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Info: Crónicas
Frei Bento: A marca cristã da escola católica
Pe. Anselmo: Conversa com Hans Küng 1
Pe. Tolentino: Conheces a montanha?
Pe. Vítor: Quantas vezes
A MARCA CRISTÃ DA ESCOLA
CATÓLICA
Frei Bento Domingues, O.P.
A marca cristã de todas
as Escolas Católicas deve ser esta: fazer do privilégio de acesso à cultura,
média e superior, a missão de não deixar ninguém para trás. Sem esta marca
cristã, a Escola Católica contribuirá para perpetuar a injustiça social em todas
as suas manifestações.
1. Devido à pandemia, o
começo do novo ano escolar não pode deixar de provocar ansiedade em todas as
pessoas que estão envolvidas no processo educativo. As imensas dificuldades, o
medo, as dúvidas e incertezas não são exclusivas das famílias, das escolas, dos
governos. Já verificamos que o choque da Covid-19, de modos muito diversos,
afecta toda a sociedade, em todas as suas expressões.
É uma banalidade dizer que a educação é um dos factos mais
gerais e mais constantes da história do ser humano, que não é apenas natura,
biologia, instinto, mas história cultural. Sem uma comunidade educativa, que o
possa ajudar a desenvolver as suas capacidades criativas, o ser humano
manter-se-ia perante os desafios da vida, apenas como o ser menos equipado do
reino animal.
É pelos diversos processos educativos, das diferentes
culturas, que ele acolheu e desenvolveu a capacidade de pensar, comunicar,
sonhar, experimentar, realizar e fazer acontecer o novo, o futuro, seja no
registo da esperança ou da utopia. Como escreveu Gaston Berger, tudo começa
pela poesia, nada se faz sem a técnica.
Nas sociedades modernas, sem as ciências e as técnicas, sem
os cuidados da saúde, sem novas formas de trabalho e sem a escola de realidades
e ilusões, a vida humana parece inconcebível, embora seja a situação da maior
parte da humanidade. Hoje, começamos a saber que, sem uma profunda conversão
ecológica, o futuro está ameaçado.
A Covid-19 alastrou por todos os continentes. Quando
poderemos dispor de vacina acessível a toda a gente de todos os países? Até lá,
o sentido da cidadania deve começar – sempre que possível – pelos cuidados e
pelas práticas recomendadas pelas autoridades sanitárias. Importa destacar:
quem, podendo, não as segue, é louco. Nem o pânico nem o desleixo são boas
companhias para este tempo[i].
2. Nesse sentido, é desejável
que a indispensável competição político partidária não esqueça que uma educação
integral é um bem a promover por toda a sociedade. Exige, por isso, a procura
de consensos, alimentados por diálogos vigorosos, em função de soluções
possíveis, em cada situação e em cada momento. Importa, nesta hora difícil,
vacinar-se contra as diversas tentativas apostadas em criar um clima social
manipulado, de crispação crescente e generalizada. A maledicência é um vírus
pior do que a Covid-19, disse o Papa Francisco.
A amizade civil, defendida por Tomás de Aquino, é compatível
com caminhos diferentes para alcançar o bem comum, com a promoção de
alternativas políticas, com o poder democrático de servir e que recusa as
estratégias e tácticas fraudulentas de dominação.
Não digo que os recentes abaixo-assinados, em torno do
direito à objecção de consciência dos pais que não queiram que os seus filhos
frequentem as aulas de Educação para a Cidadania, sejam inteiramente inúteis.
Não consegui, no entanto, descobrir a maldade que possa existir nas Linhas de
Orientação para a Educação da Cidadania.
No âmbito da Educação intercultural,
dada a crescente diversidade da sociedade portuguesa, veria com bons olhos não
apenas a abordagem da liberdade religiosa, mas também uma apresentação do
fenómeno do diálogo inter-religioso como contributo para a paz, a nível
nacional e internacional. É desejável que a Educação para a Cidadania seja
atribuída a pessoas competentes e disponíveis para o diálogo com toda a
comunidade educativa.
O ser humano é sem definição. Transcende todas e cada uma das
tentativas que dele procuram fazer um objecto de estudo. Diz-se que a sua
verdade é filha do tempo, de sabedorias milenárias, da razão e da revelação,
mas continua uma pergunta sem resposta: Donde vem? Para onde vai? Qual é o
sentido da vida?
