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INFO: P / INFO: Crónicas & Homenagem a Frei Francolino Gonçalves,
O.P., inovador dos estudos bíblicos.
MULHERS CATÓLICAS EM
GREVE
Frei Bento Domingues, O.P.
1. As
mulheres sabem que são mais de metade da Igreja católica. Dir-se-á que apenas
uma minoria feminista protesta contra o silenciamento que lhes é imposto. Na
Igreja, as mulheres que se calem! Não
foi nenhuma mulher que o disse e quem o afirmou ainda não tinha passado
inteiramente para o Novo Testamento (NT).
Foi apresentado, na UCP, o livro Mulheres diáconos. Passado – Presente –
Futuro[1].
Como refere a Introdução, o livro apresenta três tópicos
interligados: as mulheres diáconos tal como elas são conhecidas através de
documentos históricos; o diaconado, tal como se tornou uma vocação permanente
na Igreja contemporânea e aquilo que o futuro das mulheres diáconos poderia vir
a ser, se a Igreja restabelecesse a sua tradição de ordenar mulheres para o
diaconado. Trata-se de um esforço conjunto que pretende ajudar a Igreja a
recuperar a sua tradição passada como meio de construir o seu futuro.
É sabido que o Papa João
Paulo II († 2005) nada fez para restaurar o diaconado ordenado das mulheres e o
ex-Papa Bento XVI seguiu-lhe o exemplo.
Só em 2016 é que o Papa
Francisco começou a agir, convocando uma Comissão de especialistas, seis homens
e seis mulheres, para enfrentar esta questão. No final, entregaram um relatório ao
Papa Francisco. O principal objectivo da Comissão era estudar as mulheres
diáconos na Igreja primitiva. Não está em dúvida a existência de mulheres
diáconos. A questão gira em torno das suas funções.
No voo de regresso da
viagem apostólica à Bulgária e à Macedónia do Norte (07. 05. 2019), o Papa
revelou, com algum humor, que a comissão trabalhou durante quase dois anos. Eram todos diferentes,
todos «rãs de lagos diferentes», todos pensavam de forma diferente, mas
trabalharam juntos e chegaram a acordo até um certo ponto. Mas, cada um deles
tem a sua própria visão, que não concorda com a dos outros, e pararam aí como
comissão. Cada um está a estudar como prosseguir. Isso é bom! Varietas
delectat.
A
variedade deleita, mas não deve servir para passatempo de diletantes. As mulheres
católicas, na Alemanha, já não suportavam mais conversa vazia e resolveram entrar
em greve. Foi convocada para esta semana, entre sábado passado, dia 11,
e o próximo, dia 18 de Maio. Deixaram lenços brancos nos bancos das Igrejas e, no
exterior, nas praças e nos adros, houve celebrações, partilha, canto, mulheres
vestidas de branco.
Com todas as cautelas eclesiásticas, o porta-voz da
Conferência Episcopal Alemã, Mathias Kopp, em declarações a uma cadeia de TV, em
Roma, já acusou o toque. Veremos o que irão fazer…
Os bispos alemães anunciaram que vão abrir um sínodo de diálogo com
alargada participação de todos e todas, sem temas-tabu. Veremos, como diz o
cego[2].
2. Na história da Igreja, desde o NT, há sempre que investigar,
mas não é preciso esperar o fim do mundo para decidir. S. Paulo esperava-o para
muito breve. As comunidades cristãs, na sua variedade, sentiram que este mundo
é o lugar de testemunhar e seguir o caminho aberto por Jesus de Nazaré. Daí
surgiram as narrativas de S. Marcos, S. Mateus, S. Lucas e S. João. São
razoavelmente diferentes, reflectindo situações diversas, mas todas com o mesmo
objectivo: o seguimento criativo de Jesus
em todas as situações da vida.
Quando,
na Eucaristia, se diz Fazei isto em
memória de Mim, não é porque Jesus tivesse receio de ser esquecido.
