P/ INFO: Crónicas & Capela do Rato
Frei Bento: A Bíblia, Trump e a violência
Pe. Anselmo: Desconfinados e desmascarados 2
Pe. Tolentino: A amizade é uma pátria
Pe. Vítor Gonçalves: Chamados
A BÍBLIA,
TRUMP E A VIOLÊNCIA
Frei Bento Domingues,
O.P.
Não será o próprio Antigo Testamento que documenta as mais
extremas e cruéis práticas de ódio e violência, não apenas em nome de Deus, mas
até por ordem de Deus?
1. Donald Trump, não era
obrigado, mas seguiu o costume de fazer o juramento de posse de Presidente dos
EUA sobre a Bíblia. Agora, acossado pelas manifestações contra a morte do
afro-americano, George Floyd, exibiu-a como autentificação divina da sua
política.
As Sociedades Bíblicas Unidas e os diferentes movimentos
bíblicos católicos não podem protestar contra o uso da obra mais traduzida e editada
no mundo. A Bíblia não é sempre inocente em relação à guerra, ao terror, à
violência.
É verdade que o movimento fundamentalista norte-americano
confessa que a Bíblia é inspirada pelo Espírito Santo, razão da inerrância das suas
escrituras. Servir-se dessa equívoca evocação, para cobertura da política nacional
e internacional de Donald Trump que destila ódio e violência, obriga a
questionar esse ambíguo biblismo.
É frequente a pergunta: não será o próprio Antigo Testamento
(AT), acolhido nas edições cristãs da Bíblia, que documenta as mais extremas e
cruéis práticas de ódio e violência, não apenas em nome de Deus, mas até por
ordem de Deus?
Não é legítimo responder com o recurso ao contexto histórico
para desculpar actuações que foram, são e serão sempre criminosas.
Comecemos pelo mais
elementar: de onde vem a palavra Bíblia?
Existia uma cidade fenícia, muito antiga, Biblos, cujas ruínas são visíveis, hoje, no Líbano. É sabido que os
fenícios inventaram um dos primeiros alfabetos com 22 signos. Desde o Século XI
a.C., Biblos era um importante lugar
de produção do papiro e tinha uma reputada escola de escribas. Não admira que
os seus escritos tenham usado o nome da cidade. A língua grega herdou a palavra
biblion para designar um escrito, um
livro. Em grego, o plural – livros – diz-se: ta biblia. Este plural usava-se, também, para designar uma
biblioteca. Alguns séculos, antes da nossa era, os judeus de cultura grega
usaram esta expressão, ta biblia,
para designar a colecção dos seus livros sagrados.
Os cristãos adoptaram o mesmo termo para estes livros que, para
eles, formam o AT. Só na Idade Média é que este plural grego foi transcrito em latim,
tal e qual, biblia, mas tornou-se um
feminino singular. O seu emprego designará, doravante, para os cristãos, o
conjunto dos livros do Antigo e do Novo Testamentos. Este feminino singular
resultou na palavra portuguesa Bíblia.
O aspecto “plural” desapareceu aparentemente na passagem do
grego para o latim, mas não alterou a realidade. A Bíblia não é um livro, mas a
“biblioteca” de um povo, formada por uma vasta colecção de livros de épocas muito
diferentes e de diversos géneros literários.
Ao apresentar-se encadernada como um só livro, aparenta uma
imaginária unidade e autonomia no seio da literatura mundial. Por isso mesmo, é
importantíssimo insistir: mesmo
encadernada num só volume, não é um livro, mas uma biblioteca de muitos
estilos, de muitas épocas, escrita ao longo de vários séculos. Ao ser
considerada, de modo incorrecto, como um ditado divino tudo se torna mais
enigmático para quem não renuncia a pensar, a interrogar e a interpretar aquele
vasto mundo[1].
2. Na sua Autobiografia publicada em 1887, Charles Darwin conta como nasceram
as suas dúvidas sobre a religião e como chegou a perder a fé: «Dei-me conta de
que no Antigo Testamento aparece um Deus terrível, com sentimentos de um tirano
vingativo; vi que a Bíblia não era mais fiável do que os livros sagrados dos
hindus, ou as crenças de qualquer bárbaro».
Darwin não foi o único a perder a fé com a leitura da Bíblia.
Inúmeros cientistas, filósofos, pensadores, catequistas e até simples cristãos
sentiram-se escandalizados perante este livro, onde se vê Deus a vingar-se,
destruindo e assassinando quem Lhe desobedece.
