P / INFO: Crónicas, Tornar o catolicismo português mais
franciscano, a tarefa do bispo Ornelas na CEP & Em memória dos defuntos
falecidos em tempo de pandemia, na Capela do Rato
Frei Bento: Continuidade e ruptura
Pe. Anselmo: A pandemia. Onde está Deus?
Cardeal Tolentino: O santo António de Augustina
Pe. Vítor: Ultrapassar o medo
CONTINUIDADE
E RUPTURA
Frei Bento Domingues, O.P.
O recurso à diferença
histórica não pode significar o culto da indiferença perante a violência, seja
de que época for.
1. Os incitamentos à violência
em nome de Deus, no chamado Antigo Testamento (AT), espantam-nos por boas e
ambíguas razões. Por boas razões, porque a voz que pode ser escutada, em todos
os tempos e lugares, no íntimo da consciência humana, consciência ética, não
desresponsabiliza ninguém. O bem é para fazer e o mal para evitar, como o
próprio S. Paulo lembrou[1].
Por outro lado, o poema que abre a actual organização da biblioteca do povo de
Israel é um hino à bondade e à beleza do universo coroado pela harmonia do ser
humano, masculino e feminino. É o fruto da bênção criadora de Deus extasiado
com o seu próprio poema cósmico[2].
Nesta
perspectiva, dizer Deus é evocar a infinita generosidade de fazer ser e de nos
fazer uns para os outros, segundo o carisma de cada um, incompatível com a
força demoníaca da destruição. O recurso à diferença histórica não pode
significar o culto da indiferença perante a violência seja de que época for.
Mas a violência actuante no AT pode espantar-nos
por ambíguas razões. A mais ambígua de todas é a proclamação comunitária de
salmos que invocam Deus para massacres diabólicos. É também ambígua, porque uma
desejável selecção dos salmos ou de parte de alguns salmos, para a oração
comunitária – o que me parece desejável –, poderia sugerir o projecto de uma
Bíblia expurgada, mutilada. Seria uma violência contra a história e um atentado
contra a biblioteca de um povo.
Por outro, a presença da violência no AT é
inquietante porque não gostamos de nos ver ao espelho: a violência percorre a
história dos povos. As matanças e as escravaturas, devido à vontade de
dominação económica e política, podem fazer-se em nome de Deus, da negação de
Deus, do ateísmo ou da indiferença em relação ao valor da vida humana que não
tem preço. A tentação da inveja, do desprezo e do ódio à diferença do outro
toma facilmente conta dos nossos desejos distorcidos.
2. Foi por isso que, para
enquadrar a crónica do passado Domingo[3],
fiz uma alusão rápida a um longo estudo de Frei Francolino Gonçalves, O.P., que
distingue dois iaveísmos no AT, o
cósmico e o histórico baseado numa exacerbada política nacionalista que mata e
manta matar.
Esse estudo exige outros textos fundamentais do
mesmo autor acerca da importância que o método histórico-crítico introduziu nos
estudos bíblicos que exige, por sua vez, outras abordagens ao serviço de uma
interpretação que não seja nem míope, nem onde vale tudo[4].
Durante muitos séculos, a leitura teológica da
Bíblia foi, praticamente, a única. Até meados do século XIII, não se distinguia
exegese e teologia. Formavam uma só disciplina. Na segunda metade do século
XVII, assiste-se ao aparecimento de uma nova leitura que começou por centrar-se
no AT. Entre os seus pioneiros, devem mencionar-se o judeu de Amesterdão, de
origem portuguesa, Bento Spinoza (1632-1677) e o católico francês Richard Simon
(1638-1712). Sem duvidar de que a Bíblia fosse a expressão da palavra de Deus
em linguagem humana, a nova abordagem não se confundia com a utilização que
dela se fazia na elaboração da teologia sistemática.
Entretanto, muita água correu, debaixo e por cima
das pontes, até ao dia de hoje. Francolino Gonçalves exerceu a abordagem
histórico-crítica, condição para não se fazer do texto um pretexto para
arbitrariedade das interpretações. Em que consiste essa abordagem?
«O único objectivo da exegese histórico-critica é
a inteligência do sentido originário dos textos. Não pretende mais nada nem se
arroga qualquer outra competência. Estuda os textos bíblicos como estudaria
qualquer outro texto antigo, sem ter em conta o estatuto religioso que os
cristãos, os judeus e até os muçulmanos lhes reconhecem»[5].