Significa, pelo contrário, continuai o
Evangelho. O Pentecostes indica, precisamente, não fiqueis a olhar para o ar, ide por todo o mundo e inventai o futuro
na linha inaugurada pelo Nazareno, porque o espírito dele e o dos discípulos é
o mesmo, igualmente criativo.
Quando,
hoje, se discute o lugar das mulheres, na Igreja católica, o que é preciso ter
em conta, em primeiro lugar, é a criatividade de Jesus. Para isso é necessário
pensar na situação social e religiosa da mulher, quando Ele entra em acção. A
expressão usada pelas narrativas evangélicas, nos momentos solenes, dizia tudo
em poucas palavras: não contando mulheres
e crianças. Estavam lá, mas não contavam. O facto de não falarem delas, na
chamada Última Ceia, não significa,
necessariamente, que não tivessem participado. Naquela cultura, elas não
contavam. Diz-se, por outro lado, que nunca são chamadas discípulas, no
entanto, o vocabulário da realidade do discipulado é-lhes aplicado, muito mais
do que aos homens. No Evangelho de Marcos é dito que junto da cruz “também ali
estavam algumas mulheres a contemplar de longe, entre elas, Maria de Magdala,
Maria, mãe de Tiago Menor e de José, e Salomé, que o seguiam e serviam quando ele estava na Galileia; e muitas outras
que tinha subido com Ele a Jerusalém”[3].
3. Seguir e servir
é o vocabulário dos discípulos, dos Doze: “Nós seguimos-te”[4].
Implicava deslocar-se com o mestre nas tarefas da evangelização, algo
impensável na sociedade em que Jesus cresceu. Quando Marcos diz que as
mulheres, que estavam ao pé da cruz, seguiam
Jesus, é porque faziam parte do grupo itinerante dos seus discípulos.
Seguiram-no desde a Galileia até Jerusalém. Não para executar as tarefas
tradicionalmente atribuídas às mulheres, mas para entrarem na sua escola,
acolhendo os seus ensinamentos. Elas não podiam estudar a Palavra de Deus. Alguns
rabinos diziam que era preferível queimar o livro da Lei a entregá-lo à guarda
de uma mulher; quem ensina a Lei à sua filha, ensina-lhe obscenidades; todos os
males que existem no mundo entram pelo tempo que os homens perdem a falar com
as mulheres[5].
No Evangelho de Lucas,
afirma-se que “Jesus ia de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, proclamando e
anunciando a Boa-Nova do reino de Deus, acompanhavam-no os Doze e algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos
malignos e enfermidade: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete
demónios; Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes; Susana, e muitas
outras, que os serviam com os seus bens”[6].
Note-se como o evangelista coloca os Doze e as mulheres num mesmo nível, uma
vez que une os dois grupos com a conjunção “e”, que serve para os igualar.
Isto sem falar que, quem
evangelizou os Doze, depois da sua traição e da Ressurreição de Cristo, foram
as mulheres, a começar por Maria Madalena, segundo os quatro evangelistas[7].
Quando, hoje, se estuda a
história para saber o lugar das mulheres na Igreja, esquece-se o essencial: a
revolução de Jesus, a memória da sua intervenção que, ainda hoje, entendemos
mal.
in Público, 19.05.2019
https://www.publico.pt/2019/05/19/sociedade/opiniao/mulheres-catolicas-greve-1872792
[1] Gary Macy, William T.
Ditewig, Phyllis Zagano, Mulheres diáconos. Passado – Presente
– Futuro, Paulinas
Editora, 2019.
[2]
Cf. 7Margens, 14.05.2019
[3]
Mc 15, 40-41
[4]
Mc 10, 28
[5]
Cf. Ariel Álvarez Valdés, Jesus teve
discípulas mulheres, in Bíblica
382 (Maio-Junho 2019), 387-392.
