P / INFO: Crónicas &
Archbishop says married priests still up for debate
Frei Bento: Presos políticos
Pe. Anselmo: A morte medicamente assistida e
a eutanásia
Pe. Tolentino: Os
selfistas
Pe Vitor: Um salto para o alto
PRESOS
POLÍTICOS
Frei
Bento Domingues, O.P.
1.
Ontem, no Auditório Camões (Lisboa), foi realizada uma Sessão Cultural inscrita
nas comemorações dos 50 anos da Comissão Nacional de Socorro aos Presos
Políticos (CNSPP). 50 anos não é uma eternidade, mas é tempo suficiente para se
perder a memória acerca do que não deve ser esquecido. A referida comissão
teve, felizmente, uma existência breve, de 1969 a 1974, pelo melhor dos
motivos: o 25 de Abril. O seu percurso está bem documentado[1].
Além disso, vai sair, em breve, um novo e interessante estudo sobre essa
documentação com uma proposta de enquadramento, enquanto movimento social, que
exige alguma discussão que não cabe nesta crónica[2].
Tentarei, ainda que brevemente, referir a sua originalidade exemplar.
Um
grupo de cidadãos, integrado por dezenas de personalidades de sectores sociais,
profissionais e áreas geográficas diversas, entregou na Presidência do Conselho
de Ministros um documento, datado de 15 de Novembro de 1969, no qual anunciava
a constituição da CNSPP, baseada no artigo 199 do Código Civil. Neste estava
prevista a formação de comissões especiais, não sujeitas ao reconhecimento
oficial, para acções de socorro ou beneficência. Os signatários consideravam
que a existência de presos políticos era justamente uma situação de calamidade[3].
Deve dizer-se de calamidade nacional na medida em que a polícia política, com
diversos nomes ao longo dos anos, tentava fazer do medo a prisão do país e da
intervenção política um risco ameaçado com a cadeia.
A
CNSPP procurava responsabilizar o Governo e alertar a opinião pública perante a
gravidade da permanente violação das liberdades e direitos fundamentais, pela
actuação da polícia política todo-poderosa, ao abrigo de uma legislação penal
perversa, sob arbítrio de um tribunal especial. Além do auxílio prestado aos
presos políticos e às suas famílias, por forma directa, constituiu sempre
preocupação desta comissão a constante chamada à responsabilidade de todos
aqueles que integravam as engrenagens da repressão política.
Essas
tomadas de posição tiveram as mais variadas formas de expressão, nelas se
incluindo exposições de factos concretos sobre a situação dos presos,
telegramas e cartas de protesto quanto ao tratamento de que eram vítimas pelas
autoridades policiais e prisionais, denúncias de abusos e ilegalidades
praticadas por essas mesmas autoridades.
2.
O
primeiro comunicado da CNSPP foi lançado ao país, de modo a não ser
interceptado, a 20 de Janeiro de 1970. As actividades da referida comissão só
foram possíveis pela aceitação que encontraram, tanto no País como no
estrangeiro, especialmente na Europa. É de referir, também, o enorme interesse
e a solidariedade que o problema dos presos políticos em Portugal merecia de
organizações humanitárias, sindicais e mesmo políticas em diversos países, bem
como de numerosos meios de informação.
Depois
da queda do regime (25 de Abril 1974), uma vez que todos os presos políticos
tinham sido libertados, foi convocada uma reunião para saber se a Comissão
devia continuar ou não. Não foi sem discussão que se decidiu a sua extinção,
pois as regras concretas de um regime democrático ainda não estavam claras e
longe de serem consolidadas, como a seguir se verificou.
O
último volume de Documentos (1972-1974) é precedido de uma Nota
Prévia, datada de 5 de Outubro de 1974, que faz uma exacta avaliação do
percurso da CNSPP e cuja leitura é indispensável para quem desejar conhecer
essa aventura de resistência à ditadura.
Seria
no entanto ridículo supor que, antes da CNSPP, não existiam movimentos e grupos
de diversas configurações de socorros aos presos políticos. Mas sem ignorar e
sem dispensar a actuação de qualquer das iniciativas existentes, aconteceu algo
de inédito e exemplar. Esta comissão era constituída por pessoas de várias
orientações ideológicas, políticas, culturais e religiosas com o objectivo de
socorrer os presos políticos e suas famílias sem acepção de pessoas. Todos os
presos políticos eram socorridos da mesma maneira pelas diversas intervenções
da comissão. À comissão só lhe interessava a condição de preso político sem
mais considerações.