São igualmente repetidas as questões de I. Kant: Que posso
saber? Que posso fazer? Que posso esperar? Que é o homem? Acrescentou: «No
fundo, tudo isto pode ser posto à conta da antropologia uma vez que as três
primeiras se referem à quarta».
3. O ser humano continua
sem definição. É um misterioso eu em face de um misterioso tu que grita, do
fundo do seu abismo, por amor e misericórdia para si e para os outros. B.
Pascal viu a originalidade do caminho cristão: «O conhecimento de Deus sem o da
miséria humana engendra orgulho. O conhecimento desta miséria sem o de Deus
engendra desespero. O reconhecimento de Jesus Cristo é o meio: nele conhecemos
a Deus e a nossa miséria»[ii].
A proposta do Papa Francisco de mobilização de toda a Igreja
para o Pacto Educativo Global não foi vencida pela Covid-19. O seu
lançamento – a procura de um humanismo solidário – está previsto para meados de
Outubro.
Antes desta proposta, não se pode
esquecer o seu discurso aos participantes na Plenária da Congregação para a
Educação Católica, de que só podemos destacar algumas passagens:
«Recentemente, desenvolvestes o tema da
educação para o diálogo intercultural na escola católica, com a publicação de
um documento específico. Com efeito, as escolas e as Universidades católicas são
frequentadas por numerosos estudantes não cristãos, ou até não crentes. Os
institutos de educação católicos oferecem a todos uma proposta educacional que
visa o desenvolvimento integral da pessoa e que corresponde ao direito de
todos, de aceder ao saber e ao conhecimento. Mas são igualmente chamadas a
oferecer a todos — no pleno respeito pela liberdade de cada um e dos métodos
próprios do ambiente escolar — a proposta cristã, ou seja, Jesus Cristo como
sentido da vida, do cosmos e da história.
Jesus
começou a anunciar a boa nova na «Galileia das nações», encruzilhada de
populações diferentes por raça, cultura e religião. Sob alguns pontos de vista,
este contexto parece-se com o mundo contemporâneo. As profundas transformações
que levaram à propagação cada vez mais vasta de sociedades multiculturais
exigem de quantos trabalham nos campos escolar e universitário, o compromisso
em itinerários educativos de confronto e de diálogo, com uma fidelidade
intrépida e inovadora, que saiba levar a identidade católica ao encontro das
diversas «almas» da sociedade multicultural. Penso com apreço na contribuição
oferecida pelos Institutos religiosos e pelas demais instituições eclesiais com
a fundação e a gestão de escolas católicas em contextos de acentuado pluralismo
cultural e religioso.
«(…) É necessário que as instituições
académicas católicas não se isolem do mundo, mas saibam entrar intrepidamente
no areópago das culturas contemporâneas e estabelecer um diálogo, conscientes
do dom que podem oferecer a todos».[iii]
Como se verá no desenvolvimento do Pacto Educativo Global, a situação da Escola Católica é
extremamente diversa nos diferentes países. A marca cristã de todas as Escolas
Católicas deve ser esta: fazer do privilégio de acesso à cultura, média e superior,
a missão de não deixar ninguém para trás. Sem esta marca cristã, a Escola
Católica contribuirá para perpetuar a injustiça social em todas as suas
manifestações.
13. Setembro. 2020
https://www.publico.pt/2020/09/13/opiniao/opiniao/marca-crista-escola-catolica-1931149
[i] Cf. Francisco George e Constantino Sakellarides, Público,
09.09.2020
[ii] Pensées (Ed. Chevalier), Paris 1938, n. 75
[iii] Discurso de 13 Fevereiro de 2014
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Anselmo Borges
Padre e Professor de
Filosofia
Na sequência das
crónicas sobre J. Ratzinger/Bento XVI, revisitei a conversa que tive em 1979,
em Estugarda, com o célebre teólogo Hans Küng sobre o Deus de Jesus. Foi assim:
Continua fascinado
por Cristo. Quero perguntar-lhe: o que pode, na sua opinião, significar hoje o
cristianismo?
Dou-lhe uma resposta
simples. Para mim, ser cristão tem ainda hoje sentido, pois, com o
cristianismo, pode-se ser Homem num sentido mais profundo e radical.
Esta afirmação já
não é suspeita, pois foi feita também — é com alegria que o digo — pelo novo
Papa (João Paulo II). Escrevi um livro com o título Ser cristão. Ora,
alguns criticaram-no, porque diziam que nele se falava demasiado do Homem. Mas
hoje vê-se cada vez melhor que o cristianismo não é uma pura ideologia para si
mesmo. A Igreja não tem a sua finalidade em si mesma. O cristianismo deve
ajudar o Homem a ser Homem melhor e mais radicalmente.
