07 janeiro 2012

Dizia-me aqui há tempos uma jovem minha conhecida que a mãe dela não permitia que se falasse da crise em casa: “enquanto tivermos de comer e ninguém na família estiver desempregado, não se fala de crise cá em casa!” Compreendo a afirmação e respeito-a: sei que é uma família que luta com dificuldades, na qual a filha tem de trabalhar para conseguir estudar. E, no entanto, consideram falta de respeito pelos desempregados chorar-se por causa da crise. O que eu tenho muita dificuldade em aceitar é o discurso de desvalorização da crise por parte de pessoas que, provavelmente, não serão atingidas por ela. Ultimamente, tem havido até cristãos católicos a fazerem discursos de elogio do valor espiritual das crises. É sabido que, bíblica e filosoficamente, “crise” significa encruzilhada, momento de viragem, possibilidade de conversão. Mas, no país que temos atualmente, no qual há tanta gente no limiar da sobrevivência, fazer o discurso de elogio cristão da crise a partir de lugares bem instalados poderá contribuir para dar razão a Marx, quando ele dizia que “a religião é o ópio do povo”. Pior ainda poderá ser aliar este discurso de “elogio da crise” a um silêncio ingénuo ou calculado face às múltiplas razões da mesma. É que não me parece que estejamos apenas perante uma crise de valores individuais, embora me pareça bastante que estamos perante uma crise de valores estruturais, sociais, em suma, perante uma crise que clama por justiça. Também não me parece que possamos dizer apenas alegremente que “a Igreja está sempre em tempo de austeridade”. Há causas estruturais, repito, e não só responsabilidades individuais que levam à situação em que nos encontramos. E nem sempre será fácil convencer o comum dos mortais de que a Igreja está sempre em tempo de austeridade... Sobretudo, este tipo de afirmações um tanto light pode constituir uma bofetada na cara de quem, realmente, não fez na vida senão uma experiência de austeridade forçada ou de quem se encontra, agora, por motivos para os quais não contribuiu, numa situação de inesperada precariedade. Louvo, obviamente, todas as iniciativas de solidariedade social por parte dos cristãos (e não só). Mas a pergunta de D. Hélder da Câmara continua a ser um desafio para todos nós: “porque será que, quando ajudo um pobre, me dizem que sou um santo, mas, quando pergunto por que há pobres, me dizem que sou comunista?” O elogio da “pobreza evangélica” sem um clamor contra a injustiça não reduzirá a religião a mais um instrumento nas mãos das estruturas geradoras de pobreza?

Teresa Toldy


6.1.2012

5 comentários:

  1. Concordo plenamente. Ouvimos discursos de gente que elogia a austeridade dos outros, mas nunca tocou nela sequer com um dedo. E o essencial é atacarmos a raiz dos problemas. Dar de comer a quem tem fome é urgente e humano, mas dar condições para que as pessoas, pelos seus próprios meios, deixem de ter fome é supremamente humano.

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  2. CRISE A RIMAR COM OPORTUNIDADE
    Algumas pessoas usam constantemente a palavra «crise» para mascarar e camuflar a falta de esforço e perseverança, o comodismo e, principalmente, a resistência em aceitar mudanças. Fala-se em falta de oportunidades, mas as oportunidades não caem do céu, elas são, sempre, resultado proveniente do investimento e empenho nas nossas habilidades e talentos. As oportunidades acontecem para quem procura e investe em si mesmo.
    A origem da palavra «oportunidade» está ligada à arte de navegação, vem do termo latino opportunus, que significa favorável, adequado, desejável. E a raiz é obportus, que significa para o porto, o que muitas vezes era mais que necessário em tempos de navegação precária. Oportunidade é, assim, um momento propício para se rever, crescer e avançar. Oportunidade é passar por um porto e fazer desse porto, sempre provisório, uma porta para uma viagem melhor, mais bem sinalizada e mais segura.
    (Professor Abel Dias, revista Audácia, janeiro 2012: www.audacia.org)

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  3. A necessidade de esforço individual não pode ofuscar a necessidade de mudanças estruturais — até o Papa João Paulo II falava de pecados estruturais. Enfrentar a crise apelando apenas a esforços e entusiasmos pessoais é como tentar curar um cancro pondo pensos em feridas.

    Se a crise traz oportunidades, isto acontece mais ainda para quem tem responsabilidades a nível governamental.

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  4. Gostei muito do teu texto, Teresa.
    É bom nunca esquecermos quando falamos da crise como oportunidade que "nunca tivemos fome".
    Para algumas pessoas, a crise é uma oportunidade para deslocalizarem (como agora se diz) o seu dinheiro e pô-lo a salvo.E o mais interessante é que muit@s católic@s dizem que cada pessoa tem o direito de fazer dos seus bens o que quiser. Será mesmo assim?
    Aqui tenho de recorrer a um filósofo moderno, Kant, que fez uma distinção básica que está a fazer muita falta no nosso mundo político e social. Estabeleceu ele que havia uma diferença fundamental entre o plano da legalidade e o da moralidade. Uma coisa pode ser legal e, ao mesmo tempo,não ser moral e poder mesmo ser imoral. Aqui impõe-se a pergunta: o que é que define o humano, a lei ou a ética? Talvez nos devamos socorrer da resposta de Jesus a propósito do sábado e da lei.
    Obrigada, Teresa.

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  5. A palavra "crise" está tem estado na boca dos portugueses desde já há muitos anos. Recordo-me que já em 1999, quando eu andava na faculdade, essa palavra surgia nos discursos que eu ouvia aqui e ali. E nos anos seguintes continuou-se a falar da "crise". O que não sabíamos é que ela se ia tornando maior, maior... e assim continua a crescer. É uma situação preocupante, pois o que está por detrás desta palavra são realidades de sofrimento: fome, privações, angústias, choro,...
    "O que eu tenho muita dificuldade em aceitar é o discurso de desvalorização da crise por parte de pessoas que, provavelmente, não serão atingidas por ela." Sinto as suas palavras como minhas, pois também oiço por vezes a negação da crise, o que revela uma falta de solidariedade e em certas situações inconsciência, incompreensíveis.
    Este seu texto trouxe uma luz ao meu olhar sobre a realidade, fez-me meditar na "possibilidade de conversão", na "encruzilhada" em que se encontra a sociedade e talvez a humanidade. Temos de rezar muito...
    Relativamente à pobreza evangélica, este é um tema importante e com muito para reflexionar. Escolho a pobreza que traz a felicidade, anunciada por Jesus, mas sobre a qual tenho tanto para descobrir... É um caminho a fazer, com Jesus,o nosso Mestre.
    Obrigada pelo texto com que nos contemplou, é sempre tão bom ouvi-la! Tenho uma profunda admiração pela sua pessoa.

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