1. Décadas de frustrações tornaram
muitos católicos, jovens e adultos, cépticos acerca das iniciativas
inconsequentes da chamada pastoral da juventude. Desde há mais de três mil anos
que os velhos se queixam das novas gerações. Mas, como terá dito Confúcio, é
melhor acender uma vela do que amaldiçoar as trevas.
Alegrei-me muito com o testemunho eufórico do cardeal Luis Antonio Tagle, arcebispo de Manila, acerca do que tinha vivido
em Roma: nós, os bispos, perguntamos muitas vezes o que podemos fazer pelos
jovens; agora vi o que eles fizeram por nós; tornaram-se a escola dos bispos. Este percebeu o que deve
ser um sínodo: um tempo de escuta, de aprendizagem, de conversão, de mudança. Não
pode ser um faz de conta: os jovens que falem à vontade, mas a boa doutrina é a
nossa; é nosso e só nosso o verdadeiro magistério da Igreja que ensina e não
recebe lições desses irresponsáveis verdes anos.
Senti-me muito
longe do espírito do Grande Encontro da Juventude – Os novos escolhem Deus – (20-21 de Abril de 1963), realizado em Lisboa,
congregando à volta de 60 mil jovens de todo o país. Julgava-se que se podia
responder a uma grave crise social, cultural, religiosa e política com uma
solene e cega afirmação de rua[1].
Espero que o próprio
Instrumentum Laboris[2] não seja abolido,
mas refeito, periodicamente, com os contributos do Sínodo e com o intercâmbio de
novas práticas a nível internacional. Uma das críticas mais pertinentes ao
próprio funcionamento do Sínodo foi o da descriminação das mulheres. Nenhuma
das convidadas – ao contrário dos homens – pode votar o texto final. O cardeal alemão Reinhard Marx observou: quando
se trata de poder, fica-se com a impressão de que a Igreja é, em última
análise, uma igreja masculina. É uma situação que tem de ser superada em todo o mundo.
Esta descriminação
aconteceu já depois da Assembleia Plenária da Comissão
Pontifícia para a América Latina (CAL) ter debatido A Mulher, como pilar na edificação da Igreja e da sociedade[3]. Nessa ocasião, o cardeal Ouellet pediu pessoalmente perdão às mulheres.
Quando lhe perguntaram porque o fez, respondeu: “tive essa
ideia ao aproximar-se o Dia da Mulher.
Fiz aquele gesto pessoal, sem envolver os outros, embora também faça sentido
para eles. Pensei nos meus limites, nos meus erros do passado, no meu pequeno
mundo pessoal e em tudo o que tínhamos posto em relevo nos dias precedentes,
sobre a situação concreta da mulher, os maus-tratos, a violência, o tráfico, o assassinato, o desprezo, a violência
familiar… Naquele quadro, fiz este gesto de forma espontânea, como um homem
perante as mulheres. E assim foi: senti-me comovido, mortificado, sinceramente
arrependido pelos pecados dos homens perante as mulheres. Foi um gesto
simbólico, mas acho que foi no espírito do Papa Francisco”.
2. No entanto, o grande paradoxo deste
Sínodo dos Jovens é outro. O Papa Francisco aproveitou esse contexto para
lançar o livro, A Sabedoria do Tempo,
um verdadeiro manifesto pela aliança de gerações, mais precisamente, aliança entre
jovens e idosos. A situação dos jovens, na Igreja, é muito diferenciada de país
para país e, sobretudo, de continente para continente. Na Europa, com vários
matizes, é muito elevada a percentagem dos jovens que dizem dispensar a religião para
serem felizes[4]. Consideram-se, como é
normal, a geração do futuro, a geração digital, da internet, dos media sociais, do Facebook, da liberdade, mas também da incerteza[5].
É normal que a Pastoral da Igreja se inquiete com a situação, mas o Papa tem
uma visão muito mais integrada da sociedade e da Igreja.
A nossa sociedade privou os avós da sua voz. Tiramos-lhes o espaço e a oportunidade de nos contarem
a sua experiência, as suas histórias, a sua vida. Deixamo-los de lado e
perdemos o bem da sua sabedoria. Quisemos remover o nosso medo da fraqueza e da
vulnerabilidade, mas ao proceder assim, fizemos aumentar, nos idosos, a
angústia de serem mal apoiados e abandonados. Devemos, pelo contrário,
despertar o sentido cívico da gratidão, do apreço, da hospitalidade, capaz de
fazer com que os idosos se sintam parte viva da comunidade. Colocados de lado, ficamos
privados do segredo que lhes permitiu seguir em frente, fazer caminho na
aventura da vida. Privados do testemunho de pessoas que conservam no coração a
gratidão por tudo aquilo que viveram, ficamos sem modelos, sem testemunhos
vividos. Ficamos perdidos.