Mais radicalmente em
que sentido?
Creio que, mesmo
neste tempo da secularização, é claro para o Homem que ele é mais do que aquilo
que pode ver, calcular, manipular. O Homem tem em si mesmo dimensões que vão
para lá da satisfação das exigências materiais primárias. Ele procura um
sentido em qualquer parte. O Homem quer transcender-se a si mesmo, para além
daquilo que tem, que sabe, que ama. Ele quer ir sempre mais além.
Esta dimensão do
Homem está sempre presente. E mesmo pessoas que não estão de modo nenhum
satisfeitas com a Igreja nem têm a ver com ela querem cada vez mais ouvir falar
desta outra dimensão. Ora, esta dimensão é, se quiser, a dimensão de Deus em
todas as coisas. É com isto que o cristianismo tem que ver. E é com isso que a
Igreja e a teologia devem ter que ver.
Para si, Cristo
revelou-nos o Homem, porque ele tinha uma relação íntima com Deus. É assim?
Não podemos separar
Deus e o Homem. Todos sabemos, desde que em crianças aprendemos o Pai Nosso,
que Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, anunciou a vontade de Deus: “Seja
feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu”. Mas se nos perguntarmos o
que é a vontade de Deus — e muitas pessoas de facto perguntam: o que é que isso
significa para mim? —, recebemos a resposta clara, a partir das suas
comparações e parábolas: a vontade de Deus é a realização e a felicidade do
Homem. Deus quer a felicidade do Homem. É assim que a História é apresentada,
desde a primeira página do Génesis até ao fim do Apocalipse. Deus quer sempre e
só o bem do Homem, e o Homem deve também, se quiser fazer a vontade de Deus,
colocar-se ao lado dos irmãos.
A mensagem central
do cristianismo é esta: A vida do Homem apenas tem sentido se, por um lado, se
orientar no sentido de Deus e se, por outro lado, se orientar no sentido do
Homem, não egocentricamente, mas para os outros. Dito na linguagem tradicional:
amar a Deus e amar o próximo.
Mas hoje as coisas
complicam-se, porque, por um lado, o cristianismo deveria ser o absoluto, mas,
por outro, o cristianismo enquanto absoluto estava de tal modo unido ao
eurocentrismo que entrou em crise. E há também outros humanismos, religiões,
etc.
O cristianismo
representa para si o absoluto e em que sentido?
O absoluto do
cristianismo foi muitas vezes entendido de modo falso, concretamente quando se
entendeu como exclusividade, isto é, atribuiu-se exclusivamente ao cristianismo
a verdade, os valores, as normas, a beleza, etc. Hoje devemos reconhecer que
mesmo para os católicos, depois do Vaticano II, se tornou claro que também nas
outras religiões há verdade, moral, oração, culto de Deus.
Devemos, por
conseguinte, reclamar, não exclusividade, mas unicidade, carácter único. E
quando se pergunta que unicidade, então deve-se dizer que o que é único no
cristianismo é o próprio Cristo. Quando o vejo como figura concreta, tal como
foi, então não pode ser comparado nem permutado com Buda, Maomé, nem com Marx
ou Freud. Ele é único para nós, por causa do que ele quis, devido à causa por
que se bateu, e definitivo, porque, sendo o Crucificado-Ressuscitado, ele é o
enviado de Deus e a sua revelação, não exclusiva, mas definitiva.
É por isso que, face
às outras religiões, ideologias e cosmovisões, devemos ser ao mesmo tempo
tolerantes e críticos. Devemos estar de acordo com tudo o que nelas vai ao
encontro de Cristo e estar atentos e até recusar tudo o que nelas contradiz
Jesus Cristo.
Diz que Cristo é a
revelação definitiva de Deus. Ele é realmente Deus?
Quando se diz que
ele é realmente Deus, pode haver equívocos. Mesmo na teologia tradicional da
Trindade, fez-se sempre distinção entre o Pai e o Filho. E, quando na Bíblia se
fala de Deus (em grego ò Theós: o Deus pura e simplesmente), pensa-se sempre no
Pai.
Cristo é, na Bíblia,
designado como Filho de Deus. Filho de Deus é a expressão correcta para ele. E
esta expressão deve hoje ser cada vez mais entendida a partir do Antigo
Testamento. De facto, ele próprio era judeu, a mãe, os primeiros discípulos, os
evangelistas e os primeiros que transmitiram a tradição eram judeus. O povo de
Israel era designado como Filho de Deus, filho de Javé. O rei de Israel também.