Não faltou quem se desse ao trabalho de contar quantas
pessoas, na Bíblia, aparecem como eliminadas por Deus. E o número é arrepiante:
2.038.334 pessoas! Sem incluir os mortos nos grandes extermínios como o dilúvio
universal, a destruição de Sodoma ou a matança dos primogénitos do Egipto,
cujas cifras não aparecem.
Parece que, nesse tempo, o Deus da Bíblia gostava de matar os
seus opositores sem o menor escrúpulo, o que levou o inglês Derek Clayton a
exclamar: «Se mais cristãos lessem a Bíblia, haveria menos cristãos»[2].
Dissemos que o AT é a biblioteca de um povo em todos os seus
aspectos e dimensões. A sua identidade mais saliente é a de ser um povo liberto
por Deus da escravidão no Egipto e por Ele conduzido para a terra prometida. Resultou
numa aliança. Deus é o aliado deste povo que escolheu e com o qual se
comprometeu, mas que lhe exige fidelidade a esta aliança. É uma teocracia
política. Será interpretada como devendo coincidir os interesses de Deus com os
deste povo. As ambições territoriais deste povo têm de ser defendidas por Deus,
mesmo que isso implique a destruição dos outros povos.
3. A biblioteca do AT não é uma
biblioteca de violência e de terror. Encerra as obras mais fascinantes da
literatura. Surge uma dificuldade. É tudo considerado palavra de Deus. Muitas
passagens parecem obra do diabo. Como fazer a destrinça?
Frei Francolino Gonçalves, investigador e professor da Escola
Bíblica de Jerusalém, desenvolveu uma investigação considerada por grandes
especialistas como muito inovadora, publicada nos Cadernos ISTA[3].
Desse longo e complexo texto, deixo, aqui, apenas uma pequena
referência que não deturpa o essencial:
«O AT contém assim duas representações diferentes de Iavé.
Segundo uma, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a
outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e
salva.
Os exegetas não
prestaram a estas vozes discordantes a atenção que mereciam. A esmagadora maioria
parece nem as ter ouvido. Por isso, ficaram sem eco, não tendo chegado ao
conhecimento dos teólogos, dos pastores, nem, por maioria de razão, do público
cristão. As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente, o
resultado dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto
dos fenómenos religiosos do AT que é nova. A meu ver, o AT documenta a
existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da
criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando,
poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo.
Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas
constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT»[4].
Jesus repudiou a violência do AT: Ouvistes o que foi dito: Amarás
o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém,
digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem[5].
Preferiu ser morto a matar. Voltarei a este assunto.
in Público 14.06.2020
https://www.publico.pt/2020/06/14/opiniao/opiniao/biblia-trump-violencia-1920314
[1] Ver: Julio Trebolle Barrerra, Bíblia Judaica e Bíblia Cristã: Introdução à História da Bíblia, Vozes,
2000; Miguel Perez Fernández, Julio Trebolle Barrerra, José Manuel Sanchez
Caro, História de la Bíblia, Trotta,
2006.
[2] Cf. Ariel Álvarez Valdés, A Bíblia incita à violência e à vingança, in Bíblica nº 388
(Maio-Junho 2020), p.99
[3] Francolino J. Gonçalves, Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, Deus de amor e de Salvação, ISTA
nº 22, ano XIV (2009), 107-152
[4] Op. Cit.,
p. 115. Os itálicos são da minha responsabilidade.
[5] Mt 5, 43-44
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Desconfinados e desmascarados
2
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Na crónica anterior, tentei reflectir sobre o
desconfinamento. A crónica de hoje, que não põe de modo nenhum em causa a
importância do uso da máscara no contexto da pandemia, tenta ser uma breve
reflexão sobre outras máscaras e a necessidade do desmascaramento, outro
desmascaramento. Não se dedica a um estudo aprofundado sobre a história e a
riqueza cultural da máscara, desde as máscaras das divindades e dos guerreiros,
passando pelo teatro, até aos bailes de máscaras e aos carnavais. Aqui, é
aquela máscara que colocamos, umas vezes inconscientemente outras
conscientemente, para parecermos o que realmente não somos, enganarmos os
outros e enganarmo-nos a nós próprios. Temos medo e vergonha de nós, do que
verdadeiramente somos? O desmascaramento é particularmente urgente numa
sociedade como a nossa: sociedade do parecer, da pós-verdade, do espectáculo e,
por isso, da mentira e da ilusão.
