuito fechado da interminável comunicação palavrosa, a personagem interpretada pelo cineasta Nanni Moretti afasta-se do aldeamento até à zona do farol, e caminha em silêncio. Apenas isso. Caminha não com o fito utilitário de chegar a algum lado. Podemos dizer que se recolhe, que, naquele passeio solitário pelo espaço, reencontra o seu silêncio, que aplaca a sua respiração, como se lhe fosse oferecida a possibilidade de caminhar não apenas por aquele baldio, mas sobretudo dentro de si. Dois elementos plásticos enquadram essa deambulação, e que talvez não nos sejam mostrados por acaso: os destroços de um barco em terra e um navio que desliza pela costa. Isto é: como se passa da existência como naufrágio à reativação esperançosa da própria viagem.
A segunda cena conta um facto ainda mais simples. A personagem volta à zona do farol, que tem um minúsculo lago (na origem existia ai uma salina) e um campo de futebol de terra batida. Perto da baliza está uma bola. E Moretti que se aproxima de cabeça baixa, absorto na redação do diário, de repente vê a bola. E corre. E começa a jogar. A bola sobe, toca na terra, ele chuta-a de novo, correndo de um sítio para outro, numa coreografia, de repente, ligeira, numa ligeireza, de repente, possível. Creio que a lição do filme “Caro Diário” é essa: que aquilo que nos permite relançar a vida são coisas pequenas que precisamos de reaprender.
Lembro-me que quando visitei Salina, um dos lugares que quis muito visitar foi este farol. “Mas é anódino, não tem nada de especial” — explicaram-me. Porém, eu sabia que não era assim.
in Semanário Expresso 26.07.2020
http://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2491/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/ferias
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À PROCURA DA PALAVRA
Pe. Vitor Gonçalves
DOMINGO XVII COMUM
“O reino dos Céus é semelhante a um tesouro
escondido num campo.”
Mt 13, 44
“O que mais custa na desgraça deste vírus é não poder estar com os meus netos; abraçá-los e dar-lhes beijinhos!” Desabafava assim uma avó entre lágrimas, que, sem saber, se tornava porta-voz de um dos sofrimentos maiores desta pandemia: a distância entre avós e netos. No fundo, o doloroso distanciamento entre os nossos “maiores” (bela expressão quando a outra, “velhos”, tem amargo sabor a “descartáveis”!) e a infância dos que lhes são queridos.  A memória dos avós de Jesus, que a liturgia assumiu com os nomes de Joaquim e Ana, e hoje recordados, possa fazer-nos lutar por esse tesouro do convívio de gerações, da riqueza de experiências que se partilham, da sabedoria e novidade que se abraçam, do passado e do futuro que se encontram.
É admirável o tesouro da tecnologia, mas nunca substituirá o tesouro do afecto, do toque, do abraço ou do beijo. É importante o tesouro da economia, de acordos de recuperação e entreajuda financeira como o que foi aprovado na União Europeia, mas mais importante ainda a honestidade e responsabilidade na aplicação do dinheiro para o bem comum e não para a ganância e a desigualdade. São fundamentais os tesouros da saúde, da educação e da justiça, mas é preciso continuar a lutar para que sejam acessíveis a todos, sem distinções nem exclusividades. É essencial o tesouro da vida, que nos convoca a comprometer o coração na sua promoção e defesa, conscientes da sua fragilidade e grandeza.
O reino dos Céus, narrado por Jesus em sete parábolas, é Ele mesmo. Ele é a semente, pequena e cheia de vida; o fermento escondido que faz crescer o pão; que morre para dar vida; que cresce no meio do mal e reconhece-se pelos frutos; é o tesouro e a pérola preciosos que precisam ser procurados e escolhidos; é a rede que tudo recolhe e onde é preciso escolher o melhor. Assim, o reino dos Céus exige um trabalho de discernimento. É preciso a coragem de uma escolha decisiva: dar tudo para guardar o melhor. É um trabalho de coração o discernimento: só um coração que ama sabe fazer a boa escolha, à semelhança de Salomão que pediu a Deus “um coração inteligente”.