Por outro
lado, como é feio o cinismo de um idoso que perdeu o sentido do seu testemunho,
despreza os jovens e está sempre a lamentar-se. A sua sabedoria não é transmitida
e torna-se estéril nostalgia. Como é bonito, pelo contrário, o
encorajamento que o idoso consegue transmitir a uma jovem ou a um jovem em
busca do sentido da vida! Esta é a missão dos avós. Uma verdadeira vocação.
Destaco
esta intervenção porque, no clima do Sínodo dos Jovens, o Papa tornou-se a voz
dos ausentes, dos esquecidos. Uma aliança de gerações não pode ter um só polo. Já
noutras ocasiões, pôs a questão do que os jovens devem e podem fazer para que não
deixem os idosos abandonados, quer nas famílias quer nos lares onde são
arrumados. Nada pode substituir a aliança dos afectos.
3. Uma
religião viva e inovadora pode e deve ser uma religação de gerações. Como diz o
antropólogo Alfredo Teixeira, numa entrevista a António Marujo, que deve ser
estudada com cuidado: “há um problema sério na capacidade de transmissão da
fé, mais do que na comunicação. Há mudanças que se podem ver, mas elas são,
muitas vezes, em sentidos opostos e quase contraditórios. O mais errado é
pensar que podemos resolver a nossa leitura da sociedade a partir de um
dinamismo único. Sobretudo em termos religiosos, precisamos constantemente
desse olhar em diferentes escalas porque, de outra forma, teremos um olhar
muito simplificado sobre a realidade”.
É inegável a erosão das igrejas
cristãs tradicionais. Mas pergunta-se: estamos simplesmente numa linha de
erosão ou ela coincide com zonas de reconfiguração?[6]
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 04.11.2018
[1] No Boletim do ISET
(Novembro 1972), no artigo Esperar é criar
alternativas (págs. 11-19), tentei analisar a grandeza e os limites desse
acontecimento.
[2] Lumen (Julho/Agosto 2018)
encerra toda d documentação
[3] 6-9 de Março 2018
[4] Cf. Lumen (Julho/Agosto
2018), pág. 29-31.
[5] O estudo sobre a Geração Quê? (Génération Quoi?) oferece um panorama mais vasto.
[6] Cf. Alfredo Teixeira, in
Religione.blogpot.pt; cf. também, Régis Debray, O Fogo Sagrado, Ambar, Porto 2005
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Com o cadáver da
esperança às costas
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Ainda sobre os dias
1 e 2 de Novembro:
Dois dias para a morte e o sentido
Por
mais arrogante que se seja e se padeça do complexo da omnipotência, ninguém, a
não ser que pense suicidar-se antes, pode dizer: Até amanhã, se eu quiser. Dada
a constituição corpórea do ser humano e a sua consciência antecipadora, toda a
pessoa adulta e consciente, que reflecte, sabe, embora com um saber paradoxal,
pois ninguém se pode conceber a si mesmo morto, que é mortal e que a morte é o
limite inultrapassável. Ninguém rouba a morte a ninguém, cada um morrerá na sua
vez. E as sabedorias ancestrais e as religiões e as filosofias lembraram sempre
a cada um: “lembra-te de que és mortal”; aos generais romanos vitoriosos, na
corrida para a celebração do triunfo, havia um escravo que lhes ia sussurrando
ao ouvido o dito, em latim: “memento mori” (lembra-te de que és mortal); “sic
transit gloria mundi” (assim passa a glória mundana): lembrava ao papa na sua
coroação o mestre de cerimónias enquanto queimava uma mecha de estopa; os
gregos definiam os humanos frente aos deuses, imortais, como “os mortais”.
A
consciência da morte caracteriza o ser humano e, confrontando-o com a ameaça do
nada — aquele “nunca-mais-para-sempre” neste mundo, escreveu Vladimir
Jankélévitch —, revela-o a si mesmo na sua fundura ético-metafísica. Aí, sabe que é um eu, único, enfrentando
perguntas de abismo sem fundo, inevitáveis: O que sou e quem sou? O que quero e
devo fazer?