Para o cristão, resta a tarefa indispensável da
hermenêutica desses textos.
«O hermeneuta cristão aferirá o sentido dos textos
pela bitola da coerência do conjunto das suas Escrituras e da sua Tradição. Por
exemplo, não poderá aceitar, sem mais, a ordem divina de exterminar os
habitantes do país de Canaã (Dt 7, 1-6) nem a misoginia do que algumas exegetas
chamam a “pornografia profética” (cf. Ez 16 e 23) para dar só dois exemplos»[6].
A Comissão Pontifícia Bíblica, à qual Frei
Francolino também pertenceu, publicou um documento notável sobre A interpretação da Bíblia na Igreja
(15/04/1993). Esse documento, além do método histórico-crítico, que depois de
vencer muitos obstáculos conseguiu direito de cidadania na exegese, abre-se a
outros métodos e abordagens que foram e vão surgindo na análise dos textos
literários. Recusa as leituras fundamentalistas porque, em nome de uma
fidelidade total à palavra de Deus, esquecem que esta se encarnou numa época
precisa da história, num ambiente social e cultural bem determinado. Quem
desejar entendê-la deve aceitar a ajuda das ciências humanas disponíveis.
3. Terminei a referida crónica
com um correctivo: Jesus repudiou a violência do AT: Ouvistes o que foi dito: Amarás
o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém,
digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem[7].
Preferiu ser morto a matar.
A Carta aos Efésios, atribuída a S. Paulo, mas de
estilo muito diferente, afirma que somos poema
de Deus em Cristo Jesus. Ele é a nossa paz. Destruiu o muro de separação, o
muro da inimizade. Anulou, na sua carne, a Lei que contém os
mandamentos em forma de prescrições. A partir do judeu e do gentio, criou em si
próprio um só homem novo, fazendo a paz. Reconciliou-os com
Deus, num só Corpo, por meio da cruz. (…) Os gentios são admitidos à mesma
herança, membros do mesmo Corpo e participantes da mesma promessa, em Cristo
Jesus, por meio do Evangelho[8].
Estas referências, a que se podiam juntar muitas
outras, apresentam o cristianismo em continuidade e em ruptura com o AT.
O interessante é que se tenha atribuído a Jesus de
Nazaré, um judeu, a continuidade e a ruptura. A investigação de Frei Francolino
sobre os dois iaveísmos, no AT, a que
já me referi, permite perceber a razão que levou Jesus a não aceitar nem
rejeitar tudo em bloco.
Tagore «tal como o seu amigo Gandhi, que sabia de cor e recitava todos os dias as
Bem-aventuranças, foi atraído pelo cristianismo e ambos consideravam que os
Evangelhos deveriam ser considerados património universal da Humanidade»[9].
Não posso estar
mais de acordo. Outra coisa foram os usos santos e perversos que os Evangelhos
tiveram na história das Igrejas.
in Público, 21.06.2020
[1] Rm 2, 12-16
[2] Gn 1 – 2
[4] Cadernos ISTA: Estudos bíblicos hoje, nº 17, ano IX (2004), pp. 5-45; Mundos Bíblicos, nº 18, ano X (2005),
pp. 7-34; A Dei Verbum, nº 24, ano
XVI (2011), pp. 61-88.
[5] Cadernos ISTA, Nº 24, p. 78
[6] Ib., p. 79
[7] Mt 5, 43-44
[8] Cf. Ef 2, 8-16; 3, 3-8. É importante
ler estes textos na íntegra.
[9] Cf. Maria Eugénia Abrunhosa, 7Margens, 6 Abril 2020
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A pandemia. Onde está Deus?
Anselmo Borges
A Universidade de Viena investigou a relação
da religiosidade com a pandemia. Os resultados mostraram que as pessoas mais
religiosas utilizam estratégias mais activas para dominar a crise. Enquanto as
pessoas menos religiosas tendem a reprimi-la ou a negá-la, as mais religiosas
procuram apoio social e lidam com ela de modo mais forte, mais optimista e com
mais serenidade.
São dados significativos. Não houve, creio,
nenhum estudo sobre o outro lado, mas estou convencido de que dele resultaria
que muitos, esmagados pela pandemia, pelo sofrimento, se perguntaram: onde está
Deus?