O tesouro que é Jesus Cristo transforma-nos também em tesouros. Únicos e preciosos. Por isso importa inventar novos modos de proximidade e comunhão para estes tempos difíceis. Convívios antigos e novos, vermo-nos e ouvirmo-nos com maior atenção, dizermo-nos quanto somos importantes uns para os outros. Pede-se criatividade e ousadia para colocar em primeiro lugar o melhor. Será que não há tesouros de futuro a descobrir, quer na relação renovada com Deus, quer na de uns com os outros?
in Jornal Voz da Verdade 26.07.2020
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=9161&cont_=ver2
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Padre Tiago Freitas questiona persistência do modelo centrado no padre e falta de atenção aos desafios da evangelização
Braga, 24 jul 2020 (Ecclesia) – O padre Tiago Freitas, autor de uma tese de doutoramento sobre novos modelos de paróquias, disse à Agência ECCLESIA que o novo documento do Vaticano sobre o tema é uma oportunidade perdida, falhando pela falta de atenção aos desafios da evangelização.
O sacerdote da Arquidiocese de Braga falava a respeito da Instrução “A conversão pastoral da comunidade paroquial a serviço da missão evangelizadora da Igreja”, publicada esta segunda-feira pela Congregação para o Clero (Santa Sé).
Segundo o autor da tese “Colégio de Paróquias – Um proto-modelo crítico para a paróquia da Europa Ocidental em tempo de mobilidade”, o novo documento foi recebido com “surpresa” por diversos responsáveis católicos.
“Este é um documento muito técnico, muito formal, sobre aspetos muito concretos”, centrado no Direito Canónico”, precisa o padre Tiago Freitas.
Isso é partir do ponto errado: o Código de Direito Canónico está para ajudar a pastoral, a reflexão teológica, para dar enquadramento, estrutura sólida e jurídica. Não é para ser a bitola de como vamos fazer, como nos vamos organizar”.
A Instrução surge como síntese de documentos de 2002 e 1997, com mais de 20 anos, apresentando como “modelo ideal um pároco com uma paróquia”.
O entrevistado entende que esta é uma “resposta clara” da Santa Sé ao que acontece neste momento na Alemanha, onde a Igreja Católica vive uma caminhada sinodal e que está a “assustar a Cúria Romana”, com mulheres em cargos diretivos nas dioceses alemãs.
“Não há razão objetiva para que os leigos não possam cooperar ou participar num real governo das paróquias”, aponta.
Outro cenário é o da Suíça, onde equipas de leigos têm a responsabilidade de “governar” a paróquia.
“Aí sim, pode ser discutível se o pároco não é transformado numa espécie de capelão, uma espécie de funcionário. Esse é outro risco, onde se põe em causa o múnus de ser pastor”, sublinha o padre Tiago Freitas.
Para o especialista, há um conjunto de experiências, sobretudo na Europa, a que a Santa Sé quer “pôr travão”.
“Não se têm em conta sequer os próprios pressupostos da Instrução, que é a transformação da sociedade e da Cultura em que vivemos”, acrescenta.
O novo documento sublinha o papel central do padre, na paróquia, e rejeita que leigos ou diáconos possam “presidir à comunidade paroquial”, por considerar que essa missão compete ao pároco.
“O único foco que aqui vejo é a figura do pároco e a liderança nas paróquias”, assinala o padre Tiago Freitas, deixando de lado qualquer forma de “empoderamento” dos leigos ou de “governo colegial”.
O sacerdote entende que o documento tinha bons pressupostos, ao aludir à “irrelevância do critério territorial” da paróquia, a começar pelos próprios fiéis, e à necessidade de “reforma de estruturas” e conversão “missionária”.
“Estes são os pressupostos. O problema é que depois, entrando no documento, não há nada de novo senão a reafirmação de tudo o que está em vigor, neste momento”, prossegue.
Para o especialista, o caminho das Unidades Pastorais deve ter “as motivações corretas”, considerando que “a Igreja em Portugal tem trilhado o caminho sugerido” pela Congregação para o Clero.
O padre Tiago Freitas sustenta que a prioridade deveria ser dar resposta ao “problema maior” das paróquias, que é a queda do número de cristãos, de pessoas comprometidas, projetando também os desafios do pós-pandemia.
“A forma de anúncio, a urgência de um primeiro anúncio, as modalidades de anunciar Jesus Cristo. Isto é que é uma paróquia evangelizadora”, elenca.
