1. A
guerra de insultos entre ciência e religião só pode ser alimentada e divulgada
pelo persistente desconhecimento da natureza destas duas atitudes e práticas,
igualmente humanas e diversas. Não são concorrentes, pois não brotam das mesmas
perguntas, nem seguem os mesmos caminhos. Uns são os métodos da investigação
científica, outros os percursos da experiência religiosa.
Certas
formas de ateísmo contemporâneo, com ou sem invocações científicas, pretendem
mostrar que a religião é um veneno. Para os adversários deste neoateísmo
trata-se, apenas, “da última superstição”. São, de facto, duas apologéticas
ideológicas. Deliciam-se a encontrar as formas mais sofisticadas ou mais
grosseiras de se desqualificarem mutuamente. Distorcem um debate necessário,
que não pode ser feito nesses termos, nem nesse clima crispado e de propaganda[1].
Muito
diferente é o estilo de Francisco J. Ayala, um biólogo, membro da Academia
Nacional das Ciências dos USA, que também teve uma exímia preparação teológica.
Ao terminar a sua obra sobre a evolução e a fé religiosa mostra que elas não
são incompatíveis. Os crentes podem ver a presença de Deus no poder criativo do
processo de selecção natural, descoberto por Darwin. Como este escreve no final
da Origem das Espécies, “existe grandeza nesta concepção de que a vida,
com as suas diferentes forças, foi alentada pelo Criador … e que, a partir de
um princípio simples se desenvolveram uma infinidade de formas, as mais belas e
poderosas”[2].
Hoje,
existem bastantes pessoas com preparação científica e teológica para não se fazer
de uma teoria científica e de uma convicção de fé religiosa um campo de
batalha. Na religião não vale tudo. Jesus Cristo passou o tempo a denunciar a
religião em que foi criado quando ela não servia a vida e alegria dos seres
humanos.
2. O Papa Francisco[3], no passado
dia 18 de Novembro, ao receber os Membros, Consultores e Colaboradores do Pontifício Conselho para a Cultura,
assumiu, no seu discurso, uma posição descontraída, como se fosse absolutamente
normal a Igreja ser desafiada e desafiar a questão das questões, a questão antropológica, e encontrar as
linhas futuras de desenvolvimento da ciência e da técnica.
Bergoglio
realçou que este Conselho para a Cultura tinha concentrado a sua atenção, de
modo particular, em três
tópicos.
O primeiro é sobre a medicina e a
genética, que nos permitem olhar para dentro da estrutura mais íntima do
ser humano e até intervir nela para a modificar. Tornam-nos capazes de debelar
doenças que até há pouco tempo eram consideradas incuráveis; mas abrem, também,
a possibilidade de determinar os seres humanos, “programando”, por assim dizer,
algumas das suas qualidades.
Em segundo lugar, as neurociências que
oferecem cada vez mais informações sobre o funcionamento do cérebro humano.
Através delas, realidades fundamentais da antropologia cristã como a alma, a
consciência de si e a liberdade aparecem, agora, sob uma luz inédita e até
podem ser postas seriamente em discussão por parte de alguns.
Finalmente, os incríveis progressos
das máquinas autónomas e pensantes, que em parte já se tornaram
componentes da nossa vida quotidiana, que nos levam a meditar sobre aquilo que
é especificamente humano e nos torna diferentes das máquinas.
Todos estes desenvolvimentos científicos e
técnicos induzem algumas pessoas a pensar que nos encontramos num momento
singular da história da humanidade, quase na alvorada de uma nova era e no surgimento de um novo ser humano, superior àquele que
conhecemos até agora.
As interrogações e as questões que devemos
enfrentar são graves. Por isso a Igreja, que acompanha, com atenção, as
alegrias e as esperanças, as angústias e os medos do nosso tempo, deseja
colocar a pessoa humana e as questões que lhe dizem respeito, no centro das suas
próprias reflexões.
A antropologia é o horizonte de auto
compreensão no qual todos nos movemos, diz o Papa, e determina a nossa noção do
mundo e as escolhas existenciais e éticas. Hoje, apercebemo-nos de que os
grandes princípios e os conceitos essenciais são constantemente postos em
questão, inclusive com base num maior conhecimento da complexidade da condição
humana. Exigem novos aprofundamentos. Por outro lado, as mudanças
socioeconómicas, os deslocamentos de populações, os confrontos interculturais,
a propagação de uma cultura global e, sobretudo, das incríveis descobertas da
ciência e da técnica inscrevem-se num contexto mais fluido e mutável.
3. Bergoglio pergunta: Como reagir a estes desafios?
Antes de tudo, diz, devemos expressar a
nossa gratidão aos homens e às mulheres de ciência pelos seus esforços e pelo
seu compromisso a favor da humanidade.
Este apreço pelas ciências, que
nem sempre soubemos manifestar, continua o Papa, encontra o seu fundamento
último no desígnio de Deus, que nos
escolheu antes da criação do mundo como seus filhos adoptivos[4], confiando-nos o
cuidado da criação: cultivar e
salvaguardar a terra[5].
Precisamente porque o ser humano é imagem
e semelhança de um Deus que criou o mundo por amor, o cuidado de toda a criação
deve seguir a lógica da gratuidade e do amor, do serviço e não do domínio nem
da prepotência.
A ciência e a tecnologia ajudaram-nos a
aprofundar os confins do conhecimento da natureza e, em particular, do ser
humano. Elas sozinhas não são suficientes para todas as respostas. O ser humano
tem outras dimensões. É necessário recorrer aos tesouros da sabedoria
conservados nas tradições religiosas do saber popular, à literatura, às artes e
a tudo o que toca o mistério da existência humana, sem esquecer a filosofia e a
teologia.
Não
estamos no pior nem no melhor dos mundos. Os progressos científicos e
tecnológicos são incontestáveis, mas a quem aproveitam? Quem são os seus
beneficiários? Servem para o
bem da humanidade inteira ou criam novas desigualdades? As grandes decisões
sobre a orientação da pesquisa científica e sobre os investimentos que exigem
devem ser tomadas pelo conjunto da sociedade ou ditadas apenas pelas regras do
mercado ou pelo interesse de poucos?
Com o Papa Francisco entramos numa Igreja
que aceita ser desafiada, mas que desafia, não como quem manda, mas como quem
serve a casa comum
in Público 10.12.2017
[1]
Edward Feser, A última superstição. Uma
refutação do neoateísmo, Ed. Cristo Rei, Belo Horizonte, 2017
[2]
Cf. Darwin y el Diseño Intekigente.
Creacionismo, Cristianismo Y Evolución, Alianza Editorial, Madrid, 2008, pp
206-207
[3]
Discurso do Papa Francisco ao Pontifício Conselho para a Cultura
[4]
Ef 1, 3-5
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