A história é um autêntico calvário. Hegel
referiu-se-lhe como um Schlachtbank: um açougue, um matadouro. E lá está o
famoso dilema de Epicuro: Deus tem de ser todo-poderoso e infinitamente bom. Ou
Deus pôde evitar o mal e não quis, e não é bom; ou quis e não pôde, e não é
omnipotente. Ou quis e pôde; então, donde vem o mal?
Mesmo teólogos de renome sentiram-se
atenazados pelo dilema, de tal modo que alguns, como Jürgen Moltmann, falaram
de um Deus impotente, que sofre connosco; outros, como Romano Guardini,
chegaram a exclamar que "pediriam contas" a Deus pelo sofrimento dos
inocentes; Karl Rahner disse que, "num tribunal humano, não sairia
absolvido"; Karl Barth afirmou que, no Jardim das Oliveiras, quando Jesus
rezava, suando sangue, Deus "se portou como Judas"; e Hans Urs von
Balthasar disse que "se deve falar de uma descarga de ira de Deus sobre
aquele que lutava no Jardim das Oliveiras." Nestas posições, a pergunta
ergue-se talvez ainda mais veemente: acreditar como e para quê num Deus irado
ou impotente?
A filosofia e a teologia ficarão
historicamente devedoras ao filósofo-teólogo Andrés Torres Queiruga por ter
desfeito o preconceito em que assenta o dilema (ver a sua obra marcante,
Repensar o Mal). De facto, como escreveu, "enquanto permanecer o
preconceito de que Deus poderia acabar com todo o mal do mundo, se quisesse,
ninguém pode crer na bondade de Deus, sem se ver obrigado a negar o seu poder;
ninguém acreditaria na bondade de um cientista insigne que, podendo acabar hoje
com os estragos do coronavírus, não quisesse fazê-lo, por altos e ocultos que
fossem os seus motivos".
O crente, nomeadamente o crente cristão,
acredita no Deus Pai-Mãe, infinitamente poderoso e bondade infinita, que ama os
seus filhos e filhas e só quer o seu maior bem. Donde vem o mal? Do mundo, que
é finito e no qual há inevitavelmente mal. Não é possível um mundo finito, em
evolução, perfeito e sem mal, porque isso é uma contradição; como se não pode reivindicar
a autonomia criatural da liberdade humana finita e a perfeição. "Afirmar
hoje que Deus não é bom ou omnipotente, porque não cria um mundo perfeito, é o
mesmo que argumentar que não o é, porque não quer criar círculos-quadrados ou
não pode fazer ferros-de-madeira." A primeira coisa que é, portanto,
preciso clarificar é que o mundo produz mal, o finito não pode ser perfeito,
tem falhas, carências, nele haverá choques, becos sem saída...
Desfeito o equívoco de um mundo finito
perfeito e sem mal, avança-se para uma ponerologia (do grego, ponerós, mau):
tratar do mal, antes de qualquer referência a Deus. De facto, o mal atinge a
todos, crentes e não crentes, todos sofrem ao nascer, todos passam pela dor,
todos morrem. E devemos todos estar unidos solidariamente na defesa da vida e
na procura do real alívio do sofrimento de todos. A pergunta, agora, é outra:
se o mal é inevitável, porque é que Deus criou o mundo? "Não posso
responder ao ateu que diz que o mundo é absurdo, que não vale a pena. Eu não
sou pessimista: creio que vale a pena e que há um referendo na humanidade:
todos, no fundo, sabemos que vale a pena. Por isso, continuamos a trazer filhos
ao mundo."
Aqui, começa a pisteodiceia (de pistis e
dikê, justificação da fé). Há diferentes pisteodiceias, pois todos, ateus,
agnósticos, crentes, têm de enfrentar-se com o mal e cada um tem, dentro de uma
cosmovisão, a sua resposta para o problema, a sua fé. O crente religioso crê e
pensa que é razoável crer em Deus e até pode perguntar, com o famoso teólogo
Hans Küng: "O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua
miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no
sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!" E crê que Deus não
teria criado o mundo, se não fosse possível libertar-nos do mal. O que se passa
é que o que não é possível num dado momento pode sê-lo mais tarde. A mãe sabe
matemática, mas não pode ensinar matemática ao seu bebé enquanto bebé; fá-lo-á
mais tarde. Alguém pode conceber-se a aparecer já adulto no mundo? A realidade
é processual, e o crente em Deus como amor e anti-mal espera a salvação
definitiva e plena para lá da morte.
