28 outubro 2018

Crónicas de Frei Bento Domingues e do Padre Anselmo Borges

   PARA VINHO NOVO, ODRES NOVOS &  
Dois dias para a morte e o sentido 


         PARA VINHO NOVO, ODRES NOVOS

1. Como diz o físico Carlo Rovelli, a natureza do tempo talvez seja o maior mistério. Estranhos fios o ligam aos grandes mistérios não resolvidos: a natureza da mente, a origem do Universo, o destino dos buracos negros, o funcionamento da vida. A dança a três gigantes do pensamento - Aristóteles, Newton e Einstein – levou-nos a uma mais profunda compreensão do tempo e do espaço: existe uma estrutura da realidade que é o campo gravitacional; esta não é separada do resto da física, não é o palco em que o mundo flui: é uma componente dinâmica da grande dança do mundo, semelhante a todas as outras; interagindo com as outras, determina o ritmo das coisas a que chamamos fitas métricas, relógios e o ritmo de todos os fenómenos físicos. Pouco depois, o próprio Einstein verificou que esta não era a última palavra sobre a natureza do espaço e do tempo[i].
Há mais de dois mil anos, depois de João Baptista ter sido preso, Jesus foi para a Galileia proclamar: “completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos - mudai de vida - e acreditai no Evangelho”, se quereis que o mundo encontre a perfeita alegria[ii].
 Quando S. Marcos escreve isto, já o Espirito de Cristo tinha assumido outro ritmo do tempo: o dos jovens com visões novas e dos velhos renascidos, cheios de sonhos de um mundo outro.[iii] Cedo, porém, se deram conta de que o tempo e o espaço das Igrejas não eram um palco em que elas se pudessem desenvolver, puras e santas, sem estranhas interacções religiosas, sociais, económicas ou políticas, desde o Pentecostes até hoje. A necessidade de reformas faz parte da sua história.
Em Novembro de 1950, Yves Congar, O.P. publicou uma obra famosa, Vraies et fausses réformes dans l´Église, que lhe causou muitos e graves sofrimentos romanos. Angelo Roncalli, futuro João XXIII, era, nessa altura, núncio em Paris. Este livro, sublinhado página a página, fazia parte da sua biblioteca. Eleito Papa, recupera o maldito Congar e as suas perspectivas de reforma. É inspirado nele, que concebe o Vaticano II, como um concílio de aggiornamento da Igreja no mundo contemporâneo.
O Vaticano I (1869-1870) tinha concentrado tudo no primado do Papa e na sua infabilidade, quando se pronunciava ex-cathedra, em assuntos de fé e de moral. Era tudo resolvido por ele e pela cúria. Pio XII foi o último da famosa série os Pios.
Na preparação do Vaticano II, a herança da Cúria e do chamado “Santo Ofício” tentaram controlar os desvarios de João XXIII. Não conseguiram.
2. Importa saber quais foram as reformas mais importantes deste Concílio. É difícil responder, mas um dos seus historiadores mais importantes, John W. O’Malley, sj[iv], propôs um critério: uma reforma é tanto mais importante quanto maior é a resistência que suscita. Nenhuma doutrina ou reforma teve mais resistências do que a colegialidade episcopal do capítulo III da Lumen Gentium. A sua doutrina sublinha que, por essência, os bispos têm uma responsabilidade não só nas suas respectivas dioceses, mas em toda a Igreja quando actuam colegialmente e com o Papa. Reencontrava-se, assim, uma antiga tradição obscurecida pela centralização, quase absoluta, da Santa Sé.