O entrevistado questiona ainda que se apresentem como modelos para as paróquias os santuários, que são, “por definição, locais fixos, imóveis, a que os peregrinos vão ter”.
“A Igreja missionária é a Igreja que sai de si”, observa.
Em conclusão, o padre Tiago Freitas defende que este é “um documento técnico que está destinado ao esquecimento”.
OC
in Agência Ecclesia Jul 24, 2020
https://agencia.ecclesia.pt/portal/igreja-especialista-portugues-diz-que-nova-instrucao-do-vaticano-sobre-paroquias-e-oportunidade-perdida/  
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19 julho 2020

P / Info: Crónicas



Fr. Bento: Igreja fora de Portas
Pe. Anselmo: Desconfinar a Igreja. 4
Card. Tolentino: Que fazes tu no  Céu, ó Lua?
Pe. Vitor: Prudência, paciência e humildade

IGREJA FORA DE PORTAS
Frei Bento Domingues, O.P.

De modo inesperado, surgiu Bergoglio de fora de portas da Roma imperial e não se instalou no Vaticano. Com ele nascia a Igreja de saída, a Igreja fora de portas.

1. A palavra igreja é uma complicação. Começou por significar, no grego profano, assembleia política do povo. No grego bíblico, a palavra traduz diversos termos hebraicos e foi a preferida para designar as comunidades cristãs. Era nesse sentido que se dizia: a Igreja que está em Jerusalém, em Antioquia, em Éfeso, etc.[1].
Eram comunidades que reconheciam, em Jesus de Nazaré testemunhado pelos seus discípulos, o Caminho que alterava todas as dimensões da vida humana.
Jesus nasceu e cresceu num judaísmo de várias tendências. Quando se tornou adulto, depois de tentar seguir o caminho reformista de João Baptista, teve uma experiência espiritual de tal intensidade que mudou radicalmente o rumo da sua vida[2]. Pelas suas atitudes, gestos e parábolas introduziu uma revolução radical, teológica e antropológica, no judaísmo em que tinha sido formado.  
Deus tinha sido metido na prisão das prescrições religiosas que, por sua vez, escravizavam os mais pobres e doentes através das suas intermináveis e sofisticadas interpretações. O Nazareno tentou destruir toda aquela casuística mediante duas evidências soberanas: Deus não quer sacrifícios, quer misericórdia; o Sábado – o dia sacralizado do judaísmo – é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado.
No entanto, a revolução das revoluções vem apontada em S. Mateus: Ouvistes o que foi dito: «Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo». Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem[3]. A lei da violência interminável pode ser vencida!
Foi por isso que o primeiro horizonte da missão de Jesus e dos seus discípulos não foram os gentios, mas «as ovelhas perdidas da casa de Israel»[4]. A revolução devia começar por casa. As grandes polémicas de Jesus com os dirigentes do seu povo são motivadas pelo Espírito das referidas evidências: não havia direito de carregar o povo com obrigações e proibições, quando eles dispunham de escribas e doutores que torciam as normas segundo os seus interesses.
Jesus não escreveu nada nem encarregou ninguém de escrever as suas memórias. Os primeiros escritos cristãos nem sequer se interessavam pelo itinerário que o condenou. O próprio S. Paulo – judeu fervoroso e cidadão romano – só queria testemunhar que Cristo não foi vencido pela crucifixão. Atribuiu a sua viragem, de perseguidor dos discípulos do Messias para se tornar o seu incansável apóstolo, a uma intervenção directa do Ressuscitado[5].
O centro da fé e do Evangelho que anunciava era este: Cristo crucificado ressuscitou. Está vivo e garante a esperança que vence a própria morte. O que o movia nas viagens mais perigosas, até aos limites do mundo conhecido, era precisamente anunciar a judeus e gentios esta convicção. Era deste anúncio que nasciam mais comunidades cristãs que, por sua vez, suscitavam ainda outras. Os seus escritos são cartas para alimentar o fogo e resolver problemas e contendas que estavam sempre a surgir.
2. Os quatro Evangelhos nasceram, pelo contrário, no seio de várias comunidades com problemáticas e estilos de vida bastante diferentes. Era preciso figurar o itinerário terrestre de Jesus Cristo, pois, cada vez haveria menos pessoas que pudessem dizer: eu vi, eu sei como ele era, como vivia, como anunciava o Reino de Deus e como foi traído por discípulos, adversários e inimigos. Era fundamental deixar testemunhos para o presente, para o futuro, para todos aqueles que acreditassem mediante o testemunho dos discípulos.