Quem esperava esta pandemia? Um vírus invisível
chegou e invadiu o planeta e atingiu a Humanidade inteira. E foi preciso fazer
uma pausa, e tudo o que parecia inadiável ficou parado, para depois, para
quando for possível. Afinal, quais são as prioridades? Foi e é preciso colocar
uma máscara, porque a covid-19 nos desmascarou quanto à nossa pretensa
omnipotência. Afinal, não somos omnipotentes nem imortais. Fomos desmascarados.
Como disse o filósofo Nicolas Grimaldi, “trata-se de um acontecimento natural
como pode sê-lo um tremor de terra. Isso teria interessado a Pascal: como é que
um infinitamente pequeno como um vírus pode produzir efeitos tão imensos? A
Humanidade toma consciência da sua universalidade ao tomar consciência da sua
mortalidade, da sua precariedade, em toda a parte no mundo, no mesmo momento.
De repente, é-nos lembrado: é igual em toda a parte, porque vamos morrer.” E
fomos obrigados, inevitavelmente, a pensar. Porque é a morte, o impensável, que
obriga a pensar no essencial: o que é morrer?, o que é estar morto?, para onde
vão os mortos?, “onde estarei quando deixar de existir?” (Tolstoi), “que morto
serei para os que me sobreviverem?” (Paul Ricoeur), o que é existir
autenticamente, porque é que há algo e não nada?, para quê tudo?, qual é o
sentido último da minha vida?, o que sou?, quem sou?, o que é que quero
verdadeiramente ser?, o que é que autenticamente vale?
E agora? Vai ser diferente para o futuro? Mudámos de
forma duradoura? Contra tantos que dizem que sim, eu, mesmo fazendo figura de
pessimista, temo que esteja na cabeça da grande maioria, e no mais profundo, o
desejo de voltar ao antes, à vida como era. Como escreveu o filósofo Abdennour
Bidar, que já várias vezes aqui citei, “passar-se-á da anormalidade
extraordinária do confinamento imóvel à anormalidade ordinária do corre-corre
febril. Dois confinamentos, um em casa, o outro ‘fora de si’, numa existência
dispersa que nada tem a ver com o essencial.”
Desejo de voltar às máscaras da aparência, do ter, do poder, da
corrupção, da sociedade da produção-consumo, que assenta a sua lógica no tabu
da morte. Disso pura e simplesmente não se fala, há pudor em falar dela.
A morte desmascara e obriga a tirar as máscaras do
parecer, da hipocrisia, da mentira, do medo de dizer a verdade, da cobardia, da
competição feroz, das vaidades do ter e do poder pelo poder... Face à morte,
como tudo o que não é essencial se torna pequeno! Martin Heidegger foi o
filósofo do século XX que levou mais fundo o pensamento sobre a morte. O Homem
é o ser da possibilidade, o existente para quem no seu ser a questão é esse
mesmo ser, isto é, a quem o seu ser é dado como tarefa, como poder ser. Ora, a
morte é a sua possibilidade “mais própria”, pois é a que mais o caracteriza,
“irreferível”, pois corta a relação com tudo o resto, remetendo-o para si
próprio, “intranscendível”, pois, enquanto possibilidade da impossibilidade, é
a possibilidade extrema, a que se não pode escapar. A tentação permanente é
distrair-se e não assumir a morte como essa possibilidade mais própria,
irreferível, intranscendível, escapando-lhe pelo palavreado tagarela, pelo
fazer como toda a gente faz, pelo recurso ao “toda a gente morre”, mas não
propriamente eu. O Homem cai então no esquecimento de si mesmo e perde-se numa
existência inautêntica.
Nas nossas sociedades tecnocientíficas e citadinas, a
morte tornou-se tabu, o último tabu. Mas, ao perder o sentido da morte,
perde-se o sentido da vida e o sentido da filosofia e da religião — sem a morte
e a consciência dela, haveria religião e filosofia? E perde-se também o sentido
ético: de facto, sem a consciência do limite no tempo, não se ergueria a
questão ética na sua urgência da liberdade na definitividade. É o pensamento
sadio da morte que obriga a distinguir entre o bem e o mal, entre o justo e o
injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale, entre a superficialidade
e o definitivo. E que dá o horizonte da fraternidade, como viu também o
filósofo Herbert Marcuse, autor da obra célebre e marcante dos anos 1960, O
Homem unidimensional, denunciando a redução do Humanum a uma só dimensão: a de
consumidor entregue à cultura consumista, ao prazer e ao divertimento segundo
padrões estandardizados. À beira de morrer, disse Marcuse ao amigo Jürgen
Habermas: “Sabes, Jürgen? Agora, sei onde se fundamentam os nossos valores e
juízos morais: na compaixão.”