Na
consciência antecipadora da morte, cada um é dado a si mesmo como totalidade,
ainda que incompleta, pois ninguém sabe o que é morrer nem o que quer dizer
exactamente estar morto. De qualquer modo, nessa antecipação, a pergunta
decisiva é: Qual o sentido da vida, da existência, da História, de tudo? Vamos
realizando sentidos, mas, perante a morte, impõe-se a pergunta essencial,
final: Qual o sentido de todos os sentidos, o Sentido último? Para quê? Porque,
se tudo se afunda na morte: bem, mal, dignidade, indignidade, justiça,
injustiça..., então tudo é equivalente, vale tudo o mesmo e foi tudo para nada.
Mas é tão natural o homem saber da sua morte
como esperar para lá dela. A pessoa é constitutivamente esperante, assim: por
mais que concretize e realize da sua esperança, ela nunca está plena e
adequadamente concretizada nem realizada, pois há sempre um abismo entre o
desejado e o alcançado, e, por isso, sempre um mais além, de tal modo que nenhum homem, nenhuma mulher morre
satisfeito, satisfeita (de satis-factus,
satis-facta: feito, feita
suficientemente). Todos morrem em aberto, o que leva à conclusão de que a realização plena só pode vir de
Outro, de Deus; só a religião pode
garantir a esperança total. Assim, a
própria Escola de Frankfurt vivia atenazada. Por exemplo, Max Horkheimer, um
dos seus fundadores, por um lado, não
acreditava, mas, por outro, ansiava pelo totalmente Outro: “Sem Deus, é inútil
pretender salvar um sentido incondicional. (...) A morte de Deus é também a
morte da verdade eterna”. “O anelo pelo totalmente Outro é um anelo que une os
homens, de tal modo que os factos atrozes, as injustiças da história passada
não sejam o destino último, definitivo, das vítimas”. Por isso, pensava que a moral
assenta em última instância na teologia, significando teologia “a consciência
de que este mundo é um fenómeno, que não é a verdade absoluta, que não é a
ultimidade. Teologia é – exprimo-me conscientemente com grande cautela – a
esperança de que a injustiça que atravessa o mundo não seja a ultimidade, que
não tenha a última palavra (...) expressão de um anelo de que o verdugo não
triunfe sobre a vítima inocente”. Theodor Adorno, outro fundador, escreveu que
“o pensamento que se não decapita desemboca na transcendência; a sua meta seria
a ideia de uma constituição do mundo na qual não só ficasse erradicado o
sofrimento existente, mas também revogado o irrevogavelmente passado”. Também Jürgen
Habermas se refere a toda esta problemática, concretamente a das vítimas
inocentes e da dívida da História para com elas, trazendo à colação este texto
de J. Glebe-Möller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros,
incluindo os mortos, então temos que reclamar uma realidade que esteja para lá
do aqui e do agora e que possa vincular-nos a nós também para lá da nossa morte
com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a
esta realidade a tradição cristã chama-a Deus”.
Claro
que ninguém se pode gloriar, diz I. Kant, de saber que Deus existe e que haverá
uma vida futura: se alguém o souber, escreveu, “esse é o homem que há muito
procuro, porque todo o saber é comunicável e eu poderia participar nele”. Mas é
razoável acreditar em Deus e esperar para lá da morte. Na sua obra Was ich glaube (O Que Eu Creio),
resultado de uma série de lições, aos 80 anos, na Universidade de Tubinga, a
cada uma das quais assistiram mil
pessoas, pergunta, com razão, o célebre teólogo Hans Küng: ”O ateísmo explica
melhor o mundo? A sua grandeza e a sua miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite
no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!”
A
curto, a médio, a longo prazo todos iremos estando mortos. A nossa vida e a
realidade do mundo estão em processo e a História lê-se do fim para o
princípio. Só no fim se poderá saber, mas, sem Deus, nunca poderíamos sequer
saber quem somos nem o que pretendia a realidade e a História, porque não
estaríamos lá e tudo teria sido para nada.
Lá, no final, só há, portanto, uma alternativa.
Claude
Lévi-Strauss conclui assim o seu L’homme
nu: “Ao homem incumbe viver e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a
coragem, sem que nunca o abandone a certeza adversa de que outrora não estava
presente e que não estará sempre presente sobre a Terra e que, com o seu
desaparecimento inelutável da superfície de um planeta também ele votado à
morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as suas alegrias, as suas
esperanças e as suas obras se tornarão como se não tivessem existido, não
havendo já nenhuma consciência para preservar ao menos a lembrança desses
movimentos efémeros, excepto, através de alguns traços rapidamente apagados de
um mundo de rosto impassível, a constatação anulada de que existiram, isto é,
nada.”