Era
a própria existência de presos políticos que constituía um atentado contra os
direitos humanos. Era essa a primeira tortura que permitia todas as outras
requintadas loucuras e arbitrariedades, destinadas a quebrar todas as
resistências físicas e psicológicas do preso, que tinha cometido o crime de
lutar contra a ditadura. É, aliás, essa situação que mostra a diferença entre
democracias e ditaduras.
A
actividade cívica, humanitária e política da CNSPP foi reconhecida pela
Assembleia da República, atribuindo o Prémio Direitos Humanos de 2010 a
dois dos seus membros – Frei Bento Domingues e Dr. Levy Baptista – em representação
da Comissão, e com a reedição das 23 circulares informativas publicadas entre
1970 e 1974.
3.
As hesitações referidas acerca da extinção da CNSPP não eram totalmente
despropositadas. Em nome do êxito da revolução, surgiram várias iniciativas em
contradição com o espírito das reivindicações da CNSPP. O Prof. Ruy Luís Gomes,
perante um projecto de lei revolucionário, reagiu: «Este projecto é indigno dos
gloriosos militares que fizeram a revolução de 25 de Abril. É profundamente
anti- democrático, na parte em que autoriza a punição criminal da discordância
política e, pior ainda, na parte em que repõe em vigor as hediondas “medidas de
segurança” com que o fascismo sempre perseguiu os seus opositores. Se este
projecto, tal como está, é para ser transformado em lei, então mais valia não
ter feito Revolução nenhuma: bastava ter feito um golpe de Estado e pôr os
novos carrascos a aplicar as mesmas leis dos antigos!»[4].
O
25 de Abril pôs fim a uma longa ditadura, mas não podia, do pé para a mão,
desenvolver uma cultura da responsabilidade democrática. Sabemos isso e não
falta quem deseje, hoje, servindo-se das instituições democráticas, restaurar
uma ditadura que não conheceu[5].
in Público, 16. 02. 2020
NOTA: A esta hora esta crónica
ainda não está on line
[1] PRESOS
POLÍTICOS – Documentos 1970/1971 e 1972/1974 – Comissão
Nacional de Socorro aos Presos Políticos, Iniciativas Editoriais, Lisboa,
1974
[2]
Edgar Freitas Gomes Silva, Vencer o Medo. Arquitetura da Comissão de Socorro
aos Presos políticos, no Prelo da Editora Afrontamento, Porto
[4]
Diogo Freitas do Amaral, O Antigo Regime e a Revolução. Memórias Políticas
(1941-1975), Bertrand / Nomen, 1995, 320-321; Por teu livre pensamento.
Histórias de 25 ex-presos políticos portugueses. Textos de Rui Daniel
Galiza; Fotografias de Joao Pina, Assírio & Alvim, 2007.
[5] Ver o artigo de
Francisco Bethencourt, Democracia, in Público (04.12.2019) e o de Irene
Flunser Pimentel, Populismo de extrema-direita, o inimigo a combater, in
Público (13.02.2020).
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A morte medicamente assistida e a eutanásia
Anselmo Borges
Numa sociedade
economicista, de individualismo e egoísmo atrozes, ergue-se o perigo gravíssimo
de pessoas serem "empurradas" a pedir a eutanásia e, pior, muitos
interiorizarem inclusivamente a obrigação de a pedir. Isso não obriga a pensar?
Não é por acaso que este texto tem por
título "a morte medicamente assistida e a eutanásia". É que, em
primeiro lugar, nestes debates de vida e de morte é preciso ser claro e não
induzir em erro as pessoas de forma manhosa: morte medicamente assistida é uma
coisa, eutanásia é outra... O grande filósofo Hegel lembrou a urgência de
conceitos claros, pois "de noite todos os gatos são pardos" e, no
meio da confusão, ninguém se entende, e, nessas circunstâncias, em problemas
que têm que ver com o limite o mais provável é cair no abismo.
Evidentemente, a posição da Igreja na
questão da eutanásia só pode ser, mesmo no caso de um referendo - a Conferência
Episcopal Portuguesa acaba, tarde, de se manifestar favorável nas presentes
circunstâncias ao referendo -, a de uma oposição contundente e propugnando a
defesa dos cuidados paliativos e a presença plena, humana e cristã, junto de
quem se encontra em dificuldades, na solidão, na dor, no sofrimento e a caminho
do fim. Aliás, essa presença solidária tem de ser durante a vida toda, para vivermos
dignamente, sabendo que da vida digna faz parte a morte digna: viver dignamente
e morrer dignamente. Mas previno que o que está em questão não é, em primeiro
lugar, a religião, mas valores fundamentais, constitutivos, da civilização, de
tal modo que a aprovação da eutanásia significaria um retrocesso e mesmo uma
ruptura civilizacional.
