11 agosto 2019

Elogio do inútil & OS PRIVILÉGIOS DO VERÃO


Elogio do inútil

Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
1. Vivemos num tempo com algumas características deletérias. Por exemplo, não penso que seja muito favorável assistirmos em restaurantes a famílias inteiras a dedar num smartphone: o pai, a mãe, os filhos..., que quase se esquecem de comer e sem palavra uns com os outros. É bom estar informado, mas neste dedar constante perde-se o contacto autêntico da e com a família, esse estar presente aos outros mais próximos. E, com o tsunami das informações, incluindo as fakenews, fica-se sujeito ao engano, à confusão, e corre-se o risco de se estar a criar personalidades fragmentadas, alienadas, interiormente desestruturadas. E, ao contrário do que se pensa, dentro da conexão universal através das redes sociais, sofrendo uma imensa solidão.
A nossa sociedade é também avassalada pelo ruído e pela pressa. Toda a gente corre, sempre com a vertigem da pressa - para onde?, poder-se-ia perguntar. Para longe de si. Quando é que alguém está autenticamente consigo, sem narcisismo, evidentemente? E o ruído atordoador? Quem é que ainda consegue ouvir o silêncio e aquilo que só no silêncio se pode ouvir? A voz da consciência, a orientação para o sentido da vida, Deus? Quem se lembra do dito famoso de Calderón de la Barca, que escreveu que "o idioma de Deus é o silêncio"?
Parece que esta situação vem de longe. O dramaturgo Eugène Ionesco, já em 1961, se lhe referiu numa conferência, com estas palavras: "Vejam como as pessoas correm atarefadas pelas ruas. Não olham para a direita nem para a esquerda, preocupadas, de olhos fixos no chão, como cães. Caminham a direito, mas sempre sem olhar em frente, pois seguem maquinalmente um percurso já bem conhecido. Em todas as grandes cidades do mundo, é assim que acontece. O homem moderno, universal, é o homem atarefado, que não tem tempo, que é escravo da necessidade, que não compreende que uma coisa possa não ser útil; que não compreende sequer que, na realidade, o útil pode ser um peso inútil, opressivo. Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se compreende a arte; e um país onde não se compreende a arte é um país de escravos ou de autómatos, um país de pessoas infelizes, de pessoas que não riem nem sorriem, um país sem espírito; onde não há humor, não há riso, há raiva e ódio." No mesmo sentido, chamando a atenção para "as ameaças que pesam sobre uma humanidade que não tem tempo para reflectir", Ítalo Calvino escreveu: "Essas pessoas atarefadas, ansiosas, que perseguem um objectivo que não é um objectivo humano ou que é apenas uma miragem, podem de repente, ao ouvir o som de uma qualquer trombeta ou o chamamento de algum louco ou demónio, deixar-se arrastar por um fanatismo populista."
2. Chegámos, deste modo, cavando mais fundo, à raiz da desorientação deste nosso tempo. Ela encontra-se na mercantilização de tudo, em função do lucro, na subordinação à lógica dos mercados. Afinal, como observou agudamente o filósofo Giorgio Agamben, "Deus não morreu. Tornou-se Dinheiro". E Jesus já tinha prevenido: "Não podeis servir a Deus e a Dinheiro" (com maiúscula, como se fosse um nome próprio, um deus, Mammôn, em aramaico, a língua materna de Jesus). Como escreveu Nuccio Ordine, com a lógica do lucro, grande parte da Humanidade perdeu o direito de ter direitos, multidões morrem de fome; "transformando os homens em mercadoria e em dinheiro, este perverso mecanismo económico gerou um monstro, sem pátria e sem piedade, que acabará por negar também às gerações futuras qualquer forma de esperança".
A citação recebo-a emprestada de Nuccio Ordine no seu livro A Utilidade do Inútil, um manifesto a favor do "inútil". De facto, com a mercantilização de tudo e quando só vale o útil, o que serve na lógica do lucro, o que é eficaz e produtivo, a razão técnica e calculadora, tem sentido perguntar: o que vale a poesia, a grande literatura, a música, o saber pelo saber, as humanidades? É claro que neste universo utilitarista, "um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia de um utensílio e cada vez mais difícil compreender para que servem a música, a literatura, a arte".
Com a financeirização especulativa da economia, só ficam as leis cínicas do mercado e a aparente omnipotência do dinheiro. E a própria política fica reduzida a negócio(s). Já Rousseau tinha observado no seu tempo: "Os antigos políticos falavam sem descanso de costumes e de virtudes; os nossos não falam senão de comércio e de dinheiro", como se tudo o que não dá lucro fosse supérfluo ou até perigoso. Mas, então, no quadro da lógica economicista do lucro, tem sentido perguntar: porque é que nos queixamos da teia infindável da corrupção?
Martin Heidegger chamou vigorosamente a atenção para os perigos do monopólio da razão técnica, instrumental. Porque a técnica não pensa, apenas calcula. E aí temos nós a razão que apenas se interessa pelo que se mede e calcula, pela quantidade, ignorando a qualidade. Mas, então, quem somos e o que é que somos, na abertura constitutiva à Transcendência? Pensando apenas nas "finalidades técnicas" e no "para que serve?", pergunta-se: onde está a beleza de um pôr do Sol, para que serve a ternura de um beijo, o florir de um sorriso de criança, a honra, a dignidade, o pensamento crítico, a gratuidade, a filosofia, o estudo das Humanidades, o mistério do Ser e de se ser? Tudo isso é inútil? No entanto, como disse o biofísico e filósofo Pierre Lecomte du Noüy, "na escala dos seres, só o Homem executa actos inúteis", acrescentando dois psicoterapeutas, Miguel Benasayag e Gérard Schmidt, que "a utilidade do inútil é a utilidade da vida, da criação, do amor". No seu livro A Cerimónia do Chá (1906), o japonês Kakuzo Okakura intuiu que a passagem do bruto ao humano se deu com a descoberta do inútil: "O homem primitivo superou a sua condição de bruto ao oferecer a primeira grinalda à sua namorada. Elevando-se acima das necessidades naturais primitivas, tornou-se humano. Quando percebeu o uso que se podia fazer do inútil, o homem fez a sua entrada no reino da arte." Kant apresentou o belo como o que agrada desinteressadamente; o belo tem a sua finalidade em si mesmo, não é para outra coisa, é "uma finalidade sem fim".
Frente à desertificação galopante do espírito, impõe-se voltar à aparente inutilidade do "inútil", ao "fascinante esplendor do inútil", na expressão de George Steiner, que tem a ver com os valores irrenunciáveis da cultura e da educação livre, da grande música, da arte, do estudo dos clássicos e da filosofia, da dignidade livre e da liberdade na dignidade, do pensar crítico.
Concluo, com Nuccio Ordine: "Se deixarmos morrer o gratuito, se renunciarmos à força geradora do inútil, se ouvirmos unicamente este canto das sereias que nos impele a procurar o lucro, só seremos capazes de produzir uma colectividade enferma e desmemoriada que, confusa, acabará por perder o sentido de si mesma e da vida." E uma previsão que dá que pensar: cerca de um terço dos portugueses pode vir a ter perturbações de ansiedade. Um facto: está a aumentar o consumo de ansiolíticos, antidepressivos... Sem pôr em questão a imensa dívida para com a razão tecnocientífica, impõe-se interrogarmo-nos sobre se não acabámos por criar uma civilização contra nós.
in DN, 11.08.2019
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QUE COISA SÃO AS NUVENS

