1. Num dos
períodos de conflito armado mais ameaçador e de medo generalizado, dei aulas e
fiz conferências de teologia em Bogotá e Medellin. Depois de 50 anos de horror,
comoveu-me a coragem e o empenhamento do Papa Francisco, no meio de muitas
dificuldades locais, em intensificar e tornar irreversível o processo de paz, na
Colômbia.
Bergoglio não foi celebrar um país reconciliado, sem traumas
nem ressentimentos. Quis contribuir para que
todos desejem que o diálogo e a reconciliação se tornem o estilo de vida
do país.
É difícil aceitar que o ressentimento do ex-Presidente
Álvaro Uribe – que se confessa um fervoroso católico – o tenha tornado alérgico
à iniciativa do Papa que declarou aos colombianos: foi demasiado o tempo que passaram no ódio e na violência; não queremos
que mais nenhuma vida seja anulada ou restringida. A conversão não é um
acontecimento impossível.
Bergoglio não escolheu apenas o nome de Francisco de Assis.
Em todo o lado, na Europa, no Oriente, em África, nas Américas, na Ásia, a sua
vontade é realizar a oração que dele recebeu: Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz; Onde houver ódio, que eu leve o amor; Onde houver discórdia, que eu leve a
união; (…); Pois é dando que se recebe; É perdoando, que se é perdoado; é morrendo que se vive para a vida eterna.
Mas se este é o espírito e o comportamento do Papa, porque
suscitará ele tanta oposição?
2. Uma revista
jesuíta[1] resolveu divulgar um texto
de um biblista italiano, Alberto Maggi, membro
da Ordem dos Servos de Maria, intitulado: Desilusão.
O autor desenhou uma tipologia que alguns
julgarão simplista, mas talvez seja apenas tão exacta que lhe baste ser
simples.
Segundo ele, tudo começou com um murmúrio discreto, que se
tornou uma queixa e se foi ampliando. Agora, a resistência já é declarada: um
confronto público, por vezes uma provocação acompanhada de ameaças de um cisma.
Francisco, em pouco tempo, conseguiu decepcionar quase
todos. Esta decepção de ressentimento encapotado converteu-se em algo que está
à vista de quem quiser ver. Alguns dos cardeais que o elegeram estão
desiludidos. Parecia o homem ideal, sem esqueletos nos armários, doutrinalmente
conservador, mas aberto às novas ideias. Com ele poder-se-ia garantir um tempo de
paz no meio dos escândalos da Igreja, um período sem turbulências nem divisões.
Nunca imaginaram que Bergoglio tivesse a intenção de
reformar a Cúria Romana, de acabar com os seus privilégios e fustigar as
vaidades do clero. A sua presença, simples e espontânea, é uma acusação
constante aos prelados pomposos, faraónicos, anacrónicos, cheios de si mesmos.
Os bispos carreiristas estão decepcionados. A nomeação para
uma cidade era só um passo para uma posição de maior prestígio. Estavam prontos
a clonar-se com o pontífice de serviço, imitá-lo sempre em tudo, desde os
gestos externos até aos doutrinais, fazer qualquer coisa para lhe agradar e
obter os seus favores. Agora, vem este Papa e convida os bispos ambiciosos e
vaidosos a ter o cheiro das suas ovelhas…
Que horror!
Uma parte do clero também está decepcionada. Esse clero sente-se
perdido. Criado no estrito cumprimento da doutrina, indiferente ao povo de Deus,
já não sabe que fazer. Tem de recuperar um sentido de “humanidade” que o
escrupuloso cumprimento das normas da Igreja tinha atrofiado. Pensava que
estava, como “sacerdote” (presbítero), acima dos fiéis e, agora, este Papa
convida-o a descer e a colocar-se ao serviço dos últimos…
Decepcionados também estão os leigos empenhados na renovação
da Igreja, assim como os tradicionalistas super apegados ao passado. Para estes
últimos, o Papa é um traidor, a ruína da Igreja. Para os primeiros, não está a
fazer o suficiente, não muda nem as regras nem as leis que já não estão em
sintonia com os tempos, não legisla, não usa a sua autoridade como “comandante”
da Igreja…
Os mais entusiasmados com ele são os pobres, os
marginalizados e invisíveis e, também, aqueles cardeais, bispos, padres e
leigos que, durante décadas estiveram afastados por causa da sua fidelidade ao
Evangelho, encarados com suspeita e perseguidos por causa da sua mania louca de
ligar mais à Sagrada Escritura do que à tradição.
Aquilo que só haviam esperado, sonhado ou imaginado
converteu-se numa realidade com Francisco, o Papa que fez descobrir ao mundo a
beleza do Evangelho.
3. Alberto Maggi
não tinha de falar de tudo. Os leitores portugueses podem e devem completar os
mapas locais e o mundo das suas relações cujas percepções serão, naturalmente,
muito variadas.
Pelo que ouço dizer e observo, em Portugal, existem
movimentos e orientações paroquiais, discretamente empenhados em contrariar as
consequências dos gestos, das palavras e das intervenções do Papa. Quando ele
diz que a reforma litúrgica é irreversível, esses movimentos, organizações e personalidades
não fazem declarações públicas de que estão contra ela. Adoptam gestos e
devoções que a contrariam. Isto sem falar nos textos que escrevem para mostrar
que o Papa é um homem de boa vontade, mas incompetente do ponto de vista
teológico, para orientar a Igreja. O que lhe falta em teologia sobra-lhe em
atrevimento e falta de respeito pelo Direito Canónico.
No meu ponto de vista, seria péssimo que os gestos e as
atitudes do Papa não fossem discutidos. O uso da liberdade de expressão na
Igreja é um direito e um dever. Aliás, é o que este Papa mais exerce e mais
deseja para todos. O que é inaceitável é que sejam aqueles que sempre atacaram
a liberdade no passado, usem todos os meios para restaurar um tempo em que só
eles e os da sua tendência tinham direito de expressão. Servir-se de um tempo
de liberdade para a destruir, não é o caminho da ética humana e cristã mais
respeitável.
P.S. Foi no dia em que escrevi esta crónica que soube da
morte do Bispo do Porto, António Francisco dos Santos, o Bispo português de
quem mais gostava e que sempre me acolheu com muita amizade.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 17.09.2017
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