Aqui, ergue-se outra objecção: depois da
morte, não continuamos finitos? Os crentes confiam em Deus e podem mostrar, com
razões, que a salvação eterna não é contraditória, pelo contrário. Sim, a
pessoa é finita, mas com uma abertura infinita. Este é o mistério do homem.
Nunca estamos acabados, nenhum ser humano morre definitivamente feito. Não há
nada finito que possa preencher a abertura humana, não há nada finito que possa
realizar a nossa capacidade de conhecer e amar. Esta é a possibilidade que se
abre ao crente a partir da fé: já para lá dos limites do espaço e do tempo,
Deus mesmo entrega-se-nos nesta abertura infinita e finalmente seremos nós com
Ele e nEle.
Padre e professor de Filosofia. Escreve de
acordo com a antiga ortografia
in DN, 21.06.2020
www.dn.pt/edicao-do-dia/20-jun-2020/a-pandemia-onde-esta-deus-12328663.html
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
É MAIS COM
PERGUNTAS DO QUE COM RESPOSTAS — E ESSA É TAMBÉM A RADICAL EXPRESSÃO DO PODER
DA LITERATURA — QUE NASCE UMA DAS NARRATIVAS MAIS ORIGINAIS E INCLASSIFICÁVEIS
Portugal tem destas excentricidades: que um
espírito crítico, torrencial e iluminador como o de Agustina Bessa-Luís se
confronte com a nossa mais extraordinária figura de fronteira que é Santo
António de Lisboa (ao mesmo tempo medieval e moderno; popular e cultíssimo;
português e a cooperar numa mudança epocal que, segundo Jacques Le Goff “vai
sacudir a religião, a civilização e a sociedade”), não parece empresa
suficiente para ativar paixões. De facto, o seu “Santo António” (agora
reeditado pela Relógio D’Água) é, no conjunto da sua obra, um livro
injustamente esquecido. O curioso é que a escritora não contorna esta
perturbadora excentricidade, antes a toma como explícito ponto de partida. Ela
sabe que há duas perceções afirmadas: aquela maioritária que reduz António a
“santo fácil e caseiro”, mais para ser festejado do que propriamente
compreendido; e aquela marginal, ligada ao estudo da espiritualidade
franciscana e ao ambiente universitário, que o perscruta, sim e bem, mas sem
chegar a uma síntese amplamente partilhável pelo seu tempo.
A pergunta que Agustina neste impasse se faz
é sobre o poder da literatura. E poucas vezes ela o aceitou pensar, diante do
leitor, com esta disponibilidade e risco. Que pode a literatura? Que recursos
específicos um romancista ativa para iluminar as faces de poliedro de uma
personagem que a receção tende a tornar plana? Que inteligência aplica às
passagens inexplicáveis, sejam interiores ou de conjuntura histórica, e às mil
modulações, desfocagens e diatribes próprias dos processos de transmissão? No
fundo, será mais com perguntas do que com respostas — mas essa é também a
radical expressão do poder da literatura — que Agustina constrói uma das suas
narrativas mais originais e inclassificáveis, que é uma mistura de ensaio e
romance, de texto documental e relato de viagem, de filme metafísico e de
making-of sobre as condições de produção, de minucioso comentário filológico do
passado e de exercício fulgurante e amplo de pensamento sobre a vida.
Quem era Santo António? Um pregador inflamado e discutido, apostado num
“processo moralizador” que não poucos teriam recebido como agressivo ou era o
difusor entusiasta do ‘sermo humilis’, que procurava alcançar a inteligência de
todos?
No Livro XI das “Confissões”, Santo Agostinho
argumenta que os tempos são três: “O presente das coisas passadas, o presente
das coisas presentes, o presente das coisas futuras.” Não admira que a escritora
apresente o seu projeto como uma “biografia conduzida pela meditação”.
Recorde-se que a mesma etimologia latina acomuna a palavra meditação e termos
como medicina ou medicamento. Meditar é, por isso, curar o presente.