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
OS PRIVILÉGIOS DO VERÃO
SOMOS SEMPRE TENTADOS PELO ARTIFÍCIO. USAMOS AS COISAS PARA NOS ESCONDERMOS ATRÁS DELAS
Não raro, para olharmos a vida na sua amplidão temos de arriscar outros pontos de vista. Vivemos tão em cima dos acontecimentos, tão capturados pela sua intensidade que verdadeiramente não os conseguimos ver. Por isso é importante mudarmos de sítio, alterarmos o ponto de observação e nos distanciarmos, reencontrando assim as condições que a dada altura nos faltam para podermos ver aquilo que, talvez por estarmos demasiado perto, já não avistamos. O tracejado da vida é, como sabemos, repetitivo e habitudinário e desdobra-se como uma confortável constelação de rotinas. Certamente há nisso enormes vantagens, pois desse modo conseguimos realizar uma extensa quantidade de tarefas com um mínimo de esforço e corresponder agilmente, quase de olhos fechados, às exigências do quotidiano. O perigo maior, porém, é quando a força do hábito se substitui à força da vida. E quando o que se ganha em eficácia na gestão do imediato nos impede de escutar o que, em profundidade, nos habita. Nesse sentido, o período do verão pode corresponder a uma oportunidade. Não para um programa de evasão, como se existência pudesse ser uma coisa em fuga ou uma tarefa adiável. Mas como uma possibilidade real de encontro — na verdade, de reencontro e de audição — da inteireza que somos.
O verão pode corresponder a uma possibilidade real de encontro da inteireza que somos