O Quarto Evangelho termina, precisamente, com uma cena dedicada ao apóstolo Tomé, com estas espantosas palavras: «porque me viste, acreditaste; felizes os que não viram e acreditaram». Esta foi, é e será a condição dos cristãos de todos os tempos e lugares.
João, ao concluir a sua narrativa, não podia se mais claro: «Jesus fez, diante dos seus discípulos, muitos outros sinais ainda, que não se encontram escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para acreditardes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhais a vida eterna em seu nome»[6].
Como escreveu Frederico Lourenço, «Na segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico) de textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade»[7]. Este exímio tradutor considera que «são textos insubstituíveis porque falam de Jesus de Nazaré, a figura mais admirável de toda a História da Humanidade». No entanto, Jesus nasceu fora de portas, não teve onde reclinar a cabeça e foi morto fora das portas de Jerusalém.
3. O ressuscitado não abandonou o mundo. Prometeu uma presença actuante até ao fim dos séculos, em qualquer lugar: «Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, até aos confins da Terra».
É consensual que, a partir sobretudo do século IV, a orientação da Grande Igreja instalou-se no poder. De perseguida tornou-se perseguidora. João Paulo II teve a coragem de dizer que os cristãos assumiram métodos em contradição com a verdade de Cristo e com o seu Espírito. Em vez do diálogo, praticámos a exclusão; em vez da escuta das diferenças, a condenação; em vez da compreensão ou da tolerância, a perseguição de quem era “outro”: os judeus, os “heréticos” e, mais em geral, quem quer que mostrasse uma diversidade de opiniões, de ética, de fé.
Era uma síntese de muitos erros em muitas épocas. Tornou-se uma banalidade referir o desencontro com a modernidade, com o iluminismo, com a revolução francesa, com a laicidade, o confronto com a hostilidade dos grandes impérios e das ideologias totalitárias. Aconteceu, entretanto, o inesperado: veio o Papa João XXIII, veio o Concílio Vaticano II, mas também a turbulência das confusões[8]. De modo ainda mais inesperado, surgiu Bergoglio de fora de portas da Roma imperial e não se instalou no Vaticano.
John L. Allen Jr. avisa: para compreender o Papa Francisco, esqueça Roma e aponte para Lampedusa porque foi o local escolhido para a primeira viagem do Papa fora de Roma, a 8 de Julho de 2013. Durou apenas quatro horas e meia, mas raramente um mero meio-dia na vida de um papado foi tão repleto de simbolismo e substância. Esta ilha tornou-se globalmente evocativa porque é o ponto de entrada na Europa de vagas e vagas de migrantes e refugiados que fogem de África, Médio Oriente e Ásia[9].
Nascia a Igreja de saída, a Igreja fora de portas.
in Público, 19.07.2020
https://www.publico.pt/2020/07/19/opiniao/opiniao/igreja-portas-1924766


[1] C. 1 Tes 1, 1: Paulo, Silvano e Timóteo à igreja de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo, que está em Tessalónica. A vós, graça e paz.
[2] Mt 3, 11-17 e par.
[3] Mt 5, 43-45
[4] Mt 10, 5-16
[5] 1Co.15; Act. 9,1-30
[6] Jo 20, 29-31; 21, 24-25
[7] Bíblia, Volume I, Quetzal, 2016, p. 21
[8] Cf. Enzo Bianchi, Secretariado da Pastoral, de 13.07.2020
[9] Cf. Secretariado da Pastoral da Cultura, 10.07.2020

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1. Também se aplica à Igreja, e compreende-se que de modo particular à Igreja, tantas são as expectativas em relação a ela: dá-se eco, sobretudo nos média, ao que é negativo, aos erros, crimes, escândalos... Quem pode negar tudo isso? Mas o que a Igreja fez e faz de positivo é mais: promoção das pessoas, combates pela sua dignificação, infindáveis iniciativas de caridade e cultura... Também agora, nesta calamidade pandémica. Quantos políticos portugueses, se quiserem ser honestos, terão de estar de acordo com as palavras do alcaide de Madrid, José Luis Martínez Almeida: “A acção da Igreja foi fundamental, como o é na vida quotidiana.