Quem era efetivamente Santo António? Era um
pregador inflamado e discutido, apostado num “processo moralizador” que não
poucos teriam recebido como agressivo ou era, ao contrário, o difusor
entusiasta do sermo humilis, que procurava alcançar a inteligência de todos,
doutos e não doutos? Que transformação aconteceu para que Santo António tenha
chegado até nós, sobretudo sob a forma do afeto ao nível do rito quotidiano e
das suas mediações, como “piedoso confidente de razões práticas”? E essa
transformação foi o fruto de uma crescente maturação psicológica que se explica
ou uma experiência mística que é da ordem do indizível? Mesmo defendendo que
“António é um afetivo e não um místico”, consumando-se mais na compaixão do que
no puro abandono do arrebatamento, Agustina ajuda-nos a mergulhar na fascinante
complexidade do santo que, segundo ela, vivia “a condição metafísica dessa
treva em que o conhecimento dos seres não é mais um pacto vital, mas um enigma
que se respeita pela sua analogia, ou aptidão para receber o divino”.
in Semanário Expresso, 20.06.2020
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2486/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/o-santo-antonio-de-agustina
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À PROCURA DA PALAVRA
PE. VITOR GONÇALVES
DOMINGO XII COMUM
“Não temais os que matam o corpo,
mas não podem matar a alma.”
Mt 10, 28
Ultrapassar o medo
De entre as muitas imagens de
celebrações em tempo de confinamento, certamente alguns vimos aquela em que o
padre subiu a um terraço da igreja e, rodeado de prédios, com as pessoas em
suas casas, celebrou a eucaristia, “à luz do dia e sobre os telhados”.
Semelhantes iniciativas manifestaram inúmeros dotes musicais, jogos, saudações,
e festas em varandas. Era preciso vencer o isolamento e não ficar reduzidos a
écrans cheios de imagens.
Se o distanciamento social é uma
forma de evitar o contágio deste vírus perigoso e de proteger a vida dos mais
frágeis, não podemos ceder ao medo. É com prudência e responsabilidade que
devemos caminhar. Com novos ritos de cuidado comuns, e redescobrindo a
felicidade das pequenas coisas. Alguma insaciabilidade e uma certa soberba
perante o mundo e os outros pode dar lugar à humildade e à solidariedade. Não é
uma pandemia que termina com a violência nem com problemas mais fundos da
sociedade, como os conflitos em torno do racismo e do julgamento da história
trouxeram à tona da vida.
São frequentes os apelos de Jesus a
não termos medo. Afinal, ele é o maior obstáculo ao amor, que supõe confiança,
e incita à entrega e à coragem. O medo fecha, o amor abre; o medo isola, o amor
faz encontro; o medo antecipa o pior, o amor tem esperança; o medo é egoísta, o
amor é confiante; o medo prende, o amor liberta; o medo mata, o amor dá vida.
Dizia Clarice Lispector: “Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha
medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no
começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não
mais por solidão, mas como eu agora: por amor.”
De três medos previne Jesus os
discípulos ao enviá-los em missão. O medo do fracasso, e que a violência dos
homens reduza a nada o esforço em levar a boa notícia do amor de Deus. Jesus
pede-lhes a coragem de O anunciar em todas as circunstâncias; afinal, o Reino
germina a partir do que é frágil e cresce onde menos se espera. Só fracassa
quem não tenta, e o cristão tem sempre diante si o risco de não ver germinar as
sementes que lançou. Adverte-os para o medo dos maus tratos e da morte. Só a
confiança na vida maior que Deus dá aos seus filhos é mais forte. E se o medo
do sofrimento que pode atingir os que mais queremos também é real, Jesus lembra
a fragilidade dos passarinhos e a caducidade dos cabelos para falar do cuidado
e do carinho de Deus. Não promete que não irá acontecer nada, ou que fará
milagres para evitar o que é difícil. Simplesmente diz que valemos mais do que
muitos passarinhos. E com a nossa entrega e confiança, Ele fará o que for
necessário. A última palavra é sempre de Deus e é uma palavra de vitória e vida
plena.
in Voz da Verdade,
21.06.2020
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Tornar o catolicismo português mais
franciscano, a tarefa do bispo Ornelas na CEP (análise)
António Marujo
No dia 16 de Junho, 28 bispos
elegeram os novos titulares dos órgãos da Conferência Episcopal Portuguesa
(CEP), escolhendo o bispo de Setúbal, José Ornelas, como presidente. Até hoje,
a CEP não foi muito capaz liderar dinamismos significativos de renovação da
Igreja Católica em Portugal. Podem eleições como estas mudar alguma coisa?
Podem, mas para tal é preciso reunir a vontade colectiva dos bispos.
A escolha da CEP foi feliz: o bispo
de Setúbal é, no actual quadro, um dos poucos com capacidade de imprimir um
ritmo diferente à Conferência, libertando-a de vários espartilhos históricos.