Demócrito, um filósofo pré-socrático do século V a.C., que definia cada ser humano como “um pequeno universo”, ensinava que o conhecimento em que assentamos a nossa história corrente é mais parcial de quanto pensámos (ele, por exemplo, chamava “conhecimento obscuro” ao que é produzido pela vista, ouvido, olfato, gosto e tato). A este saber parcelar, feito de imagens, fragmentos e impressões, ele opunha aquele operado “por um órgão de conhecimento mais subtil”, de natureza espiritual. Para aceder a isso, contudo, não tenhamos dúvidas: precisamos de tempo. Precisamos desse bem precioso que por vezes é um privilégio oferecido pelo verão, para sairmos da vertigem das vias rápidas com que resolvemos (ou, melhor dizendo, com que empatamos) internamente a vida e voltarmos aos trilhos pacientes de terra batida, aos prados em aberto, às clareiras silenciosas do bosque, aos promontórios onde se contacta com a imensidão. Platão colocou na boca de Sócrates, na Apologia, que o bem maior concedido ao homem é a possibilidade que este tem de se interrogar sobre si mesmo, e que o infortúnio mais lesivo era ser privado dela. Não é fácil perfurar a espessa crosta daquilo que na prática sobrepomos a esta verdade nua que nos reconduz ao essencial. Somos sempre tentados pelo artifício. Usamos as coisas para nos escondermos atrás delas. Atordoamo-nos de pequeninas razões e de grandes desculpas para amortecer o impacto dessa chamada perene. Foi ainda um autor da antiguidade clássica, Menandro, que cunhou um dístico que soa assim: “Que delícia, um homem que é verdadeiramente um homem!” Trata-se do dever mais longo, desamparado e árduo que nos cabe: ser ou tornar-se aquilo que se é. Sem cumprirmos esse mandato é improvável chegar a dizer do nosso existir, “que delícia!” 
Quando o turbilhão das ocupações acidentais parece conflituar e esgotar o espaço daquilo que deveria ser a minha ocupação fundamental, ajuda-me muito recordar o título de uma obra do teólogo Paul Tillich, “A Coragem de Ser”. A coragem da aceitação da vida e do risco de viver como um destino, sentindo o chamamento a perseverar num esforço de consciência que me coloque à altura daquilo que significa a minha própria humanidade. 
in Semanário Expresso,10.08.2019




03 agosto 2019

O MAPA DO TESOURO

QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

O MAPA DO TESOURO

NÃO DEVEMOS COLOCAR DE UM LADO O SONHO DE UMA VIDA AUTÊNTICA E DO OUTRO A VIDA ORDINÁRIA QUE VIVEMOS. É NO ENCONTRO DAS DUAS QUE A NOSSA EXISTÊNCIA REFULGE