[6]
Lc 8, 1-3
[7]
Cf. A. Cunha de Oliveira, Jesus de Nazaré
e as mulheres, Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroísmo, 2011; José
António Pagola, Jesus. Uma abordagem histórica,
Gráfica de Coimbra, 2008, cap. 8 Amigo
da Mulher
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MOTU PROPRIO ANTI-ABUSOS
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
1. Muitas vezes me tenho referido aqui, e
não só aqui, à tragédia da pedofilia na Igreja. Foram milhares de menores e
adultos vulneráveis que foram abusados. Mesmo sabendo que o número de pedófilos
é muito superior na família e noutras instituições, a gravidade da situação na
Igreja é mais dramática. Por várias razões: as pessoas confiavam na Igreja
quase sem condições, o que significa que houve uma traição a essa confiança, e
o clero e os religiosos têm responsabilidades especiais. O mais execrável: abusou-se
e, a seguir, ameaçou-se as crianças para que mantivessem silêncio, pois, de
outro modo, cometiam pecado e até poderiam ir para o inferno. Isto é
monstruoso, o cume da perversão. E houve bispos, superiores maiores, cardeais,
que encobriram, pois preferiram salvaguardar a instituição Igreja, quando a sua
obrigação é proteger as pessoas, mais ainda quando as vítimas são crianças. O
Papa Francisco chamou a esta situação “abusos sexuais, de poder e de
consciência”. Também diz, com razão, que a base é o “clericalismo”, julgar-se
numa situação de superioridade sagrada e, por isso, intocável. Neste abismo,
onde é que está a superioridade do exemplo, a única que é legítimo reclamar?
Felizmente, há hoje um alerta da opinião
pública e, por isso, Francisco, em vez de condenar ou atribuir outras intenções
aos meios de comunicação social, agradece, pois foi o meio para que também a
Igreja acordasse do seu sono sacrílego.
E, aí, Francisco tomou uma iniciativa
inédita e histórica, convocando uma Cimeira para o Vaticano, de 21 a 24 de
Fevereiro passado. Foi uma Cimeira com 190 participantes, entre os quais 114
Presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo, bispos representando
as Igrejas católicas orientais, alguns membros da Cúria, representantes dos
superiores e das superioras gerais de ordens e congregações religiosas, alguns
peritos e leigos.
O Papa queria, em primeiro lugar, que se
tomasse consciência da situação e do sofrimento incomensurável causado, que
fica para a vida. E que se tomasse medidas concretas, de tal modo que se
pudesse constatar um antes e um depois desta Cimeira verdadeiramente global e
representativa da Igreja universal e nos seus vários níveis. Os três dias
estiveram sob o lema tríplice: “responsabilidade”, “prestação de contas”, “transparência”.
O Papa quer — não se trata de mero desejo — implantar “tolerância zero”.
2. Para implantar essa “tolerância zero” e
pôr fim a esta catástrofe na Igreja, foi publicado, no passado dia 9 de Maio, o
Motu Proprio (Decreto de iniciativa papal), que entra em vigor no dia 1 de
Junho. Nesta Carta Apostólica, com o título “Vos estis lux mundi” (Vós sois a
luz do mundo), o Papa Francisco decreta medidas concretas contra a pedofilia na
Igreja.
Estas normas contra os abusadores e os
encobridores impõem-se, porque, escreve Francisco, “o delito de abuso sexual
ofende Nosso Senhor, causa danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas
e prejudica a comunidade dos fiéis.”