Embora compreenda os argumentos a seu favor
- há vários textos meus nos quais explico esses argumentos -, quero que fique
bem claro que eu me oponho à eutanásia e a que o debate sobre o seu pedido
volte à Assembleia da República. Porque é que os principais partidos não
debateram abertamente a questão durante a recente campanha eleitoral nem a
colocaram nos programas? Não estou só a pensar nos perigos da rampa deslizante:
lembro que, nos pouquíssimos países onde o pedido de eutanásia é legal, esta
rampa ou plano inclinado existe de facto, com alargamento quantitativo e
qualitativo de pedidos aceites e autênticos casos de abuso (homicídio)
reconhecidos - por exemplo, está em curso na Bélgica uma acusação contra um
pediatra por nove "eutanásias disfarçadas". E qualquer pessoa fica
preocupada com a notícia que chega da Holanda "da pílula sem dia
seguinte", como, no seu modo sempre arguto, atirou o eurodeputado Paulo
Rangel: "Todas as pessoas que fazem 70 anos receberão como prenda de
aniversário um comprimido com o qual podem suicidar-se. E depois quem é que
controla o destino destes comprimidos? Às tantas, vamos ter gente a matar outra
gente" (Público, 9 de Fevereiro). Porventura as pessoas com 70 anos valem
menos do que quem tem 50 ou 30? Confesso: isto, a ser verdade, significa o
colapso de uma sociedade.
Ainda no contexto da rampa deslizante, é
preciso não ser ingénuo. Numa sociedade economicista, de individualismo e
egoísmo atrozes, ergue-se o perigo gravíssimo de pessoas serem
"empurradas" a pedir a eutanásia e, pior, muitos interiorizarem
inclusivamente a obrigação de a pedir. Isso não obriga a pensar?
É uma vergonha para uma sociedade querer
debater e despenalizar a eutanásia quando ainda não tem uma rede de meios
paliativos minimamente suficientes. Os doentes, em casos extremos, precisamente
porque o Estado lhes não garante apoios suficientes para a sua existência
minimamente digna, são colocados perante o insuportável, de tal modo que se
ergue de modo dramático a pergunta: nessas circunstâncias, onde está a sua
liberdade para pedir a eutanásia?
Há uma razão que diria metafísica para a
oposição à pena de morte, a mesma para se opor à eutanásia. Penso, por exemplo,
em L. Wittgenstein, para quem o mundo é o conjunto dos factos, verificáveis.
Mas, para lá do verificável, há "o místico" (das Mystische), que
"se mostra", o metafísico, o absoluto. Não como o mundo é, mas que o
mundo seja é o místico, escreveu Wittgenstein. Deus também não é deste mundo,
nem a ética, que é da ordem do dever ser e não dos factos. O morrer é deste
mundo, mas a morte não é deste mundo. A morte, digo eu, é uma das faces do
absoluto, a outra é Deus, e, por isso, não é deste mundo. Ora, a pena de morte é
a condenação à morte eterna para este mundo, fechando a abertura à continuidade
do processo de possibilidades, incluindo a do arrependimento e emenda, de
retomar a existência na sua dignidade. Nenhuma instância terrena poderá, pois,
fazer o juízo final, definitivo, de uma pessoa. E é preciso contar sempre com o
perigo do erro no julgamento. Aí está porque não se pode ser a favor da pena de
morte nem a favor da eutanásia. Aliás, quando alguém pede a morte por
eutanásia, está a pedir o quê? Que grau de liberdade tem? E se entretanto se
arrepender e quiser recuar?... Ai, os mistérios da existência humana e da
liberdade! A dignidade da pessoa humana, inviolável, convive com a
vulnerabilidade e, por isso, do que precisamos é de uma ética da fragilidade e
do cuidado.