” Neste contexto, perdoe-se esta nota: quando a ecologia tem de ser um elemento essencial na viragem, o Vaticano dá o exemplo: instalou no edifício da Aula Paulo VI painéis solares, promove o uso de veículos eléctricos, eliminou o uso de pesticidas tóxicos nos jardins...
Mas a dívida maior para com a Igreja, apesar da e no meio da sua história de miséria, é que através dela o Evangelho foi sendo anunciado, e o Evangelho está na base da tomada de consciência da dignidade inviolável da pessoa e foi fermento que levou à proclamação dos Direitos Humanos.
2. A ameaça maior da Igreja é o poder e os conluios com os poderes. Uma demonstração simples deste perigo está em que, desgraçadamente, quando se fala da Igreja, no que se pensa é no Papa, nos cardeais, nos bispos, nos padres, nos monsenhores..., tudo aquilo em que nem Jesus nem os primeiros discípulos pensariam.
O núcleo do cristianismo é a mensagem de Jesus, o Evangelho: Deus é Pai-Mãe de todos e quer a alegria e a salvação de todos. A Igreja mundial é a comunidade de comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e congregadas por essa mensagem, na fé, na esperança e praticando o amor, a justiça, a paz.  Evidentemente, é necessário um mínimo de organização, mas a pergunta é: essa organização tem de ser piramidal, hierárquica, machista, gerontocrática, centralizadora?
Francisco sabe que este é um combate decisivo para o futuro da Igreja. Ele é cristão, franciscano, mas é também jesuíta, não é anarquista, e sabe que alguma organização se impõe. Daí, o seu combate permanente, sem tréguas, contra o clericalismo, o carreirismo, a corte, que são  “a peste da Igreja”, e o esforço para que se perceba que o poder só vale enquanto serviço, e a sua abertura a uma Igreja verdadeiramente sinodal, isto é, uma Igreja na qual todos caminham juntos, uns com os outros e todos com Jesus, ao serviço da Humanidade. O que ele peleja para que acabem os bispos-príncipes e para renovar a Cúria e o Banco do Vaticano! Sem desânimo, apesar de saber que, como disse num dos discursos à Cúria, “é mais difícil reformar a Cúria do que limpar a esfinge do Egipto com uma escova de dentes.”
3. Na “nova normalidade”, a Igreja necessita, em primeiro lugar, de que todos os seus membros renovem o essencial: a fé. Neste sentido, significativamente, apareceu agora uma nova versão do “Directório para a catequese”, e a mensagem essencial é que o centro não está nas doutrinas, mas na pessoa de Jesus, e, por isso, o decisivo é que “cada pessoa descubra que vale a pena acreditar” e conheça o amor cristão. Isso impõe, certamente, estar atento também à utilização das novas tecnologias e ser uma presença evangelizadora no continente digital.
A linguagem tem de adaptar-se. Por exemplo, não se pode continuar a falar do pecado original, como se fazia, e é preciso perguntar: que significa hoje “ressurreição da carne”, “desceu aos infernos”, “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”? Não se pode ficar imóvel nos rituais, com gestos e sinais que já nada significam, o que implica que urge a adaptação da liturgia e de toda a linguagem da fé às diferentes culturas, com o que se chama Inculturação do Evangelho. E a simplicidade tem de ser lei: pense-se, por exemplo, naquele ritual do tira e põe do solidéu, o mesmo acontecendo com a mitra. Sobre esta, falou Santo António, num sermão do Advento (devo a citação a Sofia Nunes): “Cairão os unicórnios, os imperadores e reis deste mundo e os touros, os bispos mitrados, que têm na cabeça dois cornos como se fossem touros.”
A Igreja tem de continuar a fomentar o ecumenismo — felizmente, o Vaticano põe a questão de revogar a excomunhão a Lutero — e o diálogo inter-religioso.
Com que fundamentos justificar a imposição do celibato obrigatório ou a discriminação das mulheres? E não precisam de revisão os ministérios na Igreja?