Desde que começou o debate sobre o referido capítulo III, a chamada minoria do Concílio opôs-se-lhe de todas as formas. Quando se sentiu vencida procurou debilitá-lo. Essa resistência continuou, sem tréguas, até à sua rectificação, dias antes do encerramento do concílio. Note-se que até ao pontificado do Papa Francisco, a colegialidade era um ideal que descansava nas páginas dos documentos conciliares. É verdade que o instrumento que Paulo VI tinha pensado para a aplicação do referido capítulo III, era o Sínodo dos Bispos. No entanto, o modo como o concebia era mais um instrumento da Santa Sé do que uma aplicação da colegialidade. Apesar disso, o Concílio aceitou-o como expressão da colegialidade, no decreto sobre a função pastoral dos bispos (Christus Dominus nº 5).
3. Até aos dois Sínodos sobre a Família, a que presidiu o Papa Francisco, os sínodos episcopais eram apenas a rectificação dos textos preparados pela Cúria. A mudança foi radical. Ele tinha dito com clareza: nos sínodos, as opiniões devem expressar-se livremente e o documento final deve ser o produto do próprio Sínodo. Houve, de facto, nesses últimos sínodos divergências de opinião e consternação em certos sectores. Daí resultaram muitos ataques ao Papa, acusando-o até de várias heresias, mas apesar desta “desordem”, esta situação, a médio e a longo prazo, poderá ser mais sadia do que um controle rígido sobre o funcionamento dessas assembleias.
Com a colegialidade, o Vaticano II tratou também a reforma da Cúria Romana que, desde o começo, tentou controlar o Concílio. A animosidade da maioria contra o chamado “Santo Ofício”, hoje Congregação para a Doutrina da Fé, levava alguns a propor a sua abolição pura e simples. A reforma da Cúria não estava, inicialmente, na ordem do dia do Concílio, mas logo no final do primeiro período tornou-se claro que os bispos a enfrentariam. As críticas foram duras e exigiam medidas radicais. Paulo VI disse que era normal a qualquer instituição reformar-se de vez em quando, mas deixou isso para depois do Concílio. Nem as suas medidas nem as de João Paulo II tiveram qualquer efeito.
As tarefas empreendidas pelo Papa Francisco têm, sem dúvida, a sua origem na crise actual e nas suas heranças. Mas ao mesmo tempo fazem parte da ordem do dia inacabado do Vaticano II e de problemas que atravessam a história da Igreja. Bergoglio retomou a verdade do axioma sobre o ecumenismo: Ecclesia semper reformanda, a Igreja deve viver em permanente processo de reforma.
A Constituição Apostólica sobre o Sínodo os Bispos (15.09.018) faz parte desse processo. O seu espírito e as suas normas exigem novas formas de escuta e de representação que matem, na raiz, as tentações de um renovado clericalismo[v]. O Sínodo dos Jovens tem de mostrar, a toda a Igreja, que estamos a inaugurar tempos novos em todos os lugares. Para vinho novo, odres novos. Ninguém espere que vá ser fácil.
       Frei Bento Domingues, O.P.
       in Público, 28.10.2018