Mais. Se algum dia se avançasse por esta
via da legalização da eutanásia, o Estado ficaria com mais uma obrigação:
satisfazer o direito ao pedido da eutanásia e seria confrontado com esta
pergunta terrível: quem mata? Porque é disso que se trata, não se venha com o
eufemismo enganoso, porque manhoso e mentiroso, de "morte medicamente
assistida", pois assistência médica, psicológica, familiar, afectiva,
pastoral, religiosa (se for o caso) todos querem. No que o Estado deve pensar é
na urgência dos cuidados paliativos, que ainda não chegam à maioria dos
doentes; num relatório recente (cf. jornal i, 16 de Janeiro), lê-se que de 102
mil doentes que preencheriam os requisitos para beneficiar de cuidados
paliativos em 2018, apenas um quarto teve acesso a este tipo de resposta que
visa aliviar o sofrimento físico e psicológico em casos de doença incurável
avançada e progressiva. As lacunas são ainda maiores nas crianças: em oito mil
menores com doenças incuráveis, só 90 tiveram acesso a este tipo de cuidados,
0,01%. Concluiu-se que faltam 430 médicos, 2114 enfermeiros e 173 assistentes
sociais nesta área. Conclusão: perante a sobrecarga, o tempo dedicado aos
doentes é pouco: os médicos têm em média 44,5 minutos por semana com cada
doente (nove minutos por dia). O mesmo se diga dos enfermeiros e assistentes
sociais.
É uma vergonha para uma sociedade querer
debater e despenalizar a eutanásia quando ainda não tem uma rede de meios
paliativos minimamente suficientes. Os doentes, em casos extremos, precisamente
porque o Estado lhes não garante apoios suficientes para a sua existência
minimamente digna, são colocados perante o insuportável, de tal modo que se
ergue de modo dramático a pergunta: nessas circunstâncias, onde está a sua
liberdade para pedir a eutanásia? Afinal, pedem a morte ou apoio e alívio na
dor, para continuar a viver dignamente e morrer dignamente? Aí está a razão por
que, no contexto da precipitação para que a eutanásia volte ao Parlamento, logo
após a aprovação do OE para 2020, observam alguns e não necessariamente
cínicos: a eutanásia poderia ajudar bastante certos orçamentos de Estado, a
Segurança Social!...
Evidentemente, opor-se à eutanásia não é
ser a favor da distanásia e da obstinação terapêutica, que podem ser imorais.
Deve-se aliviar a dor, mesmo que isso apresse a morte. Uma coisa é matar e
outra deixar morrer em tempo oportuno e com dignidade, sem prolongar a vida
artificialmente e de forma desproporcionada.
Ainda no contexto da rampa deslizante, é
preciso não ser ingénuo. Numa sociedade economicista, de individualismo e
egoísmo atrozes, ergue-se o perigo gravíssimo de pessoas serem
"empurradas" a pedir a eutanásia e, pior, muitos interiorizarem
inclusivamente a obrigação de a pedir. Isso não obriga a pensar?
É uma vergonha para uma sociedade querer
debater e despenalizar a eutanásia quando ainda não tem uma rede de meios
paliativos minimamente suficientes. Os doentes, em casos extremos, precisamente
porque o Estado lhes não garante apoios suficientes para a sua existência
minimamente digna, são colocados perante o insuportável, de tal modo que se
ergue de modo dramático a pergunta: nessas circunstâncias, onde está a sua
liberdade para pedir a eutanásia?
Há uma razão que diria metafísica para a
oposição à pena de morte, a mesma para se opor à eutanásia. Penso, por exemplo,
em L. Wittgenstein, para quem o mundo é o conjunto dos factos, verificáveis.
Mas, para lá do verificável, há "o místico" (das Mystische), que
"se mostra", o metafísico, o absoluto. Não como o mundo é, mas que o
mundo seja é o místico, escreveu Wittgenstein. Deus também não é deste mundo,
nem a ética, que é da ordem do dever ser e não dos factos. O morrer é deste
mundo, mas a morte não é deste mundo. A morte, digo eu, é uma das faces do
absoluto, a outra é Deus, e, por isso, não é deste mundo. Ora, a pena de morte
é a condenação à morte eterna para este mundo, fechando a abertura à
continuidade do processo de possibilidades, incluindo a do arrependimento e
emenda, de retomar a existência na sua dignidade. Nenhuma instância terrena
poderá, pois, fazer o juízo final, definitivo, de uma pessoa. E é preciso
contar sempre com o perigo do erro no julgamento. Aí está porque não se pode
ser a favor da pena de morte nem a favor da eutanásia. Aliás, quando alguém pede
a morte por eutanásia, está a pedir o quê? Que grau de liberdade tem? E se
entretanto se arrepender e quiser recuar?... Ai, os mistérios da existência
humana e da liberdade! A dignidade da pessoa humana, inviolável, convive com a
vulnerabilidade e, por isso, do que precisamos é de uma ética da fragilidade e
do cuidado.