Lídia Jorge, a grande escritora, marcada pela morte
recente da mãe, de quem não se pôde despedir, tem razão: “Não somos nada
enquanto não estivermos preparados para morrer.”
Este pensamento nada tem a ver com menosprezo pela
vida e pela alegria de viver. Pelo contrário, ele remete-nos para a vida na sua
exaltação exultante. Viver quando? Precisamente agora, intensamente. Que cada
instante seja um hino à vida no seu esplendor, no milagre de ser e viver!... Na
liberdade toda, na serenidade combativa, sem máscaras para nós nem diante de
ninguém.
Poderá então erguer-se um outro pensamento, que vem
de outro filósofo maior do século XX, Paul Ricoeur, que morreu há 15 anos,
precisamente no dia 20 de Maio de 2005, com 92 anos. Poucas semanas antes de
morrer, diz-nos Catherine Portevin, escreveu a uma amiga: “Do fundo da vida,
surge um poder, um poder que diz que o ser é ser contra a morte. Acredite nisso
comigo.”
in DN 14.06.2020
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/14-jun-2020/desconfinados-e-desmascarados-2-12308043.html
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QUE COISA
SÃO AS NUVENS
JOSÉ
TOLENTINO MENDONÇA
A
AMIZADE É UMA PÁTRIA
A BELEZA DAS CARTAS TROCADAS POR JOSEPH ROTH E STEFAN ZEWIG NUMA
EUROPA EM CREPÚSCULO
Foi isso, ou melhor,
foi mais do que isso que o escritor Joseph Roth escreveu numa carta ao seu
amigo Stefan Zweig, datada do verão de 1935. Ele escreveu: “Por fim, a amizade
é a verdadeira pátria.” Na verdade, dois anos antes, nos meses fatídicos em que
Hitler se tornara chanceler do Reich, Roth começara a perder as suas pátrias, e
percebemos melhor aquele “por fim” a encabeçar a sua afirmação. Com o
estabelecimento do nazismo, Joseph Roth perdia para sempre a Alemanha, mas
estava consciente de que esse seria apenas o início do irreversível processo
que conduziria a tantas outras perdas: “Avizinhamo-nos a grandes catástrofes. Para
lá daquelas privadas — a nossa existência literária e material está liquidada —
tudo conduz a uma nova guerra... Conseguiu-se que a barbárie governe. Não se
iluda. O inferno comanda.” Porém, em 1935, ainda restava a Roth uma pátria
imaginária: o regresso da Casa de Habsburgo, a nostalgia por uma Áustria
imperial que servisse de tampão ao avanço daquela loucura extrema. Mas, em
relação a essa pátria idealizada, não havia propriamente certezas. Ele próprio
balançava entre a militância e o luto, como confessa no prefácio a um dos seus
grandes romances, “A Marcha de Radetzky”: “Uma cruel vontade da história
estilhaçou a minha velha pátria, a monarquia austro-húngara. Amei-a, a esta
pátria, que me permitiu ser contemporaneamente um patriota e um cidadão do mundo,
um austríaco e um alemão... Amei as suas virtudes e qualidades e agora que está
morta e perdida, amo também os seus erros e fraquezas. E tinha muitos.
Expiou-os a todos com a sua morte.” Restava, portanto, a Joseph Roth o que ele,
naquele verão, refugiado no Hotel Foyot, em Paris, declarou a Stefan Zweig:
“Por fim, a amizade é a verdadeira pátria.”
A
amizade é uma das parábolas humanas mais poderosas e inesquecíveis a que
podemos aceder
A
amizade epistolar daqueles dois foi uma pátria sincera, afetuosa e triste, numa
Europa em crepúsculo. As quase 270 cartas que trocaram numa única década, entre
1927 e 1938, mostram-no bem. E explicam igualmente porque é a amizade uma das
parábolas humanas mais poderosas e inesquecíveis a que podemos aceder. Zweig e
Roth testemunham “o penetrante e emocionante aroma hebraico que tinha a
Europa”, mas cada um a seu modo. Zweig desejou ser um Erasmo de Roterdão no
século XX, encarnando a inviolabilidade da liberdade individual, insistindo num
humanismo pacifista contra toda a evidência. Em setembro de 1937, escreve ao
seu amigo: “Não, Roth, não nos devemos endurecer com a dureza dos tempos, temos
de ser positivos, ser mais fortes.” E quando esta possibilidade lhe foi tirada,
compreendeu que a única via para si era a fuga. Roth era, por seu lado,
visceral, autodestrutivo, lúcido, fulgurantíssimo e profético. Essa pequena
obra-prima que é “A Lenda do Santo Bebedor” não é apenas o seu testamento, mas
também o seu autorretrato irónico e pungente, entre imigrantes desprotegidos e peregrinos
sem destino, num amargo mundo em despedida. As cartas trocadas nos últimos anos
acentuam os contrastes entre ambos. Zweig escreve: “Caro Roth, porquê, porque
está sempre assim ofendido?” Roth responde: “Caro amigo, talvez falemos duas
línguas diferentes...” Zweig acrescenta: “Você tem a sensação de que eu não o
compreenda...” Roth atira: “Porque tem você tanto medo das palavras
indignadas?” Até nestes duelos secos, nestas marcações intransigentemente
solitárias, mas feitas ainda para o outro ver, as suas são cartas de amizade
autêntica. Zweig afiança: “Não conseguirá jamais me fazer desistir de amar
Joseph Roth.” E Roth assegura: “Se tivesse um irmão, não o esperaria com maior
ânsia do que aquela com que espero por si.”