Os clérigos e religiosos ficam obrigados
(não se trata de mera obrigação moral, mas legal) a denunciar os abusos aos
superiores, bem como a informá-los sobre as omissões e encobrimentos na sua
gestão. Todas as Dioceses do mundo têm a obrigação de criar no prazo de um ano
um ou mais sistemas estáveis e de fácil acesso ao público, para que, com
facilidade, todos possam apresentar informações sobre abusos sexuais cometidos
por clérigos e religiosos e o seu encobrimento. O documento ratifica a
obrigação de colaborar com a justiça civil dos países. Aliás, “estas normas
aplicam-se sem prejuízo dos direitos e obrigações estabelecidos em cada lugar
por leis do Estado, em particular as relativas a eventuais obrigações de
informar as autoridades civis competentes”. Para lá do assédio e da violência
contra menores (menos de 18 anos) e adultos vulneráveis, o texto inclui a
violência sexual e o assédio que provêm do abuso de autoridade, bem como a
posse de pornografia infantil e qualquer caso de violência contra as religiosas
por parte de clérigos e ainda os casos de assédio a seminaristas ou noviços maiores
de idade. Impõe a protecção dos denunciantes e das vítimas: quem denuncia
abusos não pode ser objecto de represálias ou discriminação por ter informado;
as vítimas e suas famílias serão tratadas com dignidade e respeito e devem
receber a devida e adequada assistência espiritual, médica e psicológica; é
preciso atender também ao problema das vítimas que no passado foram reduzidas
ao silêncio. Estas normas aplicam-se à Igreja universal. Solicita-se vivamente
a colaboração dos leigos, que podem ter capacidades e competências que os
clérigos não dominam. Evidentemente, reafirma-se o princípio da presunção de
inocência da pessoa acusada e o segredo da confissão deve manter-se como
inviolável. Como escreve o Papa, “para que estes casos, em todas as suas formas,
nunca mais aconteçam, é necessária uma conversão contínua e profunda dos
corações, atestada por acções concretas que envolvam todos os membros da
Igreja.”
3. Na apresentação do documento esteve
também Charles Scicluna, Arcebispo de Malta e Secretário adjunto da Congregação
para a Doutrina da Fé, considerado o homem forte do Papa na temática
anti-abusos. São suas estas declarações na altura: “Ninguém com
responsabilidade na Igreja está acima da lei. Agora temos uma lei universal que
determina as etapas fundamentais para a investigação de um membro eclesiástico,
Bispo ou Superior Maior, religioso ou religiosa. Acabou a imunidade.”
Já depois da publicação do Motu Proprio,
rebentou na Polónia mais um escândalo: um documentário sobre abusos sexuais do
clero polaco, com o título “Não digas a ninguém”, abalou a sociedade. A
película sobre casos de menores abusados sexualmente por religiosos católicos
provocou uma onda de reacções na Polónia, com mais de três milhões de visitas
na internet nas primeiras horas que se seguiram à sua publicação. Entre as
vítimas está também o testemunho de um homem que foi abusado aos 12 anos pelo
sacerdote que foi confessor do ex-presidente polaco e líder histórico do
Solidariedade, Lech Walesa.
Estou convicto de que agora se está no
caminho certo para acabar com esta chaga terrível na Igreja. Espera-se que,
limpa, a Igreja possa ficar mais livre para dar o seu contributo imprescindível
no sentido de ajudar a limpar da mesma chaga tantas outras instituições, com a
instituição familiar à cabeça, que no mundo infernalizam a vida de inocentes.
in DN, 19.05.2019
www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/motu-proprio-anti-abusos--10916222.html?target=conteudo_fechado
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO
MENDONÇA
O SENTIDO DO CORAÇÃO
A ESCUTA NÃO SE FAZ APENAS COM O OUVIDO EXTERIOR, MAS COM O SENTIDO DO
CORAÇÃO
Falta-nos,
talvez, descobrir ainda quanto a escuta é um sentido adequado para acolher a
complexidade daquilo que a vida é. A verdade é que escutamos tão pouco e,
dentre as competências que desenvolvemos vida fora, raramente está a arte de
escutar. Na Regra monástica de São Bento há uma expressão essencial, se
quisermos perceber como se ativa uma escuta autêntica: “Abre o ouvido do teu
coração.” Quer dizer: a escuta não se faz apenas com o ouvido exterior, mas com
o sentido do coração. A escuta não é apenas a recolha da malha sonora do
discurso. Antes de tudo, é uma atitude que se pode descrever como um
inclinar-se para o outro, uma disponibilidade para acolher o dito e o não dito,
uma abertura tanto ao entusiasmo do visível como ao seu avesso, à sua dor. O conhecimento
de que mais precisamos provém dessa forma de hospitalidade que a escuta
representa.
Sabemos que
uma árvore que tomba faz mais barulho que uma floresta a crescer. E se um
camião se desloca vazio ou com meia carga faz mais rumor do que se for realmente
cheio. O vazio pode ser muito ruidoso e a plenitude completamente silenciosa.