Mais. Se algum dia se avançasse por esta
via da legalização da eutanásia, o Estado ficaria com mais uma obrigação:
satisfazer o direito ao pedido da eutanásia e seria confrontado com esta
pergunta terrível: quem mata? Porque é disso que se trata, não se venha com o
eufemismo enganoso, porque manhoso e mentiroso, de "morte medicamente
assistida", pois assistência médica, psicológica, familiar, afectiva,
pastoral, religiosa (se for o caso) todos querem. No que o Estado deve pensar é
na urgência dos cuidados paliativos, que ainda não chegam à maioria dos
doentes; num relatório recente (cf. jornal i, 16 de Janeiro), lê-se que de 102
mil doentes que preencheriam os requisitos para beneficiar de cuidados
paliativos em 2018, apenas um quarto teve acesso a este tipo de resposta que
visa aliviar o sofrimento físico e psicológico em casos de doença incurável
avançada e progressiva. As lacunas são ainda maiores nas crianças: em oito mil
menores com doenças incuráveis, só 90 tiveram acesso a este tipo de cuidados,
0,01%. Concluiu-se que faltam 430 médicos, 2114 enfermeiros e 173 assistentes
sociais nesta área. Conclusão: perante a sobrecarga, o tempo dedicado aos
doentes é pouco: os médicos têm em média 4,5 minutos por semana com cada doente
(nove minutos por dia). O mesmo se diga dos enfermeiros e assistentes sociais.
É uma vergonha para uma sociedade querer
debater e despenalizar a eutanásia quando ainda não tem uma rede de meios
paliativos minimamente suficientes. Os doentes, em casos extremos, precisamente
porque o Estado lhes não garante apoios suficientes para a sua existência
minimamente digna, são colocados perante o insuportável, de tal modo que se
ergue de modo dramático a pergunta: nessas circunstâncias, onde está a sua
liberdade para pedir a eutanásia? Afinal, pedem a morte ou apoio e alívio na
dor, para continuar a viver dignamente e morrer dignamente? Aí está a razão por
que, no contexto da precipitação para que a eutanásia volte ao Parlamento, logo
após a aprovação do OE para 2020, observam alguns e não necessariamente
cínicos: a eutanásia poderia ajudar bastante certos orçamentos de Estado, a
Segurança Social!...
Evidentemente, opor-se à eutanásia não é
ser a favor da distanásia e da obstinação terapêutica, que podem ser imorais.
Deve-se aliviar a dor, mesmo que isso apresse a morte. Uma coisa é matar e
outra deixar morrer em tempo oportuno e com dignidade, sem prolongar a vida
artificialmente e de forma desproporcionada.
Aceitei figurar entre os 101 mandatários,
como o antigo Presidente da República Ramalho Eanes, ou o médico e antigo
bastonário Germano de Sousa, de uma petição a favor de um referendo sobre a
matéria
O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel
Guimarães, disse-o de modo perfeito. Cito uma entrevista sua a Marta Reis no
jornal Sol, 11 de Janeiro. Em primeiro lugar, esclarecer: "O que temos de
fazer, e esse é o aspecto mais importante, é dar o máximo de informação para o
debate. Não é infrequente estar em reuniões com deputados, pessoas que se vão
pronunciar, e confundem ainda eutanásia, a morte a pedido num caso de doença
grave, com distanásia, que é prolongar a vida de uma pessoa indevidamente,
prolongar a vida de alguém numa fase terminal em que o que se deve oferecer é o
máximo de conforto."
E a autonomia do doente? Continuou Miguel
Guimarães: "O doente tem autonomia para dizer que não quer fazer
tratamentos. Um doente com cancro pode recusar um tratamento. Mas no caso da
eutanásia, falamos de uma participação activa na morte, o código deontológico
proíbe." Mesmo a nível internacional, "encara-se sempre a eutanásia
como um acto médico. Não é. Não faz parte de nenhum compêndio que matar uma
pessoa seja um acto médico, é a antítese do acto médico. Quando se diz que dar
a uma pessoa um medicamento para matar tem de ser feito por um médico não
percebo a justificação".
Chamo a atenção para o facto de, por
exemplo, a França, que está a rever leis de bioética, ter excluído do debate a
eutanásia e, no limite, ser favorável à sedação profunda e continuada.
Já quase em post scriptum, quero dizer que
aceitei figurar entre os 101 mandatários, como o antigo Presidente da República
Ramalho Eanes, ou o médico e antigo bastonário Germano de Sousa, de uma petição
a favor de um referendo sobre a matéria. É que, no meio da confusão que
indiquei no início, e quando até deputados, como ficou dito, não sabem
distinguir entre eutanásia, distanásia, ortotanásia e suicídio medicamente
assistido..., impõe-se um debate amplo, nacional, para que todos os portugueses
sejam ouvidos e possam ficar minimamente esclarecidos sobre o que está em
causa.