[i] Cf. Carlo Rovelli, Talvez o maior mistério de todos seja o tempo, Rev. LER, nº 150, pp 92-105
[ii] Jo 15, 11; 1Jo 1, 1-4
[iii] Act. 2, 14 -24
[iv] Cf. Reforma de la Eglesia. Reflección de un historiador, Selecciones de teología, n 227, 2018, pp 188-194
[v] Este texto nasceu na celebração dos 21 anos do Movimento Nós Somos Igreja, em Portugal, cujo lema foi Com o Papa Francisco reformar a Igreja, Convento de S. Domingos, 20.10.2018

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Dois dias para a morte e o sentido
Padre Anselmo Borges

Há muito que para mim é claro que, para perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e nela se trata a morte e os mortos. Aí está: hoje a morte é tabu, mais: vivemos numa sociedade assente sobre o tabu da morte, tendo nele o seu fundamento. Da morte não se fala. Não é de bom tom. E o que é que isso revela? Que vivemos numa sociedade desorientada, que não sabe o que há-de fazer com a morte e, por isso, também não sabe viver na fundura ético-metafísica que o pensamento da morte dá e exige.
O que aí fica, talvez intempestivamente, para os dois dias 1 e 2 de Novembro, que tradicionalmente eram consagrados à meditação sobre a morte e o seu sentido, que é o sentido da vida, são breves reflexões sobre este tema incómodo, mas sem o qual se deriva para o inessencial.
A morte é o mistério pura e simplesmente. Ninguém sabe o que é morrer. Ainda nenhum de nós, felizmente, morreu, e os mortos, esses, não falam. Não temos experiência do que é morrer nem do estar morto nem do Além. A morte escapa a todas as categorias. Como escreveu o filósofo Emmanuel Levinas, “a morte é o mais desconhecido de todos os desconhecidos. Ela é mesmo desconhecida de modo totalmente diferente de todo o desconhecido”. Perante o rosto morto de uma pessoa, concretamente  da pessoa amada ou de um amigo, sabemos que qualquer coisa de dramático e único aconteceu: o fim da existência no mundo, o “stop” definitivo e irreversível. Mas o que é que isto quer dizer verdadeiramente? “Nunca saberemos o que é que a morte significa para o próprio morto. Não sabemos sequer o que pode haver de legítimo na fórmula: para o próprio morto.” Em última análise, não é possível fazer um juízo definitivo sobre a vida de alguém, porque nunca nos é dado saber o que foi a sua morte. No confronto com a morte, é com a irrepresentabilidade total que deparamos. Só os vivos falam da morte. Os mortos, esses, calam-se definitivamente. Sigmund Freud também escreveu: “O facto é que nos é absolutamente impossível representar a nossa própria morte, e todas as vezes que o tentamos apercebemo-nos de que assistimos a ela como espectadores. É por isso que a escola psicanalítica pôde declarar que, no fundo, ninguém crê na sua própria morte ou, o que é o mesmo, que, nos seu inconsciente, cada um está persuadido da sua própria imortalidade.” No fundo, nenhum de nós acredita que há-de morrer: a morte é sempre a morte dos outros, só acontece aos outros, cada um de nós pensa que será excepção. Porque é impossível eu conceber a minha consciência, a consciência de mim, morta.
Por outro lado, paradoxalmente, no núcleo da própria existência, há uma experiência vivida da morte enquanto limite último insuprimível e insuperável. No centro da vida, a morte está presente como mistério, o impensável que obriga a pensar. A vida vê-se inevitavelmente confrontada com a morte enquanto barreira intransponível. Porque o ser humano é o ser da antecipação, toma consciência de que é inevitavelmente mortal: dada a sua condição corpórea, no horizonte da sua vida, antecipando o futuro, a morte surge-lhe como termo inescapável. E, se a morte enquanto totalização põe em questão não só o aquém, mas também o seu além, falar da morte humana enfrenta-se com a pergunta inevitável: e depois? Porque, se também o animal pode ter medo de morrer, só a pessoa humana, porque é autoconsciente, se angustia face à morte. O medo relaciona-se com um objecto concreto; a angústia é difusa, é esse temor único, em última análise, do nada, da morte enquanto dissolução do eu. Unamuno exprimiu-o com estas palavras: “O meu eu, ai que me roubam o meu eu!”
Hoje, predomina o tabu, o recalcamento, da morte. Nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo, a morte tornou-se realmente tabu. Ela é umas realidade quase obscena. Repare-se, neste sentido, como se inverteu a relação com o sexo e com a morte: nas sociedades tradicionais, tabu era o sexo; hoje, tabu é a morte, talvez o último tabu. Como é que uma sociedade que gira à volta da organização sócio-económica, determinada pelo individualismo concorrencial feroz e insolidário, onde os valores considerados são o prazer, o êxito, a juventude, a beleza, a eficácia, a produção, o lucro, acumulação de bens e fortuna, progresso e riqueza, pode ainda acompanhar afectivamente os doentes, os velhos e os moribundos (agora, diz-se “pacientes terminais”) e suportar o supremo fracasso da morte?