Neste sentido, o
próprio Jesus, enquanto Senhor Ressuscitado, é designado como Filho de Deus,
isto é, como representante de Deus, Seu plenipotenciário, como aquele que foi
investido em dignidade divina, como mediador (representante de Deus junto dos
homens, representante dos homens junto de Deus, em sentido pleno e definitivo).
Neste sentido, ele é “o Caminho, a Verdade e a Vida”. (continua)
in DN 12.09.2020
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/12-set-2020/conversa-com-hans-kung-1-12708848.html?target=conteudo_fechado
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QUE
COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ
TOLENTINO MENDONÇA
CONHECES A MONTANHA?
É QUANDO COLOCAMOS O SER HUMANO EM RELAÇÃO QUE ELE SE AVIZINHA E REVELA A
SUA NATUREZA
Para quem quiser ver, a ciência inicia-nos na
complexidade e na beleza da vida. E fá-lo não só nos seus pontos de chegada, mas
também no modo como ela própria se elabora. Por exemplo, ao ouvir contar ao
físico Carlo Rovelli a extraordinária aventura que conduziu à formulação da
teoria quântica — que ele define como uma das maiores conquistas científicas da
Humanidade e que está por detrás de todo o surto tecnológico que tem vindo a
reconfigurar o nosso modo deviver — há uma palavra na qual me fixo: a palavra
relação.
Primeiro: a física quântica superou a ideia da velha
física de que o mundo deveria ser descrito partindo das substâncias e dos seus
atributos para motivar-nos a pensar a realidade em termos de relações. É uma
perspetiva nova de entender o mundo, mais subtil e dialógica do que a do
materialismo simplista que estudava partículas no espaço. A chave tornase a
palavra relação. Segundo: A própria construção da teoria quântica nasce não
apenas de um cérebro, mas da colaboração entre cientistas de gerações e
geografias diferentes. Niels Bohr, um físico renomado de Copenhaga, que se
apaixonara pelos mistérios do átomo, e que vivia no encalce de uma lei que
explicasse a sua aparente incongruência. O jovem Werner Heisenberg que aos 23
anos pega nesse problema e genialmente consegue uma solução. Mas que temendo
que tudo aquilo fosse ainda uma fantasia, envia o seu trabalho a Max Born, da
universidade de Göttingen, na Alemanha, com o seguinte bilhete de
acompanhamento: “Escrevi um trabalho louco e não tenho a coragem de mandá-lo
para uma revista.” Born que, por sua vez, intui o passo histórico dado por
aquele jovem aturdido e, com a ajuda do seu assistente, Pascual Jordan,
trabalha intensamente para colocar em ordem a estrutura formal da nova física.
Terceiro: a teoria quântica põe em relação a física e os outros campos do
saber, nomeadamente a filosofia. O mundo é uma rede de informações recíprocas.
A física empirista que pretendia sozinha esclarecer a substância fundamental da
matéria baseava-se, no fundo, numa conceção demasiado ingénua de matéria, sem
ter em conta a riqueza desconcertante dos processos, das relações e das interações
que nos impele a pensar o mundo de uma forma mais articulada. Quarto: Aceitando
o princípio da relação, a ciência não tem de pôr de lado a dimensão de
mistério. Escreve Carlo Rovelli no seu livro mais recente, “Helgoland”,
Adelphi, 2020: “O frágil véu que é a nossa organização mental é pouco mais do
que um instrumento insuficiente para navegar através dos mistérios infinitos
deste caleidoscópio mágico inundado de luz, no qual, maravilhados, nos
encontramos a existir, e a que chamamos o nosso mundo.”
É verdade: sem uma chave dialógica não se entende nada
fora nem dentro de nós. Se tomarmos também o ser humano, sem mais, ele
aparecerá como uma coisa tão intrigante e longínqua como a Lua. É quando
colocamos o ser humano em relação que ele se avizinha e revela a sua natureza.