Padre e professor de Filosofia. Escreve de
acordo com a antiga ortografia.
in DN, 16.02.2020
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/16-fev-2020/a-morte-medicamente-assistida-e-a-eutanasia-11823761.html
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
OS SELFISTAS
A PROPOSIÇÃO QUE MOVE A
SELFIE É AGORA ESTE VIDEOR ERGO SUM (SOU VISTO LOGO EXISTO), PROPAGADO POR TODA
A PARTE
A selfie tornou-se um sintoma do tempo em
que vivemos. Se pensarmos na fotografia tradicional era claro o seu papel em
relação à temporalidade da vida: a fotografia, fixando o tempo, como que o
prolongava, assumindo-se, no confronto com a nossa existência, como uma arte da
memória. Não é por acaso que imprimíamos as fotografias e as recolhíamos num
álbum, e deixámos de o fazer com o material fotográfico que simplesmente
acumulamos nos telemóveis. Quer dizer que a função da imagem mudou. A
fotografia tradicional pretendia ser ainda um registo ao serviço da
interpretação da vida. O seu processamento chamava-se justamente “revelação”,
pois era disso que se tratava, e não só a um nível imediato, mas numa profusão
de detalhes significativos que a simples visão normalmente não deteta. Na sua
“Pequena História da Fotografia”, Walter Benjamin afirma, por exemplo, que na
fotografia fazemos a experiência do “inconsciente ótico”, do mesmo modo que as
psicoterapias nos permitem aceder ao “inconsciente pulsional”. A fotografia
testemunhava assim, de um modo amplo e singular, o domínio visível do sujeito,
mas também nos avizinhava do seu campo invisível.
A selfie, pelo contrário, transaciona sobre
o imediato, como se o sujeito histórico se tivesse tornado evanescente e a sua
duração (histórica, psicológica...) se dissolvesse para permitir que a aparição
instantânea se torne um fim. A proposição que move a selfie é agora este videor
ergo sum (sou visto logo existo), propagado por toda a parte. Mas fazer
depender a existência deste tipo de visibilidade dá razão àquilo que o
psiquiatra italiano Giovanni Stanghellini escreve num ensaio recente (“Selfie.
Sentirsi nello sguardo dell’altro”, Feltrinelli, 2020): “a instantaneidade da
selfie é semelhante à temporalidade esfomeada e sem fôlego de um ataque
bulímico”. De facto, para compreendermos a contemporânea bulimia que nos torna
a todos produtores ininterruptos de imagens temos de procurar a razão de fundo
que permanece escondida, e que é uma dramática anorexia em relação ao ser.
A fotografia testemunhava
assim, de um modo amplo e singular, o domínio visível do sujeito, mas também
nos avizinhava do seu campo invisível
É verdade que enquanto a fotografia
tradicional nos permitia dizer “eu sou esta pessoa”, a selfie nos parece fazer
dizer “eu estou aqui”. Mas este “aqui” é um espaço atópico, errante, que nunca
chega a ser habitado. Por isso se caracteriza justamente o selfista como um
turista e não já como um viajante. Enganamo-nos, portanto, se pensamos que a
selfie serve para assinalar a nossa passagem por um determinado lugar: ela é
sim o resultado de uma radical desterritorialização da vida, capturada pela
ânsia da comunicação virtual, mais do que pelo desejo de documentar o real.
O que procuramos então nas selfies?
Stanghellini explica que buscamos uma “prótese” existencial, uma “técnica de
si” ativada para dar uma resposta ficcional à necessidade de fundar a própria
identidade. Perante a exigência de nos definirmos a nós próprios, em tempos de
“aporia identitária”, a selfie é “o dispositivo que responde (que tenta
responder) à pergunta ‘quem sou?’”. Mas este psiquiatra que dirige uma escola
de psicoterapia em Florença é dirimente: “O mito da instantaneidade como
satisfação alucinatória da necessidade de vizinhança ou de ultrapassagem da
distância transforma a experiência do sujeito apenas numa sequência sincopada
de acontecimentos isolados e encerrados neles mesmos. E quando pedimos aos
outros para assistir — se bem que ao longe — a estes acontecimentos, é porque
só nos sentimos presentes quando fazemos de nós próprios um espetáculo.” Não
admira que a era da selfie seja também a do crepúsculo do rosto.
in Semanário Expresso, 16.02.2020
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À PROCURA
DA PALAVRA
P.
Vitor Gonçalves
DOMINGO
V COMUM Ano A
“Eu,
porém, digo-vos:
Todo
aquele que se irar contra o seu irmão
será
submetido a julgamento?”
