1. A narrativa bíblica do mito da criação não pertence ao mundo da
ciência, mas ao da poética teológica. Não se situa, por isso, em competição com
nenhuma teoria da origem e do desenvolvimento do universo. Confessa que de Deus
apenas pode vir o bem e a beleza. Apresenta
o Criador encantado com a sua obra, ritmada pelos dias e pelas noites, cheia de
tudo o que é bom. Nesse poema, o ser humano – homem e mulher – é a coroa
da terra, imagem do infinito mistério do amor. Ao sétimo dia, Deus repousou para
celebrar a obra admirável da vitória sobre o caos[1].
É uma astuciosa metáfora da legitimação religiosa
do descanso semanal: “Não farás trabalho algum, tu, o teu filho e a tua filha,
o teu servo e a tua serva, os teus animais, o estrangeiro que está dentro das
tuas portas. Porque em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e
tudo o que há neles, mas no sétimo dia
descansou” [2].
Estamos perante a sacralização de uma
grande instituição civilizacional. O ser humano não existe só para trabalhar.
Precisa de tempo para viver e exprimir muitas outras dimensões da sua vida. A
abertura a Deus revela a transcendência de todos os seres humanos, sujeitos de direitos
e deveres continuamente ameaçados.
Nada, porém, está automaticamente
garantido na Casa Comum, como lembrou
o Papa Francisco na Laudato SI.
Sem opções éticas para regular os dias e
as noites, as relações interpessoais, familiares, sociais, económicas,
políticas e religiosas, estamos ameaçados de voltar ao caos.
O universo humano é uma associação frágil
de natura e cultura. A vontade de
tudo controlar, a obsessão da lei, de tudo regulamentar de uma vez para sempre,
a perda do sentido do humor, do dever sem prazer, tornam a vida, uma neura.
Quando as instituições humanas são apresentadas
como realizações da vontade de Deus caem na idolatria escravizante. O grande
dia da divina liberdade é transformado numa prisão
sacralizada.
2.
Jesus de Nazaré, ao apresentar-se
como o profeta do Reino de Deus, identificou-o com o advento do reino da
libertação e da alegria. Teve, por isso, de enfrentar a escrupulosa regulamentação
rabínica do Sábado, pois o seu resultado era terrível: nesse dia, os animais
tinham mais sorte do que os seres humanos[3]. Jesus resolveu atacar
essa perversão, mediante uma sistemática provocação. O chefe de uma sinagoga,
indignado com a atitude de Jesus, virou-se para a multidão e disse: há seis dias de trabalho, vinde nesses dia e
não no dia de Sábado.
Os narradores do Evangelho são unânimes: era
ao Sábado que Jesus fazia o que a religião oficial proibia. Nós, os cristãos, julgamos
que é um assunto ultrapassado. É, apenas, uma questão judaica. Fazemos muito
mal em reagir assim.
A razão apresentada por Jesus, para
fundamentar as suas atitudes, era radical: o
Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. Atacava,
assim, o fundamentalismo religioso para todos os tempos e lugares. Deus nunca
pode ser invocado para a infelicidade. Não se pode louvar a Deus sem cuidar da
libertação, da cura e da alegria dos afectados pelo sofrimento.
As atitudes de Jesus, em relação às prescrições
do Sábado, questionam a nossa miopia: as leis e os regulamentos das Igrejas são
para o ser humano ou é o ser humano para essas leis?
Muitas das controvérsias, antes, durante e
depois do Vaticano II, esquecem esse dado elementar. Não são as leis
eclesiásticas que mandam no Evangelho de Jesus. É este que questiona,
permanentemente, as leis que inventamos: fazem bem ou mal à libertação dos
cristãos? São para fazer desabrochar a nossa alegria ou para nos mergulhar na
tristeza?
O enunciado de Jesus tem um alcance
filosófico e teológico muito mais amplo, diria, universal. Todas as
instituições têm de ser submetidas a esta interrogação: servem ou atraiçoam o
desenvolvimento humano?
3. Não pretendo, com a contenda do Sábado,
desvalorizar o significado dessa instituição civilizacional. O texto de S.
Marcos, seleccionado para a Missa deste domingo, manifesta, pelo contrário, que
o próprio Jesus sentiu necessidade de férias para si e para os seus
colaboradores: Vinde, retiremo-nos para
um lugar deserto e descansai um pouco.
Eram tantos os que iam e vinham, que nem
tinham tempo para comer. Foram, pois, de barco, para um lugar isolado, sem mais
ninguém. Por desgraça, ao vê-los afastar, muitos perceberam para onde iam.
De todas as cidades acorreram, a pé, àquele lugar, e chegaram primeiro do que
eles. Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles,
porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas
coisas[4], e lá foram as férias!
Não teve mais sorte com as tentativas de
férias no estrangeiro, em Tiro e Sídon. O mesmo evangelista conta que, no
território de Tiro, Jesus entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse. Não
conseguiu. Uma gentia, siro-fenícia de origem, lançou-se aos seus pés e
pedia-lhe que expulsasse, da filha, o demónio.
Para entender o desenvolvimento deste
texto, importa saber que os judeus tratavam os estrangeiros como cães. Aliás, na
versão de Mateus, Jesus esclarece que a sua missão se limitava às ovelhas
perdidas da casa de Israel. Por isso, não era justo que se tomasse o pão dos
filhos para o lançar aos cachorros.
Neste caso, Marcos é mais simpático: «Deixa
que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos
para o lançar aos cachorrinhos.» A mulher não quer saber dessas
histórias e diz simplesmente: «Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem
debaixo da mesa as migalhas dos filhos».
Jesus ficou rendido: vai, o demónio saiu
de tua filha.
A versão de Mateus é diferente e passa-se
em público. Jesus reconheceu o ridículo da sua estúpida displicência: «Ó
mulher, grande é a tua fé! Faça-se como desejas». Como já tinha dito a um
centurião romano: em Israel, nunca vi tanta fé!
Estas reacções, nas suas idas ao
estrangeiro, manifestam que também Jesus tinha sido moldado por uma cultura
preconceituosa, mas estava aberto ao espanto e à mudança. Em Tiro e Sídon, encontrou
o que não podia esperar.
É Domingo, não é Sábado. Não nos podemos
conformar com o mundo que temos. Dizemos que somos filhos da ressurreição e não
do conformismo. Temos de o provar. Como?
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público
22.07.2018
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