Um Padre do Deserto contava que a capacidade de escuta de um discípulo era tão
grande que conseguia distinguir, à distância de muitos metros, uma agulha a
cair. Ora, muitas vezes, nós nem a poucos centímetros somos capazes de ouvir a
vida a tombar. A escuta pede, por isso, exercitação e treino. Numa cultura de
avalancha como a nossa, ela configura-se como um recuo crítico perante o
frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto nos submergem. Os
modelos de vida hoje em vigor são atordoantes, e a única compensação para as
nossas existências extenuadas parece ser o entretenimento. Porém, a própria
palavra ‘entreter’ fala por si mesma: entreter significa ter ou manter entre,
numa espécie de suspensão que nos captura. E a dada altura, nessa terra de
ninguém, não vivemos já em lado algum, nem em nós próprios.
Muitas vezes, nós nem a poucos
centímetros somos capazes de ouvir a vida a tombar. A escuta pede, por isso,
exercitação e treino
Há uma outra
história dos ditos e feitos dos Padres do Deserto (Edição Assírio & Alvim,
2004), que dá que pensar. Um mestre tinha doze discípulos e o seu preferido era
o que se ocupava da caligrafia. Isso naturalmente gerava problemas aos
restantes, que não percebiam aquela predileção. Então o mestre decidiu
colocá-los à prova em conjunto. E, um dia, em que estavam todos ocupados a
trabalhar, cada um em sua cela, o mestre clama: “Eia, meus discípulos, vinde a
mim.” O primeiro que apareceu foi o discípulo calígrafo e só depois, pouco a
pouco, chegaram os outros. O mestre levou-os então à cela do calígrafo e
disse-lhes: “Vede, ele estava aqui a desenhar a letra ómega e interrompeu o
desenho de uma pequena letra para acorrer ao mestre.” Então os discípulos
responderam: “Percebemos agora. Amas aquele que verdadeiramente te escuta.”
Mas há, porém,
um paradoxo com o qual temos de contar: é que a verdadeira escuta pede que nos
tornemos surdos. Diz Evagro Pôntico, um antigo mestre espiritual: “Esforça-te
por conservar o teu espírito surdo e só assim poderás rezar.” Que surdez é
esta? É aquela que brota do abandono. A nossa escuta é permanentemente
interrompida por urgências que se impõem, sobretudo falsas urgências, ficções
que nos povoam e barram a experiência essencial. Sempre que a nossa escuta
desiste de ir até ao fim, ela desiste de si. Por isso Evagro recomenda:
“Torna-te surdo.” A verdade é que se não formos capazes disso, não
mergulharemos no silencioso oceano da escuta. Convite paradoxal a se perder
para encontrar-se. Teremos de aprender a trocar a potência do ruído pelo
murmúrio do silêncio. E a ser como os rebanhos que nos campos seguem o sopro
trémulo da flauta do pastor em vez do vento.
in Semanário
Expresso, 19.05.2019
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2429/html/revista-e/que-coisas-sao-as-nuvens/o-sentido-do-coracao
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À PROCURA DA PALAVRA
P.
Vítor Gonçalves
DOMINGO
V DA PÁSCOA Ano C
“Como
Eu vos amei,
amai-vos
também uns aos outros.”
Jo
13, 34
Como Ele…
As
despedidas nunca são fáceis. Pensar que deixamos de ver pessoas, uma terra,
realidades que amamos, abre uma fenda dentro de nós. É como se ficasse um pouco
do que somos naquele lugar, naqueles corações. E assim me maravilho com os
“discursos da despedida de Jesus” que S. João nos dá no seu Evangelho, ao longo
de três capítulos. São palavras que têm um sabor de tesouro, do qual vamos
retirando sempre coisas novas e antigas, como o presente de um pequeno “manual
de instruções” do essencial para a vida e a missão dos seus discípulos. O
mandamento novo do “amai-vos uns aos outros” passa a ter uma medida: “como Eu”!
Isto é, sem medida, sem limite, tudo e todo!