Mt
5, 22
Já o filme “Corpus Christi”, do realizador
polaco Jan Komasa, caminha para o seu epílogo quando o jovem saído do
reformatório que assumiu o papel de padre daquela aldeia, trespassada por uma
tragédia, inicia a missa com estas palavras: “Eu sou um assassino. Eu matei.
Matei nos meus pensamentos. Matei no que fiz. Matei no que não fiz. Sabem no
que somos bons? Em desistir das pessoas. Em apontar o dedo para elas. Perdoar
não significa esquecer. Não significa fingir que não aconteceu. Perdoar
significa amar. Amar alguém apesar da sua culpa. Não importa que culpa.”
No alto da montanha, Jesus apresenta seis
antíteses como um salto em frente e para o alto da lei que Israel guardava como
tesouro. Uma lei que era colocada diante do homem, para que ele a pudesse
escolher, como bem diz o livro de Ben-Sirá: “Se quiseres, guardarás os
mandamentos: ser fiel depende da tua vontade.” Tem na sua base o que S.
Agostinho descreverá como “livre arbítrio”, a possibilidade que existe em todo
o homem normal de dizer sim ou não. Mas também S. Agostinho fala de uma
liberdade maior (libertas) que conduz o homem a realizar-se na harmonia, na
gratuidade, numa altura que toca o infinito. Assim, a lei de Israel, e de modo
peculiar os mandamentos, são apresentados por Jesus como preparação para a
medida maior e a transbordar da vida de Deus em nós. “Ouvistes o que foi dito…Eu,
porém, digo-vos”!
Jesus inicia este contraponto com o quinto
mandamento: “Não matarás!” Não se trata apenas da agressão física ou da
eliminação de alguém. O homicídio parte sempre do coração: as palavras, os
olhares, a excomunhão, a impossibilidade de reconciliação, que geram distância
e indiferença são “pequenas-grandes mortes”. É preciso desarmar os corações.
Recusar a facilidade de destruir quem fez o mal. No fundo, como insiste Jesus,
o outro é um irmão: por quatro vezes assim é referido. Então, a possibilidade
de reconciliação é o único caminho que liberta da prisão da morte. Porque quem
está morto não é aquele que fez o mal mas aquele que recusa a reconciliação.
Ela é mais importante até do que o acto religioso de fazer uma oferta a Deus:
pode o Pai acolher com alegria a oferta de um filho que odeia o irmão?
Não basta “não matar”; é preciso “dar
vida”. Promovendo o encontro com a verdade, denunciando as prisões do egoísmo e
do facilitismo, cultivando a proximidade e a atenção mútua, partilhando os bens
e os dons mútuos, recusando desistir dos outros. Assim o fez o “falso padre”
naquela comunidade ferida. Assim o fazemos quando não defendemos apenas ideias
mas nos gastamos, e gastamos tudo, para o maior bem de todos. O salto para o
alto que o Evangelho propõe é difícil. Mas é aquele que levanta a nossa vida!
in Voz da Verdade, 16.02.2020
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14 FEBRUARY 2020, THE TABLET
Archbishop says married priests still up for debate
by Sarah Mac Donald
Querida Amazonia is a cry from the heart to protect the environment of
the Amazon region.
The head of the Catholic Church in
Ireland, Archbishop Eamon Martin, has said he is “very much open” to the
ordination of married men as priests and that Pope Francis didn’t “shut the
idea down” but left it open for further discussion within the Church.
In an interview with RTE Radio’s Morning
Ireland programme about the 94-page exhortation, Querida Amazonia, the
Archbishop of Armagh said: “I think this question is very much still open.”
He added: “I am very much open to the
idea of this and I think Pope Francis is too” but the Pontiff “chose not to
mention” the priestly ordination of married men in the letter as he realised
that it is a question where there is a lot of “divided thinking”.
“It’s been said he refused this or
refused that; he’s actually left the question. I think that he’s done that in
order to encourage all of us to focus on much bigger questions about Church
ministry, organisation, the involvement of lay people in the Church, the
involvement of women in the Church, and he calls on the local Church there to
actually officially recognise these roles in a way which it hasn’t done until
now.
“I understand that there has been
disappointment, and a lot of people feeling that perhaps this was a moment at
which Pope Francis was going to express his views on the ordination of married
men as priests. But I think Pope Francis would be disappointed if this is the
issue that we are all talking about today,” Archbishop Eamon Martin said.