A
Bíblia, no seu último livro, Apocalipse,
que quer dizer revelação, conclui assim:
“Vi então um novo céu e uma nova terra. E vi descer do céu, de junto de Deus, a
cidade santa, a nova Jerusalém. E ouvi uma voz potente que vinha do trono:
‘Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o
seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas
as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem
dor. Porque as primeiras coisas passaram.”
É
preciso relembrar esta alternativa final, concretamente neste tempo de
inesperança em que, ao contrário de todas as aparências de euforia, se avança,
citando um poeta galego, “com o cadáver da esperança às costas”.
Aqui
chegados, alguém poderá objectar que a esperança no Além é alienante, porque
retira força ao compromisso com a luta por um mundo mais humano no aquém. Mas,
se se pensar mais fundo, é o contrário. A inesperança está a infectar a vida,
porque se ama pouco. O amor autêntico quer eternidade e é o combate comprometido
com um mundo mais justo, mais humano e mais feliz que reforça a esperança no
Além. Como disse Immanuel Kant de forma
lapidar: “A praxis tem de ser tal que se não possa pensar que não existe um
Além”.
in DN 03.11.2018
www.dn.pt/edicao-do-dia/03-nov-2018/interior/com-o-cadaver-da-esperanca-as-costas-10121092.html
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Uma igreja, dois papas: a "guerra" entre
Bento e Francisco
Fernanda Câncio
A
guerra entre conservadores e liberais no seio da Igreja Católica não é de
agora, decerto. Mas é a primeira vez da história da instituição em que cada um
dos lados tem um papa - vivo. E se um deles tem o cognome de
"emérito", a verdade é que, se houve quem pensasse que iria passar o
resto da vida em recolhimento e oração, "desaparecendo" do mundo dos
vivos, enganou-se. Bento nunca saiu do Vaticano e nem sequer se mantém em
silêncio.
Isso
mesmo evidencia a revista Vanity Fair, num longo artigo publicado esta
terça-feira, no qual o jornalista e escritor britânico John Cornwell, autor de
várias obras sobre os meandros da igreja católica e sobre papados --
nomeadamente Hitler's Pope -The secret story of Pius XII (O Papa de Hitler - A
História Secreta de Pio XII, 1999), e A Thief in the Night - The Mysterious
Death of Pope John Paul I (Um ladrão na noite - A morte misteriosa do Papa João
Paulo I, 1989) - descreve vários episódios reveladores de, no mínimo, um
mal-estar entre os dois pontífices. "Se Francisco é o papa vivo que reina,
Bento é a sua sombra, o papa emérito morto-vivo", escreve Cornwell.
"Se
Francisco é o papa vivo que reina, Bento é a sua sombra, o papa emérito
morto-vivo"
E
prossegue: "Em 2013, Bento anunciou inesperadamente a sua resignação. Era
o primeiro papa a fazê-lo em quase 600 anos. Mas a seguir, ao contrário dos que
muitos esperavam, não se enfiou num obscuro mosteiro bávaro. Ficou no mesmo
sítio, continuando a aceitar ser tratado por 'sua santidade', a usar ao peito a
cruz de bispo de Roma, a publicar, a encontrar-se com cardeais, a fazer
pronunciamentos. A sua mera existência encoraja os conservadores que querem
minar o reinado de Francisco."
É,
considera o jornalista, uma situação para a qual é difícil encontrar
precedentes. "Com que podemos comparar esta circunstância de uma igreja
com dois papas? Estamos nos domínios dos arquétipos e do mito. Pensemos no Rei
Lear, que deu todo o poder mas se manteve perto para controlar, resultando em
desastre, ou no fantasma em Hamlet. A mera presença de um ex papa já seria o
suficiente para pôr em causa a força de espírito e a independência de Francisco
desde o primeiro dia."
"O
meu papa é Bento", diz Salvini
Poderia
o simpático João XXIII, pergunta Cornwell, "ter iniciado a reforma do
Concílio Vaticano Segundo se Pio XII, o seu autocrático predecessor, estivesse
a observar, lugubremente, de uma janela vizinha? E iria João Paulo II abanar a
árvore apodrecida da União Soviética se o angustiado e hesitante Paulo VI , que
chegou a ponderar uma concordata com Moscovo, estivesse a puxar-lhe pelo
braço?"