Para isso, terá de conseguir que o organismo seja mais do que uma mera
assembleia de partilha de reflexão e produção de documentos – apesar de ela
integrar bispos empenhados em dar o seu melhor, sinceramente interessados na
renovação.
Há um pecado original na criação da
CEP: nascida na década de 1960, a conferência era nesse tempo liderada pelo
cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, patriarca de Lisboa e personalidade forte e
carismática. Mas, formado 50 anos antes, já não conseguiu, ou não quis,
adaptar-se às mudanças que o II Concílio do Vaticano traçou. O que ficou, numa
Igreja também sujeita à ditadura, à censura e à perseguição da discordância,
foi a imagem de uma hierarquia cinzenta, com tiques de autoritarismo e
monolitismo, muito próxima do ditador e do salazarismo – mesmo se este é um
retrato incompleto, pois sempre houve quem quisesse um outro catolicismo para
Portugal.
Desde aí, a CEP viveu quase sempre
na sombra dos bispos da capital (no senso comum, quem “manda” na Igreja é o
patriarca de Lisboa, ao contrário do que acontece noutros países, em que vários
outros bispos se destacam). Mais grave ainda, a Conferência continuou enferma
de falta de ousadia, criatividade e espírito colectivo, factores agravados pelo
monolitismo vivido em Portugal durante décadas.
Timidez
Excepções? Alguns rostos dos
últimos 40 anos e, sobretudo, alguns momentos: a plena adesão, liderada pelo
cardeal Ribeiro e pelo então bispo do Porto, António Ferreira Gomes, à
democracia implantada em 1974; a dinâmica da pastoral do domingo (finais de
1970-início de 1980), os congressos nacional e diocesanos dos leigos; o
relançamento das semanas sociais; o congresso da família… Mas, se revisitarmos
as conclusões dessas iniciativas, percebemos que a esmagadora maioria delas
ficou no papel. O catolicismo português, preso à falta de debate interno, tem a
mesma incapacidade do país de ficar muitas vezes por bons diagnósticos, sem
consequências.
De fora, houve ainda um sopro de
frescura em 2004, com o encontro de jovens promovido pela comunidade ecuménica
de Taizé, pouco aproveitado na atenção aos jovens, espiritualidade, diálogo
ecuménico e compromisso social que poderia ter provocado. E, na quarentena de
que saímos, o bispo de Leiria e o patriarca de Lisboa foram assertivos na
decisão de suspender celebrações comunitárias (incluindo o risco absurdo que
seria o 13 de Maio, em Fátima) e de afirmar o essencial da fé.
A renovação sugerida pelo Concílio
(1962-65) deu passos tímidos depois do 25 de Abril, até à mudança de século. Os
bispos de então não eram muito arrojados, mas estavam alinhados com o Vaticano
II e davam espaço à iniciativa de pessoas e grupos. Esses tempos esfumaram-se e
os passos no sentido da renovação não foram muito longe.
Há 55 anos, a 6 de Agosto de 1965
(a poucos meses do encerramento, em Dezembro, do Vaticano II), o episcopado
português publicava uma nota pastoral sobre o Concílio, onde escrevia que
“reforma sem disciplina e actualização sem ordem resultariam em anarquia
destruidora.” Essa tem sido, grosso modo, a atitude do episcopado em Portugal:
nada de sujar as mãos e arriscar, como tem pedido o Papa Francisco, mesmo que
isso implique depois repensar e corrigir. Antes manter a disciplina e a ordem –
ou seja, “prudência” e “receio”, manter o que está, não dar espaço à
criatividade, não enfrentar problemas sociais graves. Como diz a expressão
usada em âmbitos católicos quando se quer dizer delicadamente que algo/alguém
não existe, a CEP tem sido demasiado “apagada”…
Ausências
Alguns exemplos: nenhum inquérito
sociológico ou da prática dominical originou dinâmicas pastorais diferentes ou
opções por prioridades; não há perspectivas de uma pastoral de conjunto nas
cidades; a participação dos leigos, mulheres e jovens nos processos de decisão
é, muitas vezes, apenas retórica, sujeita ao poder frequentemente autoritário
do bispo ou do padre; ignoram-se problemas como a solidão do clero, da profunda
crise de identidade da vida religiosa ou da regressão na formação dos
seminários para um modelo clerical e de “casta”, no qual a formação humana,
cultural e espiritual é deficiente, e nem sequer entusiasma os seminaristas por
conhecer o pensamento de teólogos ou investigadores fora dos manuais.
