QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
O MAPA DO TESOURO
NÃO
DEVEMOS COLOCAR DE UM LADO O SONHO DE UMA VIDA AUTÊNTICA E DO OUTRO A VIDA
ORDINÁRIA QUE VIVEMOS. É NO ENCONTRO DAS DUAS QUE A NOSSA EXISTÊNCIA REFULGE
No verão apetece-nos trocar
os mapas. E há um sentido que se cumpre em fazer-se à estrada, em mudar de
língua, de respiração e de paisagem, em deslocar-se na procura de outros
lugares. O mundo é também a nossa experiência do mundo. E precisámos disso que
se avista longe, disso que se toca nos cimos intangíveis, disso que nos é dito
em linguagens que porventura nem percebemos a fundo, mas que na sua recôndita
estranheza reconhecemos como próxima e íntima. A verdade é que nós não somos
sedentários que se tornam viajantes. Somos desde sempre viajantes que
provisoriamente se demoram antes de prosseguir, de novo, o curso da viagem. Mas
tal como o caminho, também a nossa demora (por provisória que, perante o nosso
destino último, ela possa ser) tem um significado, oferece-nos uma razão,
abre-nos uma oportunidade.
Não somos sedentários que se tornam viajantes.
Somos viajantes que provisoriamente se demoram antes de prosseguir, de novo, o
curso da viagem
Penso muitas vezes naquela
saborosa história hassídica que o filósofo Martin Buber conta num dos seus
livros. É a história de Eisik de Yékel, um judeu de Cracóvia. Os muitos anos
vividos na miséria não haviam abalado a sua confiança em Deus, e ele acabou
recompensado com uma revelação. Recebeu em sonhos o mandato de deslocar-se até
à cidade de Praga e de procurar aí um tesouro que estaria escondido debaixo da
ponte que conduz ao palácio real. A primeira vez que sonhou com isso não ligou.
À segunda ficou intrigado. Quando o sonho se repetiu pela terceira vez, Eisik
levou-o a sério e fez-se a pé ao longo caminho. Chegou, por fim, a Praga e
dirigiu-se imediatamente à ponte, mas esta — percebeu com desânimo — era
controlada, noite e dia, por sentinelas, o que tornava impossível qualquer
escavação no local. Contudo, não perdeu a esperança e girava para cá e para lá
ao longo da ponte. Não decorreu muito tempo até que o capitão da guarda o
interpelasse perguntando se esperava alguém ou procurava ali alguma coisa. A
Eisik, porém, aquele soldado deve ter parecido amistoso, pois decidiu
contar-lhe o sonho que o arrastara de sua casa até aquele ponto distante. O
capitão não pôde conter uma gargalhada: “E por causa de um sonho, pobre homem,
viajaste até aqui, desperdiçando as solas no caminho! Quem se pode fiar em
sonhos! Imagina que, se assim fosse, também eu deveria já ter peregrinado até
Cracóvia e escavar na casa de um certo judeu, chamado Eisik de Yékel, para
tomar posse do tesouro que se encontra debaixo do forno! Estaria metido em
belos trabalhos se confiasse em sonhos e me pusesse a escavar nas casas de uma
cidade estranha onde uma metade dos habitantes judeus se chama Eisik e a outra
metade Yékel!” Abanava a cabeça e não parava de rir. Eisik saudou-o, tomou o
caminho de regresso a casa, e desenterrou o tesouro que há muito o esperava.
Trata-se de uma história
antiquíssima e encontrámo-la contada com variantes em tantas literaturas
populares. Ela relata um paradoxo que nos atravessa a todos. Esta perceção,
primeiro, de que existe um tesouro extraordinário que nos está prometido;
segundo, que não o podemos encontrar em parte nenhuma do mundo e, no entanto,
sentimo-nos incessantemente chamados a buscá-lo; terceiro, que há apenas um
lugar onde o podemos achar: no lugar familiar, comezinho e banal onde se
inscreve o nosso rotineiro quotidiano. De facto, não devemos colocar de um lado
o sonho de uma vida autêntica e de outro a vida ordinária que vivemos. É no
encontro das duas que a nossa existência refulge. O maior tesouro é poder
cumprir a existência que está, aqui e agora, ao meu dispor. Uma outra história
da tradição hassídica diz o seguinte: Um dia, ao receber em sua casa alguns
homens ilustres, o Rabi Mendel de Koretz surpreendeu-os com esta pergunta:
“Onde mora Deus?” Perante a reação embaraçada dos seus hóspedes, o próprio Rabi
acrescentou: “Deus mora onde o deixamos entrar.”
in Semanário Expresso, 03.08.2019 p 148
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