No verão apetece-nos trocar os mapas. E há um sentido que se cumpre em fazer-se à estrada, em mudar de língua, de respiração e de paisagem, em deslocar-se na procura de outros lugares. O mundo é também a nossa experiência do mundo. E precisámos disso que se avista longe, disso que se toca nos cimos intangíveis, disso que nos é dito em linguagens que porventura nem percebemos a fundo, mas que na sua recôndita estranheza reconhecemos como próxima e íntima. A verdade é que nós não somos sedentários que se tornam viajantes. Somos desde sempre viajantes que provisoriamente se demoram antes de prosseguir, de novo, o curso da viagem. Mas tal como o caminho, também a nossa demora (por provisória que, perante o nosso destino último, ela possa ser) tem um significado, oferece-nos uma razão, abre-nos uma oportunidade.

Não somos sedentários que se tornam viajantes. Somos viajantes que provisoriamente se demoram antes de prosseguir, de novo, o curso da viagem

Penso muitas vezes naquela saborosa história hassídica que o filósofo Martin Buber conta num dos seus livros. É a história de Eisik de Yékel, um judeu de Cracóvia. Os muitos anos vividos na miséria não haviam abalado a sua confiança em Deus, e ele acabou recompensado com uma revelação. Recebeu em sonhos o mandato de deslocar-se até à cidade de Praga e de procurar aí um tesouro que estaria escondido debaixo da ponte que conduz ao palácio real. A primeira vez que sonhou com isso não ligou. À segunda ficou intrigado. Quando o sonho se repetiu pela terceira vez, Eisik levou-o a sério e fez-se a pé ao longo caminho. Chegou, por fim, a Praga e dirigiu-se imediatamente à ponte, mas esta — percebeu com desânimo — era controlada, noite e dia, por sentinelas, o que tornava impossível qualquer escavação no local. Contudo, não perdeu a esperança e girava para cá e para lá ao longo da ponte. Não decorreu muito tempo até que o capitão da guarda o interpelasse perguntando se esperava alguém ou procurava ali alguma coisa. A Eisik, porém, aquele soldado deve ter parecido amistoso, pois decidiu contar-lhe o sonho que o arrastara de sua casa até aquele ponto distante. O capitão não pôde conter uma gargalhada: “E por causa de um sonho, pobre homem, viajaste até aqui, desperdiçando as solas no caminho! Quem se pode fiar em sonhos! Imagina que, se assim fosse, também eu deveria já ter peregrinado até Cracóvia e escavar na casa de um certo judeu, chamado Eisik de Yékel, para tomar posse do tesouro que se encontra debaixo do forno! Estaria metido em belos trabalhos se confiasse em sonhos e me pusesse a escavar nas casas de uma cidade estranha onde uma metade dos habitantes judeus se chama Eisik e a outra metade Yékel!” Abanava a cabeça e não parava de rir. Eisik saudou-o, tomou o caminho de regresso a casa, e desenterrou o tesouro que há muito o esperava.

Trata-se de uma história antiquíssima e encontrámo-la contada com variantes em tantas literaturas populares. Ela relata um paradoxo que nos atravessa a todos. Esta perceção, primeiro, de que existe um tesouro extraordinário que nos está prometido; segundo, que não o podemos encontrar em parte nenhuma do mundo e, no entanto, sentimo-nos incessantemente chamados a buscá-lo; terceiro, que há apenas um lugar onde o podemos achar: no lugar familiar, comezinho e banal onde se inscreve o nosso rotineiro quotidiano. De facto, não devemos colocar de um lado o sonho de uma vida autêntica e de outro a vida ordinária que vivemos. É no encontro das duas que a nossa existência refulge. O maior tesouro é poder cumprir a existência que está, aqui e agora, ao meu dispor. Uma outra história da tradição hassídica diz o seguinte: Um dia, ao receber em sua casa alguns homens ilustres, o Rabi Mendel de Koretz surpreendeu-os com esta pergunta: “Onde mora Deus?” Perante a reação embaraçada dos seus hóspedes, o próprio Rabi acrescentou: “Deus mora onde o deixamos entrar.”
in Semanário Expresso, 03.08.2019 p 148