1. No passado dia
21, o Grémio Literário evocou os 500 anos «dos acontecimentos que abalaram a Europa na sequência do acto
simbólico que marcou o início do movimento religioso e cultural na Cristandade
e que ficou registado na História sob a designação de Reforma. Foi a 31 de
Outubro de 1517 que Martinho Lutero afixou nas portas da igreja de Wittenberg
as suas 95 famosas teses, que acabaram por conduzir a um cisma profundo e
durável na Igreja de Roma».
Segundo a
tradição, isto aconteceu na véspera da festa de Todos os Santos. A dramatização
desta data deu origem à Festa da Reforma, embora a sua fundamentação histórica
seja questionada, dado que a narrativa é de Melâncton, em 1546, depois da morte
de Lutero.
O V Centenário da Reforma já foi inaugurado, na Alemanha, em
2008, como a Década de Lutero.
É uma ocasião para os historiadores da cultura, da política
e da teologia reexaminarem cinco séculos de história extremamente complexa e,
talvez, colherem algumas lições para o nosso presente de renovados fanatismos
políticos e religiosos.
A Ausência de Lutero em Portugal foi o título da minha intervenção. Portugal
não é a pátria de Lutero e os portugueses também não o puderam acolher no séc.
XVI, nem com discernimento nem sem discernimento. Além disso, e não só em
Portugal, ser bom católico era dizer mal dos protestantes e ser bom protestante
eram dizer mal dos papistas.
Para assinalar os quatrocentos e cinquenta anos da sua
morte, o Centro de Estudos de Teologia/Ciência das Religiões, da U. Lusófona, realizou
um importante Colóquio, cujos contributos já estão publicados. Merecem
reedição. Tentei, no Prefácio, explicar as razões da ausência de Lutero entre
nós[i].
O P. Carreira das Neves com o seu Lutero. Palavra e Fé tenta preencher essa lacuna: «O tema que vamos
tratar tem sido objecto de milhares de livros, artigos e pronunciamentos
religiosos, políticos, sociológicos, filosóficos. Só estranha o facto de nenhum
autor português ter assumido, nestes quinhentos anos que nos separam de Lutero,
a responsabilidade de escrever sobre esta pessoa que está na origem do
protestantismo luterano e das igrejas evangélicas»[ii].
Ausente em Portugal, teve mais sorte no Brasil, onde já
foram publicados 12 volumes das Obras
Seleccionadas de Martinho Lutero[iii].
O
luterano Artur Villares pergunta: «Cinco
séculos depois, com a poeira da História a assentar e as polémicas, ódios e
extremismos definitivamente encerrados nas prateleiras da apologética de todos
os participantes, o que significa, para o homem de hoje, o nome de Martinho
Lutero? Para muitos nada; para outros tantos, um mero revoltado, um rebelde,
que destruiu a unidade da Igreja do Ocidente; para outros ainda, uma figura
histórica, de assinalável grandeza, um dos construtores do mundo moderno. E
para os luteranos? Naturalmente que a herança de Lutero é imensa: foi o pai do
alemão moderno; foi o autor de uma vasta obra teológica, que hoje abarca cerca
de cem volumes; dignificou o casamento, dando ele próprio o exemplo, ao casar
em 1525 com a ex-freira Catarina de Bora, de quem teve seis filhos. Compôs
dezenas de hinos, reestruturando o canto congregacional na Igreja. Reafirmou o
sacerdócio universal de todos os crentes e introduziu o vernáculo como língua
litúrgica. Inspirou grandes mestres da música, como Bach e Mendelssohn. E tudo
isto, sem dúvida foi entrando no património das igrejas após Lutero»[iv]
O dominicano, Yves Congar,
investigador da obra de Lutero, concluiu que ele «é um dos maiores génios
religiosos de toda a história. Coloco-o no mesmo plano que Santo Agostinho, São
Tomás de Aquino ou Pascal. (…) Ele repensou todo o cristianismo. Ofereceu-nos
uma nova síntese, uma nova interpretação»[v].
2. Não cabe
nesta crónica apresentar todas as razões que fizeram de Lutero um ausente da
nossa cultura, da cultura que se desenvolveu em diálogo com a Reforma. Frei
Jerónimo de Azambuja (†1562), grande exegeta da Bíblia, declarou no Concílio de
Trento que «em Portugal, graças à providência divina e aos cuidados do rei
muito cristão, não se vislumbra qualquer sinal da heresia luterana que enche o
mundo». De facto, os contactos testemunhados de portugueses com Lutero foram
escassos. Os métodos da Inquisição, o controlo dos livros nos portos e nas livrarias
construíram adequadas barreiras de protecção contra o contágio luterano.
No século XVI, quando se
queria insultar gravemente alguém, bastava chamar-lhe Lutero. D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga,
aguentou muitas insolências de alguns cónegos, mas protestou vivamente quando o
apelidaram de Lutero[vi].
3. Muitos
passos de aproximação e de entendimento mútuo já foram dados entre católicos e
luteranos. Em 1999, foi assinada a Declaração
Conjunta sobre a Doutrina da Justificação. O Papa Francisco, na
viagem ecuménica à
Suécia, entre 31 de Outubro e 1 de Novembro de 2016, no contexto da comemoração
católico-luterana dos 500 anos da reforma protestante, assinou uma declaração comum com o presidente da Federação Luterana
Mundial.
A fórmula Ecclesia
semper reformanda é antiga. A Igreja quando não vive em processo de
contínua reforma, deforma-se. É da sua condição humana e cristã. Somos
justificados pela graça de Deus e pecadores pelo mau uso da nossa liberdade.
Para não envelhecer, é preciso renascer, deixar-se transformar.
O que mais me espanta não são os 500
anos de ausência de Lutero em Portugal. O que me desconsola é a nossa
resistência passiva à reforma, muito mais abrangente e global, desencadeada
pelo Papa Francisco, o segundo Papa dos tempos
modernos, verdadeiramente católico, isto é, de abertura universal. O primeiro
foi João XXIII.
A resistência à reforma dos
ministérios ordenados está a privar a
Igreja Católica dos serviços mínimos sacramentais às comunidades. Os padres,
que são cada vez menos, tornaram-se robots
de missas, baptizados e casamentos.
Será que nas resistências
às reformas de Bergoglio se esconde a aposta na 4ª Revolução Industrial para
seminários de robots mais
sofisticados?
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 02.07.2017
[i] Martinho Lutero. Diálogo e Modernidade, Prefácio de Frei Bento
Domingues, Edições Universitárias Lusófonas, 1999.
[ii] Pe. Carreira das Neves,
Lutero. Palavra e Fé, Presença, Lisboa, 2014, p.17.
[iii] Responsabilidade da Comissão Interluterana de Literatura.
São Leopoldo.
[v] Cf. Pe. Carreira das
Neves, Op. Cit., pp. 419-422.
[vi]
Cf. Martinho Lutero. Diálogo e
Modernidade, pp. 7-12.
Sem comentários:
Enviar um comentário