in Semanário Expresso
13.06.2020 p162
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2485/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/a-amizade-e-uma-patria
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À PROCURA
DA PALAVRA
Pe. Vitor
Gonçalves
DOMINGO XI
COMUM
“Depois
chamou a Si os seus doze discípulos
e deu-lhes
poder de expulsar os espíritos impuros
e de curar
todas as doenças e enfermidades.”
Mt 10, 1
Chamados
Há no acto de chamar alguém um
certo sabor a criação. Como se do nada e do silêncio aquela voz fizesse
surgisse algo novo. Não se trata apenas de dizer um nome mas de convocar uma
pessoa. Não guardamos a memória dos primeiros tempos em que, por boas e menos
boas razões, éramos convocados pela voz da mãe, do pai e de muitos outros? E
por tantos outros momentos em que o nosso nome foi dito com o sabor de um
sorteio da lotaria ou a ternura de uma vida que nos deseja?
Percorremos os textos da Bíblia e
maravilhamo-nos com o Deus que chama. É criador chamando à vida e tudo faz com
a sua palavra; convoca-nos para o diálogo e procura-nos quando fazemos o mal e
nos escondemos; é íntimo de homens e mulheres que responsabiliza por todos;
chama-nos porque nada quer fazer na criação sem nós. A sua omnipotência não é,
sobretudo, a da força e do domínio, é a de amar, e todo o amor convoca à
participação, ao gosto de “fazer juntos” à alegria de dizermos “nós” e não só
“eu”. Imagino as vezes que Maria e José chamaram: “Jesus”, e Ele a acorrer aos
seus apelos. Encantam-me aqueles que, assim nos contam os evangelhos, O
chamaram, do cego de Jericó ao “bom” ladrão da cruz. Mas revejo-me ainda mais
naqueles que Jesus chamou pelo nome e a alguns até o mudou: Pedro, Zaqueu,
Marta e Maria, Lázaro. Todo o nome na boca de Jesus tem a força de uma
recriação.
Não é por acaso, que no diálogo com
os pais que pedem o baptismo para um filho seu, começa-se por perguntar o seu
nome. O nome é uma identidade, um imenso universo de qualidades únicas e
possibilidades extraordinárias. É uma porta, para algo maior do que a simples
junção de letras e sons. Deus, que nos conhece para lá de qualquer nome, está sempre
a chamar-nos. Não no sentido pobre com que se diz na liturgia das exéquias:
“Deus chamou a Si o nosso irmão…, a nossa irmã…”. Pois, quantas vezes fica a
impressão que alguém expressava assim: “Chamou, mas não devia ter ainda
chamado, porque nos faz muita falta!” O que nos falta é entender cada dia como
chamamento à vida mais plena que só em Deus encontra foz.
Que maravilha seria perceber o
chamamento de Deus como a resposta àquele que Lhe fazemos, com tantos outros
nomes. A sede da Boa notícia, da libertação do mal, da cura e da felicidade ao
alcance do coração. Não resisto ao poema
de Sophia: “Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio / E suportar é o tempo
mais comprido. // Peço-Te que venhas e me dês a liberdade, / Que um só dos teus
olhares me purifique e acabe. // Há muitas coisas que eu quero ver. // Peço-Te
que sejas o presente. / Peço-Te que inundes tudo. / E que o teu reino antes do
tempo venha. / E se derrame sobre a Terra / Em primavera feroz precipitado.” É
possível acreditar que o chamamento de Jesus, a investidura de apóstolos para
todos os que O conhecem, a missão de graça a toda a parte, é também resposta ao
apelo a Deus que a sede humana não pode calar?
in Voz da Verdade,
14.06.2020
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