Confundimos
facilmente “amar” com “gostar”. E, contudo, trata-se de algo diferente. Quantas
vezes lembro Martin Luther King, o pastor protestante norte-americano, defensor
dos direitos cívicos dos negros, que dizia: “Eu não consigo gostar de quem vem
a minha casa e maltrata a minha família porque somos negros; não consigo gostar
dele, mas, porque sou cristão, quero amá-lo.” A radicalidade que Jesus propõe
de “amar os inimigos”, não é expressão dessa ultrapassagem do sentimento?
Quando se ama, ultrapassamos o “condomínio afectivo” dos amigos, e arriscamos
uma universalidade que parece impossível. Que bom, nesse esticar do coração,
estarem os que chamamos amigos, mas que sintonia com o coração de Deus quando
vamos mais além!
Como
Jesus ama de modo universal, não podia propor-nos um viver “a meio-amor”. É o
amor sem muros nem fronteiras de qualquer espécie, numa preferência pelos que
são periferia de tantos centros (religiosos, e outros tão “bem colocados”),
pelos que não contam e são descartáveis, os discriminados e excluídos, os que
erraram ou persistem no mal. E é fácil constatar essa universalidade: como Ele,
os que assim vivem, também receberão incompreensão e recusa.
Como
Jesus ama de modo concreto, fazendo de cada um o centro da sua atenção, numa
contínua saída de si, não podia oferecer-nos uma “auto-salvação” de consolos
espirituais. Pensar primeiro no que pode acontecer ao outro, nas mil
possibilidades de o ajudar, como fez o bom samaritano no caminho de Jericó, é o
sinal dessa saída. “Se eu penso em mim, tu ficas só, / se eu penso em ti
seremos nós”, diz um cântico conhecido. Como Jesus, haverá também vozes que nos
chamarão: “amigo de publicanos e pecadores”!
Como
Jesus ama sem contabilidade nem medida, e não espera retorno, não podia desejar
discípulos calculistas e avarentos, de tantas graças que guardam em vez de
dá-las gratuitamente. É o amor em abundância da herança desperdiçada, do
denário dado a todos, da outra face apresentada, do perdão até “setenta vezes
sete”, do céu oferecido ao bom ladrão, do bem que se faz ao que nos fez mal. E
como Jesus, as vidas dos que amam assim, incomodando poderes e pondo em causa a
ordem pública, encontrarão outras tantas crucifixões.
“Como
Ele…” parece impossível, mas “com Ele” já descobrimos esse amor na vida de
tantos!
in Voz
da Verdade, 19.05.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8170&cont_=ver2
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Francolino
Gonçalves, inovador dos estudos bíblicos, homenageado em simpósio
António Marujo | 19 Maio 19
Frei Francolino Gonçalves. Foto © Luís Filipe Santos/Agência Ecclesia
Um simpósio internacional que pretende
homenagear o trabalho de frei Francolino Gonçalves, frade dominicano, destacado
estudioso do Antigo Testamento na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa (EBAF)
de Jerusalém, e “um dos maiores teólogos portugueses de sempre”, decorrerá em
Lisboa nos próximos dias 20 a 22 (segunda a quarta-feira da próxima semana).
Este é um projecto nascido “da amizade”
e da admiração científica de duas colegas e amigas de frei Francolino, explica
ao 7MARGENS Ana Valdez, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL)
e uma das responsáveis pela iniciativa.
Francolino Gonçalves inovou os estudos
bíblicos, com o seu contributo acerca dos dois Yhaweh, as duas representações
de Deus na Bíblia: o Deus vingativo e destruidor, de um lado, o Deus bondoso do
outro. “Esta é uma caracterização simplista”, diz Ana Valdez, mas muitas vezes
as diferentes visões de Deus encontram-se a par no mesmo texto.
A responsável pela organização do
simpósio acrescenta que há em Portugal um problema: quem apenas ouve leituras
de trechos bíblicos nas missas de domingo “não conhece a Bíblia, apesar de
estarmos numa sociedade tradicionalmente católica”. Pelo contrário, no universo
protestante conhecem-se os conceitos, a linguagem, a evolução dos mesmos e as
diferentes mãos que construíram o texto. Por isso, acrescenta, é importante
conhecer a forma como o texto bíblico é escrito quando passa da oralidade ou as
influências externas que recebe.
