07 maio 2015

Filipa Lowndes Vicente escreve sobre Ana Vicente

Texto escrito e lido por Filipa Lowndes Vicente no dia 29 de Abril de 2015 na missa de sétimo dia de sua mãe, Ana Vicente, na Igreja do Convento de São Domingos, Alto dos Moinhos, Lisboa. 


Não vos vou falar da minha perda, do amor profundo e cúmplice que sentia e sinto pela minha mãe, nem como me sinto uma órfã de 43 anos, a aprender a viver esta segunda parte da vida em que sou mãe mas já não posso ouvir a palavra "filha". Muitas das pessoas presentes sabem do que falo. Não somos as primeiras nem seremos as últimas.

Também não vos vou contar como, numa comunhão absurda e misteriosa, me senti fisicamente doente durante todos estes últimos meses em que a doença da minha mãe lhe começou a coartar os sentidos, as vontades e os gestos: jantar fora com o meu pai e os amigos; viajar; os concertos na Gulbenkian; as reuniões do Nós Somos Igreja e do grupo de autoajuda para doentes oncológicos que criara há poucos anos; o trabalho diário em forma de escrita - artigos de opinião, emails, mas também os livros, projectos intelectuais que sabia começar, acabar e gozar; os almoços com as tantas amigas, queridas; a leitura dos livros e jornais que transbordavam sempre da mesa de cabeceira; ou olhar para as ondas selvagens do Guincho ao fim da tarde. Só quando deixou de poder fazer tudo aquilo que lhe enchia a vida e que foi capaz de fazer plenamente durante todos estes anos, é que partiu. Quando quis partir.

Disse várias vezes à minha mãe, a brincar, como na sua forma de ser inclassificável e pouco convencional, ela combinava o melhor de ser inglesa e portuguesa. Sei que a minha mãe, no seu optimismo pragmático, agora diria, "não há nada a fazer, não vale a pena lamentarmo-nos e vamos, sim, tentar ser positivos". E eu, como a menina obediente que nunca tive que ser, porque a minha mãe também fez da maternidade uma forma de liberdade e de aceitação, vou agora tentar "obedecer-lhe", tentando transformar a minha tristeza nos três verbos que a moviam, sempre entrelaçados uns nos outros: escrever, rezar e agir. A palavra escrita, a palavra em prece e a acção. Uma forma de a lembrar-mos é a de todas, e todos nós, pormos estes verbos ao serviço de algumas das causas pelas quais lutou, naquele seu modo único de ser combativa e serena, subversiva e paciente:

1. Em primeiro lugar, e central a todas as outras inquietações, a sua consciência feminista, os direitos das mulheres, local e globalmente, nas suas relações com todas as dimensões sociais, políticas, religiosas, jurídicas ou culturais. Os modos como não só nunca teve medo da palavra "feminista", como a imbuiu dos sinónimos de justiça, direitos humanos, e prática cristã.
    
2. Em segundo lugar, as formas como fez da Igreja Católica também a sua Igreja, como a sua fé, sempre forte, ao serviço de uma transformação: o sacerdócio das mulheres, e as mulheres, em geral; uma nova posição face à sexualidade, ao planeamento familiar, à orientação sexual; uma Igreja mais pobre, próxima, e pacífica.        

3. Em terceiro lugar, e através do "Projecto Vida", as alternativas à toxicodependência numa década em que a droga se tornou uma história portuguesa que marcou tantas vidas - a daqueles que a viveram e a das pessoas que lhes eram próximas, também dos milhares de crianças que hoje ainda vivem em instituições públicas portuguesas.

4. A protecção legal, social e afectiva dos mais frágeis - dos idosos, das crianças, e das pessoas com deficiência que estão a cargo do Estado - tal como a necessidade de um novo empenho institucional e político em relação à adopção foram outras esferas profissionais que mereceram o seu empenho. Na sua acepção holística e aberta de todas as esferas humanas, a minha mãe não sabia isolar os "problemas sociais". As crianças sem a presença e o amor das mães e dos pais, a violência física contra as mulheres por parte de ex-namorados, maridos e ex-maridos, a pobreza, a droga, a maior fragilidade salarial ou laboral das mulheres, muitas vezes cruzam-se numa só pessoa ou numa só família. Proteger e defender os direitos daqueles que têm menos voz e menos poder foi outra das suas formas de ser cristã.  

5. O cancro surgiu como mais uma causa, claro. A fragilidade transformada em força. Não apenas a sua força, mas uma força partilhada com outras pessoas. Criou o grupo de autoajuda de doentes e pessoas próximas de doentes oncológicos e estava no processo de criar um grupo de apoio a pessoas em fim de vida. Quem é que toma conta das pessoas que tomam conta de outras e ficam doentes? Quem acompanha e apoia aqueles, muitos, que estão sozinhos e ficam doentes? A dignidade na morte, foi assim uma das suas últimas causas. Sobre a qual escreveu, rezou, agiu, mas também viveu. Viveu a sua morte com a dignidade que queria. E rodeada de muitas formas de amor. Os abraços e as palavras, de quem gostava dela têm sido para mim um enorme conforto.

A minha mãe morreu no dia em que cerca de 1000 pessoas também morreram nas águas do Mediterrâneo. Eu só me apercebi da dimensão do que tinha acontecido uns dias depois, porque a história é feita pela simultaneidade de muitos tempos e muitos lugares, e a nossa história individual e o nosso sofrimento tende a sobrepor-se às histórias alheias. A minha mãe tinha o dom de cruzar a sua história, e o seu caminho, com as histórias das pessoas com nome ou sem nome que lhe estavam próximas, ou que estavam do outro lado do mundo. Teria escrito um artigo para o Público sobre estas mil pessoas que não tiveram a possibilidade de ter a dignidade na morte. Agora que a minha mãe está no outro lado do caminho, já não pode escrever. Mas a sua força, as suas lutas, a sua serenidade, o seu sorriso, a sua fé podem continuar a motivar-nos para fazer deste o tal mundo melhor de que falava o seu querido amigo Frei Bento Domingues.   

Filipa Lowndes Vicente

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