25 junho 2017

UM INVESTIGADOR ORIGINAL

       1. Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925) diz que, no período medieval, “a literatura portuguesa, em matéria de traduções bíblicas, é de uma pobreza desesperada”. Esta afirmação tem sido repetida, mas nunca desmentida. A primeira tradução da Bíblia, a partir de hebraico e do grego, foi realizada por João Ferreira d’Almeida que tinha passado, aos catorze anos, do catolicismo ao protestantismo (Igreja Reformada Holandesa). A sua tradução foi publicada e corrigida entre os séculos XVII e XVIII.
       José Nunes Carreira sintetizou a história da Exegese Bíblica em Portugal[1] nos seus momentos altos e baixos.
       Frei Francolino Gonçalves foi um dos seus momentos mais importantes. Fez parte dos grandes investigadores da famosa Escola Bíblica de Jerusalém (EBJ), a responsável, desde os finais do séc. XIX, pelo estudo científico da Bíblia, no campo católico. Para dar a conhecer as dificuldades desse grande salto, aconselhou que fosse editada, em Portugal, uma obra incontornável do seu fundador, Marie-Joseph Lagrange, O.P.[2]
     Frei Francolino morreu, em Jerusalém, no dia 15 de Junho. Nasceu em Curujas, Macedo de Cavaleiros, a 28 de Março de 1943. Professou na Ordem Dominicana em 1960.
      Nunca procurou fazer carreira. Seguiu o caminho de preparação para ser uma testemunha lúcida do Evangelho. Depois dos estudos curriculares, em filosofia e teologia, em Portugal e no Canadá, foi enviado para a EBJ. Aí e durante 43 anos, trabalhou como investigador e professor. Considerou-se, até ao fim, como um estudante. Foi solicitado para fazer cursos e conferências em Paris, Berlim, Salamanca, Roma, Portugal, Tóquio, Quebec, Cusco, Lima, Santiago do Chile, México, mas as suas responsabilidades de investigador, de preparação de novos investigadores e de publicações científicas estiveram sempre ligadas à EBJ. Era a sua casa, de vida e trabalho, num contexto de atentados permanentes contra os direitos humanos.
       Reconhecido nos meios da investigação bíblica como uma das suas grandes figuras, de alcance internacional. Ao ser convidado para Membro da Comissão Bíblica Pontifícia, e reconduzido pelo Papa Francisco, alguns meios de comunicação católica portuguesa acordaram para uma realidade que ignoravam.
Em Portugal, foi premiado, em 2011, pela Academia Pedro Hispano, é membro da Academia Portuguesa de História, do conselho científico de CADMO, da Revista Lusófona Ciências das Religiões, do ISTA e da Associação Bíblica Portuguesa.
       Quem desejar conhecer a sua bibliografia pode recorrer ao site Bibliothèque St Étienne de Jérusalem - École Biblique et Archéologique Française[3]. Em Portugal foi, sobretudo, nos Cadernos ISTA que publicou alguns dos seus estudos mais significativos[4].
       Espero que, em breve, sejam publicados em livros. Todas as vezes que tentei que isso acontecesse, dizia-me sempre que gostaria ainda de rever o conjunto, como obra unificada. A sua insatisfação nada pôde contra a morte.
       2. Frei José Nunes, O.P. na celebração da Eucaristia de evocação de Frei Francolino, referiu-se a um dos seus estudos  decisivos e inovadores sobre as representações de Deus nas duas religiões iaveístas do Antigo Testamento (AT)[5], isto é, a existência de dois iaveísmos diferentes. Esse estudo é muito extenso e muito analítico.
       A eleição de Israel, a sua libertação do Egipto e a aliança que Iavé fez com ele são os artigos fundamentais da fé iaveísta.
      Esta era a opinião comum que fazia das relações entre Iavé e Israel a matriz do iaveísmo. Tornou-se, para vários autores, uma posição insustentável. Era contestada a opinião corrente liderada por uma grande figura da exegese, von Rad. A própria constituição dogmática Dei Verbum, do Vaticano II, deve muito à teologia desse teólogo luterano. Mas, na sequência de outros investigadores, Frei Francolino mostrou, pelo contrário, que o AT contém duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.
     Segundo o Fr. Francolino, os exegetas não prestaram a atenção que mereciam estas vozes discordantes.  A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso, ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores nem, por maioria de razão, do público cristão. “As minhas pesquisas, nesta matéria, confirmaram, essencialmente, os resultados dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT, que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro, na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT”.
       3. Qual é a importância da descoberta de dois iaveísmos? Julgo-a de grande alcance para todos os leitores do AT e considero-a uma das raízes do universalismo cristão. É a diferença entre um Deus universalista, Deus de todos os seres humanos e da criação, casa comum de todos, e a representação de um Deus nacionalista que confunde o Mundo com os interesses de um povo, capaz não só de o defender, mas de se tornar inimigo dos outros povos, podendo até mandá-los exterminar.
       É esta distinção que nos pode ajudar a compreender o sentido e o absurdo da violência de muitas páginas da biblioteca do povo de Israel. Colocou-se na boca de Deus os interesses de um povo contra os outros povos. Não pode ter sido o Deus do Universo a escrever essas blasfémias.
      Quando tropeçamos nessas passagens, devemos perguntar: que causas e interesses defendem?
       Frei Bento Domingues, O.P.
       in Público, 27.06.2017


      NOTA: Poderá encontrar mais referências a Frei Fracolino e à sua obra no Google
[1] Exegese Bíblica, Dicionário de História Religiosa de Portugal, C-I, Círculo de leitores, 2000, pp 221-229.
[2] Recordações pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia, Biblioteca Dominicana, Tenacitas, 2017.
[4] http://www.ista.pt/1/upload/ista_25_2012.pdf, pp 92-136; Artigos Fr. Francolino p117.
[5] Iavé, Deus de justiça e de bênção, Deus de amor e salvação, ISTA, nº 22, 2009, pp 107-152, ver, sobretudo, pp 114-115

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