"Em
2013, Bento anunciou inesperadamente a sua resignação. Era o primeiro papa a
fazê-lo em quase 600 anos. Mas a seguir, ao contrário dos que muitos esperavam,
não se enfiou num obscuro mosteiro bávaro. Ficou no mesmo sítio, continuando a
aceitar ser tratado por 'sua santidade', a usar ao peito a cruz de bispo de
Roma, a publicar, a encontrar-se com cardeais, a fazer pronunciamentos. A sua
mera existência encoraja os conservadores que querem minar o reinado de
Francisco."
O
escritor acha que não: "Qualquer que seja a direção do papado, esquerda ou
direita, para o melhor ou o pior, é a iniciativa única e exclusiva de um papa
de cada vez que lhe confere suprema autoridade e poder. O segredo da unidade
católica é a lealdade, em todas as circunstâncias, ao único supremo pontífice
vivo. A briga entre os leais a Francisco e os insurgentes de Bento ameaça
provocar a maior divisão na Igreja Católica desde a Reforma do século XVI,
quando Martinho Lutero e outros reformistas lideraram a revolta protestante
contra o Vaticano." E cita o historiador Diarmaid MacCulloch, da
Universidade de Oxford: "Dois papas é a receita para um cisma."
Ainda
por cima, dois papas com visões tão diferentes. Desde que João Paulo II o
nomeou Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ou, nas palavras de
Cornwell, "fiscalizador chefe da doutrina, em 1981, o então cardeal Joseph
Ratzinger defendeu uma Igreja Católica mais pequena, limpa de imperfeições. A
visão de Francisco é diametralmente oposta: quer uma igreja aberta, acolhedora,
misericordiosa para com os pecadores, hospitaleira face aos estranhos,
respeitosamente tolerante de outras fés. Procura encorajar os que duvidam,
consolar os feridos, e trazer de volta os excluídos pela respetiva orientação.
Compara a igreja a um hospital de campanha para os espiritualmente
doentes."
"A
briga entre os leais a Francisco e os insurgentes de Bento ameaça provocar a
maior divisão na Igreja Católica desde a Reforma do século XVI, quando Martinho
Lutero e outros reformistas lideraram a revolta protestante contra o
Vaticano."
As
trincheiras são tão óbvias que se consubstanciam em tshirts: Matteo Salvini,
atual ministro da Administração Interna e líder do partido de extrema-direita
Liga (antes Liga Norte), que se notabiliza pelas suas posições xenófobas, foi
fotografado em setembro de 2016 com uma em que se vê a cara de Francisco com ar
horrorizado com o escrito "O meu papa é Bento". É normal: se
Francisco passa a vida a apelar ao acolhimento de refugiados, Salvini quer
vê-los todos pelas costas. Mas será normal que, estando vivo e a observar,
Bento não rechace este tipo de apoio? Tanto mais que, como Cornwell frisa, o
papa "reformado" continua a opinar e a fazer-se ouvir - quer
diretamente quer através de outros.
Matteo
Salvini, atual ministro da Administração Interna de Itália e líder do partido
de extrema-direita Liga, em 2016, mostrando uma Tshirt que diz "O meu papa
é Bento"© Direitos Reservados
"Um
ofício papal alargado" ou "só um papa"?
Um
desses outros é o seu secretário, o arcebispo alemão Georg Gänswein. Este, que
vive na atual residência do papa emérito - a qual, conta Cornwell, fora um
convento para 12 freiras contemplativas no tempo de João Paulo II e que Bento
mandou renovar e preparar (luxuosamente, parece) quatro meses antes de anunciar
a sua renúncia - declarou em maio de 2016 que Francisco e Bento representam um
único ofício papal "alargado", com um membro "ativo" e um
"contemplativo". Francisco, terá rejeitado a ideia de imediato:
"Só há um papa."
Desde
essa altura, diz Cornwell, a relação entre o papa investido e o emérito
ter-se-á deteriorado. Em julho de 2017, no enterro do cardeal conservador (e
crítico de Francisco) Joachim Meisner, arcebispo emérito de Colónia, Gänswein
leu uma carta de Bento. Esta contém, no entender do autor do artigo da Vanity
Fair, uma frase que pode ser considerada muito desestabilizadora do pontificado
do atual papa. Nesta, Bento diz que Meisner estava convencido de que "o
Senhor não abandona a Sua Igreja, mesmo que o barco tenha metido tanta água que
esteja à beira de afundar." Para Cornwell, Bento parece estar a dizer que
a Igreja Católica comandada por Francisco está a afundar-se.