The Archbishop, who has recently
returned from visiting two of the countries of the Amazon region, Peru and
Ecuador, stressed that the exhortation is a huge cry from the heart to try to
protect that region which is being “cruelly destroyed by the exploitation of
its resources, by the destruction of its natural beauty and its life”.
The Pope, he said, was underlining that
the whole world has a responsibility to try to preserve the equilibrium of the
planet which so much depends on the health of the Amazon and the eco systems
there.
Asked about the vocations crisis in
Ireland, Dr Martin indicated that the situation was considerably different to
where the Amazon is at. He also suggested that more Irish priests should go to
the Amazon as missionaries.
“I know that we think we are very short
of priests but I think a church which loses it missionary spirit and its
missionary zeal is a church which is dying. And I think that is what Pope
Francis is saying to us. Stay missionary, get out there, go and help these
people.”
However, Fr Paddy Byrne, a popular
parish priest in the Diocese of Kildare and Leighlin told the same RTE
programme that he was “taken aback” and “disappointed” by Pope Francis’ refusal
to approve the ordination of married men to address a priest shortage in the
Amazon.
Fr Byrne said about 85 per cent of
priests in Ireland shared his sense of disappointment. “We are not far away
from the reality of what is being felt by the people of the Amazon region,” he
warned and highlighted that there are "probably more bishops in Ireland at
the moment" than there are young men in formation for priesthood.
“So if we don’t change we are facing the
exact same (as the Amazon),” he told RTE.
Separately, a priest who is married but
hasn’t been laicised told The Tablet that his immediate reaction to the
Apostolic Letter was “one of disappointment” but “that just forced me to read
Querida Amazonia”.
Sixty-two-year-old Liamy McNally was
ordained for the archdiocese of Tuam in 1985, but two years later fell in love
and left public ministry. He has never left the priesthood. He lives three
miles from the Co Mayo town of Westport which has a population of about 5,500.
In this small area, he knows six married priests, only one of whom is in
ministry. A former Columban missionary, the priest married a nun and they both
became Anglicans, serving in the local Church of Ireland.
“I found Querida Amazonia poetic,
encouraging and deeply challenging,” McNally said and added the Pope had stated
at the outset that he was not going to deal with all the issues raised at the
Synod.
“I guess if he dealt directly with the
question of married clergy then that would have be the ‘story'. The major
issues facing the Amazon would have become footnotes. He obviously didn’t want
that so he is leading us deeper into the challenges of the Amazon region.”
Describing the document as “wildly rich
and in many ways, revolutionary, even without reference to married clergy”,
Liamy McNally noted Para 105 which states, “…In its earliest days, the
Christian faith spread remarkably in accordance with this way of thinking,
which enabled it, from its Jewish roots, to take shape in the Greco-Roman
cultures, and in time to acquire distinctive forms. Similarly, in this
historical moment, the Amazon region challenges us to transcend limited
perspectives and ‘pragmatic’ solutions mired in partial approaches, in order to
seek paths of inculturation that are broader and bolder.”
According to Liamy McNally: “Some people
believe that when Pope Francis appears to be closing one door he is preparing
to push open a bigger door. It will take time to digest what has been written
and then we’ll see what happens.”
Asked about Archbishop Eamon Martin’s
comment about being “open” to the question of married priests, McNally
responded: “So are most people. Any survey will show that. The issue is when
will the Irish Bishops Conference start discussing it? We need to move from
being ‘open’ to deeper, public discussion and examination of what the
possibilities are.”
Elsewhere, Colm Holmes, Chair of We Are
Church International, also praised the Pope for his “wonderful dreams for
social, cultural and ecological issues in the Amazon.”
Dublin-based Holmes said: “We agree with
the Pope that our church has significant responsibility for promoting immediate
and significant changes in how the earth’s resources and the lives and cultures
of indigenous people are protected. We urge all people to live in ways that
reflect good stewardship of our planet, and the fact we are all one human
family.”
However, he went on to say: “It is
tremendously disappointing that Pope Francis could not bring the same vision to
how our church serves the people of the Amazon region, and indeed all people.
Despite the explicit request of the bishops and people from the area, the Pope
failed to open priesthood to married men or to consider ordaining women to the
diaconate.
“He proposes vague ‘new forms of
service’ for women, but reaffirms the ban on women from ordination, thereby
ensuring additional responsibility without accompanying authority.”
He said the Pope’s dreams for changing
church structures in the Amazon are “discouragingly lacking in specifics. After
seven years in office, it seems he talks the talk but does not walk the walk
when it comes to enabling the church to fully address the real needs of its
members.”
in The
Tablet, 14.02.2020
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