Sobre a Igreja sinodal,  que é o tema do próximo Sínodo em Outubro de 2022, o sociólogo J. Elzo tem uma figuração apelativa: “Uma Igreja em rede, à maneira de um gigantesco arquipélago que cubra a face da Terra, com diferentes nós em diferentes partes do mundo, inter-relacionados e todos religados a um nó central, que não centralizador, que, na actualidade, está no Vaticano. Aí ou noutras partes do planeta, todos os anos se reuniria uma representação universal de bispos, padres, religiosas e religiosos, leigos (homens e mulheres), sob a presidência do Papa, para debater a situação da Igreja no mundo e adoptar as decisões pertinentes”, também no que se refere aos problemas da Humanidade.
P. S. Como anunciou o Presidente turco, R. Erdogan, Santa Sofia, em Istambul, passa a mesquita. O Papa Francisco comentou: “O meu pensamento dirige-se para Istambul. Penso em Santa Sofia e sinto muita dor”. Ao acontecimento e à sua problemática dedicarei a próxima crónica.
in DN 19.07.2020
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

JOSÉ
TOLENTINO
MENDONÇA
QUE FAES TU NO CÉU, Ó LUA?FacebookTwitterE-Mail
MANHÃ APÓS MANHÃ, O ESPELHO TESTEMUNHA COMO NOS ESTAMOS A TRANSFORMAR EM ELEMENTOS PURAMENTE INSTRUMENTAIS DE UMA VIDA QUE JÁ NÃO QUER SABER DE NÓS
Um dos filósofos mais originais e discretos do século XX, o russo Pavel Florenskij, escreveu: “A nossa vida escapa-nos como um sonho, e é possível não chegar a tempo de fazer coisa alguma neste breve instante que é a vida. Por isso, é necessário aprender a arte de viver, a mais difícil e a mais importante das artes: a capacidade de conferir a cada hora um conteúdo substancial, conscientes de que aquela hora não tornará jamais.” Pode, de facto, acontecer-nos “não chegar a tempo” até porque, precisamente o tempo, é uma alta febre que nos toma e que, não raro, nos atira borda fora da nossa própria embarcação. Desde que ganhámos consciência de que estamos dentro do tempo, de que somos seres amassados na argila do tempo, deixámos de ter tempo. A nossa vida, quase por completo, está destinada ao fazer e ao produzir, a essa luta certamente áspera, monótona ou dilacerante, mas também apaixonada, envolvente e, à sua maneira, vital. Na verdade, não há, à partida, nenhum problema com a vida ativa da qual dependemos, e não só para garantir a basilar luta pela sobrevivência. O coágulo forma-se quando a atividade se torna o fim e nós os instrumentos; quando, manhã após manhã, o espelho testemunha como nos estamos a transformar em elementos puramente instrumentais de uma vida que já não quer saber de nós. Muitas vezes, a esse lampejo de consciência, reagimos pressionando ainda com mais força o pé contra o acelerador, deixando-nos ir, aceitando que não nos resta outra forma de aceitar a temporalidade. E tentamo-nos consolar dizendo: “não tenho vida, mas tenho coisas”, “não tenho tempo para nada, mas adquiro poder de compra”.
Às nossas sociedades falta uma reflexão séria sobre a completude da experiência humana e sobre as reivindicações — a maior parte delas sufocada — por um estilo de vida mais equilibrado
Às nossas sociedades falta uma reflexão séria sobre a completude da experiência humana e sobre as reivindicações — a maior parte delas sufocada — por um estilo de vida mais equilibrado. O dever ou o direito de fazer não tem de se construir sacrificando a toda a linha o dever ou o direito de ser. A estimulação para o ativismo não tem de ser tão brutal que insista em queimar — com a rapidez com que arde um fósforo — todos os recursos, exteriores e interiores, que alguém possui para viver. A pressa não pode ignorar por completo a lentidão. A vida ativa não tem necessariamente de suprimir a necessidade que cada um de nós sente de contemplação.