"O
Senhor não abandona a Sua Igreja, mesmo que o barco tenha metido tanta água que
esteja à beira de afundar", diz Bento. Está a dizer que a Igreja Católica
comandada por Francisco está a afundar-se?
Mas
não fica por aqui: em setembro último, Gänswein deu uma palestra na biblioteca
do parlamento italiano por ocasião do lançamento da tradução italiana do livro
The Benedict Option (A opção de Bento), do escritor americano Rod Dreher,
descrito por si mesmo como um "conservador empedernido". O livro
defende que a civilização ocidental, nomeadamente os EUA, se encaminham para um
tempo de caos e negritude, uma nova idade das trevas, e que o caminho é voltar
aos ensinamentos de Bento de Núrsia, o fundador dos monges beneditinos.
Gänswein explicou à audiência que a crise de abuso sexual na Igreja Católica é
a idade das trevas da instituição, o 11 de setembro católico. Um paralelismo
que foi interpretado por Dreher como significando que o salvador atual é o papa
emérito.
Cornwell
encontra outros sinais de perversidade - não é muito difícil perceber para onde
pende o seu coração na disputa que descreve - na conduta de Bento, até antes de
renunciar. Refere por exemplo o facto de em 2012, pouco antes de anunciar a sua
inesperada decisão, ter nomeado o bispo conservador Gerhard Ludwig Müller para
o lugar que fora seu sob João Paulo - ou seja, designando um conservador de
linha dura para fiscalizador da doutrina (num ministério que está também
encarregado de investigar casos de abuso sexual) do qual o seu sucessor teria
dificuldade em retirá-lo sem parecer desrespeitador - de facto, Francisco só o
substituiu em 2017. E não só nomeou Gänswein como seu secretário pessoal como
também chefe de gabinete do papa - o que significa dirigir a residência papal
no palácio apostólico, onde é suposto os papas viverem e trabalharem. Tal,
frisa Cornwell, permitiria ao secretário e homem de confiança do papa emérito
monitorizar toda a atividade do novo pontífice.
O
que significa que a decisão de Francisco de não ocupar as luxuosas instalações
que há séculos são a casa dos papas pode ter também tido a ver com dar a volta
a Bento e Gänswein - pelo menos na interpretação de Cornwell. Assim,
instalou-se na modesta Casa Santa Marta, onde ficam os clérigos que visitam o
Vaticano. Permite a Gänswein que organize receções nos aposentos papais para
reis e chefes de Estado, mas o resto do tempo está fora do alcance do
secretário de Bento.
É
possível um cisma?
Frisando
que, aos 91 anos, cinco após resignar, Bento parece manter vigor físico e
mental, Cornwell interroga-se sobre os motivos da sua resignação. E sobre que
estratégia terá em vista. Será que um cisma, ou seja, a divisão da Igreja
Católica em duas, é possível?
Certo
é que, conclui o jornalista, se assiste a um impasse. Francisco está cada vez
mais isolado e acossado por escândalos sucessivos; a presença de Bento e as
suas intervenções não ajudam, pelo contrário.
É
tentador assacar a culpa deste impasse a Bento, o rígido moralista e o defensor
de uma igreja mais pequena e mais pura, mas também há motivo para acreditar que
Francisco tem os seus próprios motivos para querer provocar uma crise.
Mas
se, argumenta Cornwell, é tentador assacar a culpa deste impasse a Bento, o
rígido moralista e o defensor de uma igreja mais pequena e mais pura, aquele
que resignou sem deixar o palco, aquele cuja mera existência mina a autoridade
de Francisco, também há motivo para acreditar que este último tem os seus próprios
motivos para querer provocar uma crise.
E
explica: "Desde os primeiro dias do papado, falou de forma a sugerir que
procura, que provoca, que pede uma mudança massiva numa autoritária, dogmática
teimosamente inamovível Igreja que mostra os seus frutos amargos nos milhares
de jovens fiéis abusados em todo o mundo católico. Uma purga drástica dos
privilégios obstinados, do secretismo, da riqueza, do tradicionalismo, da falta
de transparência e de controlo, pode ser a condição necessária de um novo
começo."
in DN 02
Novembro 2018
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