Esse percurso cultural acaba por ter
influência no desenvolvimento dos conceitos sobre Yhaweh, explica Ana Valdez.
No início, a Bíblia (os textos do Antigo Testamento, grosso modo, da Bíblia
judaica) era um texto falado. Com a passagem a escrito, a diversidade narrativa
ganha forma. E foi esse processo que Francolino Gonçalves estudou, inovando de
forma decisiva os estudos bíblicos contemporâneos.
Projecto
nascido da amizade
“Desde a morte de frei Francolino que
pensávamos organizar alguma iniciativa”, diz Ana Valdez, que também foi aluna
do frade dominicano português. Em conjuntocom Claudine Dauphin, da Universidade
de Gales, a investigadora portuguesa, investigadora principal do Centro de
História da FLUL mobilizou outros colegas académicos, investigadores e amigos
de Francolino Gonçalves para pôr de pé o simpósio que agora decorrerá em
Lisboa, assinalando também uma os dois anos da morte de frei Francolino, a 15
de Junho de 2017.
Quando diz que o projecto nasce da
amizade, Ana Valdez está a ser muito concreta: o simpósio realiza-se porque
cada participante paga as duas despesas, ficando os alojamentos distribuídos
por casas religiosas, já que foi impossível encontrar financiamento para a
iniciativa.
O simpósio conta com intervenções de
duas dezenas de destacados investigadores portugueses e estrangeiros, todos
eles colegas nas áreas que o dominicano português investigou. Entre eles,
Thomas Thompson, americano que vive em Copenhaga, que investigou a toponímia
israelo-palestinense; Émile Puech, Julio Trebolle Barerra e Florentino García
Martínez, especialistas na história bíblica e nos manuscritos do Mar Morto;
vários dos investigadores da EBAF, entre os quais Paolo Garuti, que sucedeu a
frei Francolino na direcção da revista e da colecção de monografias da EBAF; e
ainda nomes outros como Frédéric Manns (autor de Maria, Uma Mulher Judia, por
exemplo) ou Ingrid Hjelm.
De
Trás-os-Montes a Jerusalém
Nascido em 28 de Março de 1943 em
Corujas (Macedo de Cavaleiros), Francolino Gonçalves fez a sua primeira
profissão religiosa como dominicano em 1960 e foi ordenado padre em 1968.
Trabalhou durante quatro décadas na EBAF de Jerusalém, para onde foi como
bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1969.Exerceu vários cargos naquele
centro de investigação, um dos mais importantes do mundo na área dos estudos
bíblicos, nomeadamente na vertente arqueológica.
Manteve sempre, no entanto, a ligação a
Portugal, onde voltava por períodos largos, quase todos os anos, para orientar,
coordenar ou participar em programas de pós-graduação portugueses, primeiro em
História Antiga e depois em História e Cultura das Religiões, na Universidade
de Lisboa, na Universidade Católica Portuguesa e na Universidade Nova de
Lisboa.
No seu trabalho, procurava tornar
acessível a mensagem bíblica a todos os
públicos, distinguindo as intervenções que fazia em função do público que o
escutava ou lia. Também se distinguiu na forma como ajudou a formar gerações de
estudantes na área da Bíblia e da teologia.
Tendo em conta precisamente as suas
ligações a diferentes instituições universitárias, o simpósio decorre em
diferentes locais: Faculdade de Letras da UL (dia 20 de Maio, anfiteatro III),
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova (dia 21, auditório
I, torre B), e Convento Dominicano de São Domingos de Lisboa (dia 22).
in 7Margens,
https://setemargens.com/francolino-goncalves-inovador-dos-estudos-biblicos-homenageado-em-simposio/?utm_term=7Margens+-+Hoje+-+Francolino+GonA%C2%A7alves%2C+inovador+dos+estudos+bA%C2%ADblicos%2C+homenageado+em+simpA3sio&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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http://www.facebook.com/nossomosigreja
www.we-are-church.org/
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