Mas não se pense que se deixou de falar da morte por ela já não constituir problema. É exactamente o contrário que se passa: de tal modo a morte é problema, o problema para o qual uma sociedade que se julga omnipotente não tem solução que só resta a solução de ignorá-la, ocultá-la, reprimi-la. Aquilo que provoca dor infinda e para que não há solução é recalcado.
Mas, quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal de desumanização e alienação. Paradoxalmente, essa sociedade torna-se mortífera, tanatocrática e tanatolátrica. Pode perguntar-se: ao contrário das aparências, não revelará a ocultação da morte precisamente um medo-pânico da morte que se pretende exorcizar? Viktor Frankl mostrou que “a angústia  perante o vazio existencial e a neurose noógena de sentido estão às portas de quem por medo foge ao medo.” O homem das nossas sociedades possui ingência de meios e bens materiais, mas vive no deserto de fins autenticamente humanos e de sentido que preencha a existência. Sofre por falta de orientação existencial, tendo, por isso, medo dos aspectos negativos da existência. As sociedades da opulência actuais satisfazem necessidades materiais, ma não a vontade essencial, constitutiva, de sentido.
Preso do prazer imediato, o homem actual perdeu o sentido da totalidade, pelo qual o confronto com a morte inevitavelmente pergunta. A consciência da inevitabilidade de morrer abala na sua raiz a existência enquanto totalidade, convocando o ser humano para a pergunta absoluta, que não é mera curiosidade: Quem sou eu? Que será de mim? Qual o sentido da minha vida e da História? O que é que, em última análise, habita no seu núcleo?
Sem a consciência da morte, haveria filosofia, religião e exigência ética? Com a ocultação da morte, o ser humano pretende viver na ignorância do futuro, e perde o seu ser. Então é fácil a ética dissolver-se no simples utilitarismo e hedonismo. Já Ortega e Gasset se queixava: “Esta é a questão: a Europa ficou sem moral”. De facto, é confrontados com a morte que somos colocados perante a urgência da decisão, a unicidade, dramaticidade, densidade e responsabilidade irrevogável da vida e a questão do sentido total da existência. Pela antecipação da morte, a vida é-nos dada como totalidade e no seu carácter de definitividade e ultimidade, numa só vida e com uma só morte, ambas irrepetíveis. Sem essa antecipação, o homem fica na situação do animal, para o qual tudo se passa em “aquis” e agoras” sucessivos, sem possibilidade de totalização, e, portanto, regido exclusivamente pelos impulsos de prazer e desprazer imediatos.
Perante a angústia da morte, o homem actual remeteu-se para a morte neutra e abstracta, como estratégia para continuar a viver na vulgaridade, na dispersão banalizante e na banalização dispersante, na existência inautêntica, para cuja ameaça nos alertaram os filósofos Martin Heidegger e Sören Kierkegaard. Por isso, é urgente reconquistar a sabedoria da meditação da morte, para que a existência readquira autenticidade, porque é a morte que faz a triagem entre o que verdadeiramente vale e o que realmente não vale, entre o decisivo e o banal, entre superficialidade e liberdade que liberta, entre ter e ser, entre o que verdadeiramente quero e o que é mera ilusão. Na antecipação da morte, capto o valor único da pessoa, que vale mais do que todas as coisas: as coisas são meios, só a pessoa é fim, insubstituível. Assim, o pensamento da morte impõe-se, não como veneno para a vida, mas como antídoto contra a vulgaridade vaidosa e vazia da existência inautêntica.
É verdade que a consciência da necessidade de morrer me pode atirar para o abismo da dissolução nos prazeres imediatos: “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Muitas vezes também, o poder devastador da morte serviu satanicamente de instância fundadora de poderes totalitários, tanto na ordem temporal como espiritual. Mas é igualmente verdade que, na antecipação de todos os rostos mortos, se encontra talvez o único lugar autêntico da compaixão, da paz e da fraternidade, que, entretanto, se torna imperativo construir, evitando a catástrofe: Somos mortais: logo, somos irmãos, como viu até Herbert Marcuse, que, dois dias antes da sua morte, já no hospital, confessou a Jürgen Habermas: “Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros”.
Padre e professor de Filosofia
in DN 27.10.2018


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