Vêm-me ao pensamento os versos do ‘Canto Noturno de um Pastor Errante da Ásia’, do poeta Giacomo Leopardi: “Que fazes tu no céu, ó lua? Diz-me/ que fazes, silenciosa lua? [...]/ Diz-me ó lua, afinal/ que vale ao pastor a sua vida,/ ou para que te serve a ti a tua? Diz-me para que direção/ caminha este meu breve vagar/ e para onde se dirige o teu curso imortal?” Na composição, o pastor errante contempla a lua. Com que necessidade? Em busca de quê? Em busca de uma profundidade que porventura nunca conseguiremos atingir completamente, mas na qual precisamos de nos sentir imersos. Há um horizonte mais amplo, para lá da resolução individual da minha existência: ficarei incompleto, alguma porção essencial de mim ficará por se desenvolver, se nunca tiver chegado verdadeiramente a confrontar o “meu breve vagar” com o “curso imortal”. Na língua latina, a palavra contemplação deriva da junção de dois termos: cum e templum, que indicava na antiguidade o espaço aberto nas cúpulas para que se interpretassem os sinais do futuro. Contemplar é não apenas introduzir uma benéfica lentidão no nossa olhar. É também colher o tempo da vida como um tecido relacional, uma intersecção dialógica que dilata ao infinito o sentido da nossa existência.
in Semanário Expresso 18.07.2020 p 180
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2490/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/que-fazes-tu-no-ceu-o-lua-
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À PROCURA DA PALAVRA
DOMINGO XVI COMUM
Pe. Vitor Gonçalves
“Apanhai primeiro o joio e atai-o em molhos para queimar;

e ao trigo, recolhei-o no meu celeiro.”
Mt 13, 30
Prudência, paciência e humildade
As parábolas não se explicam. Têm a força de nos surpreender, de revolucionar certa geometria do pensamento que tenta “manter tudo a régua e esquadro”, propõem uma ideia alternativa, um final inesperado. Nascem do quotidiano e abrem para o infinito, para a mudança de critérios e de vida. Revelam a possibilidade de encontrar a beleza de pequenos grandes gestos. Assim se parecem as pequenas histórias do diário rádio e podcast de Tiago Alves e Ana Rita Ramos numa parceria Antena 1 – Have a Nice Day, que contam como “a solidariedade saiu à rua, destemida.” Por entre os números e as incertezas desta pandemia são boas sementes que se partilham humildemente.
Se Jesus conta histórias ligadas ao cuidado da terra é para nos falar do cuidado entre nós. Se somos capazes, com os nossos olhos, de distinguir o bem e o mal nos outros, isso não nos dá nenhum poder sobre as suas vidas. Quantas desgraças se fizeram em nome do “bem” e da “segurança”! O perigo de um juízo exterior e apressado devia manter-nos alerta para não cairmos nele. Também a parábola do grão de mostarda, tão insignificante e frutuosa ao mesmo tempo, previne-nos para os julgamentos ligados às aparências. Estas parábolas convidam-nos a três atitudes. A prudência, a que Eurípedes chamou “a grande coragem”, pois os julgamentos feitos sobre os outros e os seus comportamentos são tão falíveis! A paciência, essa “arte de esperar”, que até daquilo que é insignificante, podem surgir numerosos frutos, e do que parece igual é possível distinguir e escolher bem. E a humildade, essa condição da terra, o “húmus fecundo e disponível” para receber as sementes grávidas de vida, que coloca tudo e todos no seu lugar.
A proposta ousada de Jesus é “deixar crescer o trigo e o joio” até à colheita. Então será possível fazer a escolha entre as espigas de trigo e as ervas inúteis. Contrasta com a nossa impaciência em resolver de imediato, em eliminar o mal para que o bem triunfe rapidamente. Os discípulos de Jesus espantam-se como o mal resiste às palavras de Jesus. Estariam também tentados pela mesma impaciência que, por vezes nos invade, quando queremos que o reino de Deus se manifeste. Com o joio semeado no mundo, como no nosso coração, Deus revela-se semeador terno e paciente: Ele espera que façamos a escolha.
Ainda envolvidos pelo “joio” da Covid-19, o Conselho Pontifício da Cultura publicou o livro “Pandemia e resiliência. Pessoa, comunidade e modelos de desenvolvimento após a Covid-19”. Sorrio ao “após”; quem nos dera! Mas creio que pode ser uma interessante reflexão (acessível no original em https://www.cortiledeigentili.com/wp-content/uploads/2020/05/Pandemia-e-resilienza-9-7-2020.pdf) a iluminar esta “parábola viva” em que somos todos personagens. E junta às três atitudes que propus uma nova: resiliência!
in Jornal Voz da Verdade 19.07.2020

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