Olhando para o que se passa na
sociedade, a voz da hierarquia quase só se faz ouvir para falar de temas como o
aborto e eutanásia. E peca pelo silêncio em realidades como a violência
doméstica, o desemprego, o racismo e populismo crescentes (por vezes
protagonizado por quem se faz fotografar em igrejas ou faz profissões genéricas
de fé)? Falta diálogo cultural (com excepção de iniciativas pontuais, como a
página da Pastoral da Cultura), falta presença na questão da emergência
ambiental, ainda mais tendo um “manual de instruções” espantoso como é a encíclica
Laudato Si’, do Papa Francisco, falta formação católica de lideranças
económicas, políticas e financeiras para uma economia que não mate…
Se este diagnóstico fosse
exagerado, possivelmente alguns dos indicadores católicos estariam hoje melhor
do que há 20 ou 40 anos e haveria mais pessoas nas missas, mais baptizados e
matrimónios, universos intelectuais, políticos e sociais mais próximos e
interessados no diálogo com os católicos… O catolicismo sofre uma erosão a
vários níveis e não só porque o mundo mudou. Também (sobretudo?) porque a
Igreja Católica não tem tido arrojo, criatividade, ousadia, nas propostas que
faz, limitando-se quase só a repetir o que já se sabe, o que já se faz, o que
já se pensa. Escasseiam as vozes que reflectem, debatem e propõem caminhos
alternativos. E as poucas que há são olhadas de lado. Há muito.
Urgência
Este é um diagnóstico cáustico?
Sim, porque há factores positivos que aqui não são referidos; num momento em
que volta a haver uma nova liderança no episcopado, este é o momento de olhar
para o muito que falta fazer. E as primeiras declarações do bispo José Ornelas
indiciam essa vontade.
Na Evangelii Gaudium (A Alegria do
Evangelho), a sua exortação apostólica programática, o Papa Francisco diz que
“a vida comunitária e o compromisso com os outros” são o “coração do evangelho”
(nº 177). Na Laudato Si’, acrescenta que se devem considerar “inseparáveis a
preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na
sociedade e a paz interior” – ou seja, as dimensões mística e espiritual (nº
10).
No primeiro destes textos, o Papa
sugere consequências da renovação: recusa do clericalismo (e do narcisismo,
acrescentou ele em diversas ocasiões, a propósito dos abusos sexuais), apelo à
criatividade a ousadia (não serve o argumento de que “sempre se fez assim”),
não querer ver inimigos em todo o lado, chamar pessoas que pensem diferente e
não se limitem a lisonjear os bispos ou padres, não ficar pela moral; e, pelo
contrário, propor a misericórdia, a atenção a todas as periferias, ter atenção
às novas dinâmicas urbanas, aceitar o pluralismo e o debate, dar protagonismo
aos leigos, às mulheres e aos jovens…
D. José Ornelas já referiu a
necessidade de coordenar “solidariamente” actividades conjuntas, de dialogar
com a sociedade de que a Igreja Católia faz parte, de dar atenção aos múltiplos
problemas sociais. Mas nada disso serão tarefas fáceis, até porque já outras
vezes houve intenções semelhantes, que esbarraram na inércia da CEP enquanto
conjunto. As mudanças não se fazem com poucas pessoas, mas com uma vontade
colectiva e o facto de a liderança da CEP (presidência e conselho permanente)
estar, no fundamental, alinhada com o pensamento e modo de agir do Papa
Francisco é uma ajuda importante para começar a mudar o rumo.
É necessária, no entanto, uma
liderança firme, que rompa a sensação de que a adesão de uma boa parte do clero
português ao Papa é apenas epidérmica, sem grandes consequências de ordem
prática. Quando Francisco quis convencer José Ornelas a vir para Setúbal (o
então superior geral dos padres dehonianos preparava-se para uma missão em
Angola) disse-lhe que Setúbal também é terra de missão para um clérigo
católico. E Portugal, poderia acrescentar-se. Com uma urgência: trazer
“franciscanismo” ao catolicismo português. Essa é a missão, a tarefa que o novo
presidente da CEP tem pela frente.
in 7Margens
https://setemargens.com/tornar-o-catolicismo-portugues-mais-franciscano-a-tarefa-do-bispo-ornelas-na-cep-analise/
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Em memória dos defuntos
falecidos em tempo de pandemia
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