Por isso, talvez seja uma coincidência sem qualquer relevância, ou não, o
seguinte facto: quando o jovem Heisenberg descobriu na solidão da ilha do
Helgoland, no Mar do Norte, as primeiras bases da física quântica, o que ele
fazia nos intervalos do seu trabalho científico era decorar poemas de Goethe,
onde se insiste na ideia de relação. Poemas como este: “Conheces o país onde os
limões florescem/ E laranjas de ouro acendem a folhagem?// [...] Conheces a
montanha e a vereda de bruma,/ A alimária que busca a enevoada senda?/ Nas
grutas ainda vive o dragão da legenda,/ A rocha cai em ponta e à roda a onda
espuma,/ Conheces a montanha?” b
SEM UMA CHAVE DIALÓGICA NÃO SE
ENTENDE NADA FORA NEM DENTRO DE NÓS. SE TOMARMOS TAMBÉM O SER HUMANO, SEM MAIS,
ELE APARECERÁ COMO UMA COISA TÃO INTRIGANTE E LONGÍNQUA COMO A LUA
in Semanário Expresso 12.09.2020
https://pdf.leitor.expresso.pt/infinity/article_popover_share.aspx?guid=e9510910-affd-4e01-942e-f2bb4504ae7b
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À
PROCURA DA PALAVRA
DOMINGO
XXIV COMUM
“Se meu irmão me ofender, quantas vezes deverei
perdoar-lhe?
Até sete vezes?” Mt 18, 21
Quantas vezes?
Os números estão em todo o lado. Da contagem
do tempo às listas de tarefas precisamos da aritmética e da matemática para a
vida. Vivemos estes dias de pandemia na expectativa dos números anunciados de
infectados e recuperados, de falecidos e internados. Pode-se, sobre os números,
tecer as mais variadas hipóteses, teorias, projecções, contabilidades. Mas
ainda que as pessoas se possam contabilizar, ter incontáveis números, de
cidadão, de contribuinte, de segurança social, de clube, de carta de condução,
nunca se podem reduzir à frieza de números.
Somar, diminuir, multiplicar e dividir são
as regras fundamentais do cálculo. Usamo-las quase por intuição e são
necessárias para a vida quotidiana. A própria Bíblia está cheia de números: 7
dias da criação, 10 mandamentos, 12 tribos de Israel e 12 apóstolos, 40 anos de
êxodo, 40 dias de jejum de Jesus no deserto, ao 3.º dia, 5 pães e 2 peixes, 30
moedas de prata, 50 dias de Páscoa, 3 pessoas divinas… E a lista podia
continuar. Cheios de simbolismo, os números bíblicos suscitam um
aprofundamento. E dentre eles sempre me impressionou aquele que Jesus responde
à pergunta de Pedro se devia perdoar o irmão que o ofendeu, até sete vezes.
“Não te digo até sete vezes… (ah! Jesus sabe como seria difícil para nós!...)
mas até setenta vezes sete (O quê? Impossível! Ninguém conseguirá isso!)”.
No perdão, como no amor, somos convidados a
não contabilizar, a vivê-los sem medida, como faz o Pai dos Céus. Na
contabilidade da parábola que nos conta, Jesus apresenta a grandeza
inimaginável da dívida de alguém que é perdoada pelo seu senhor, em contraponto
com a dívida insignificante que este não é capaz de perdoar a um companheiro. O
perdão e o tempo parecem interligar-se: perdoar é também dar tempo antes de pôr
termo a uma relação ou aprisionar o outro num julgamento definitivo. É mesmo um
longo tempo, 70 x 7, indicado por Jesus, não marcado pelo relógio mas pelo
coração. Trata-se de dar peso à vida do outro e dos seus, abrir um futuro onde
um espírito justiceiro só vê grades de prisão. O contraste entre o tempo de
Deus e o do servo impiedoso é significativo: os dois não dão tempo: o primeiro
para salvar e mostrar que nenhuma dívida é maior do que o amor que tem para
dar; o segundo para condenar, mostrando a ingratidão pelo dom recebido e a
ganância sem compaixão que mata.
Quantas vezes devemos perdoar? Todas as que
forem necessárias para permitir a cada um reconstruir, no tempo, uma nova
percepção da sua vida e dos outros. Entre os judeus era conhecido um “Cântico
de vingança” de Lamec, um lendário herói do deserto que dizia assim: “Caim será
vingado sete vezes, mas Lamec será vingado setenta vezes sete.” Diante dessa
cultura da vingança sem limites, Jesus canta o perdão sem limites entre os seus
seguidores. Perdoar é recriar, possibilitar o novo onde o velho julgava
escrever o destino. Traz liberdade e alegria a quem perdoa e contraria a lógica
contabilista que procura medir tudo. Mas não pode medir a alma de um homem, que
tem cotação máxima no coração de Deus!
in Voz
da Verdade 13.09.2020
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=9193&cont_=ver2
http://nsi-pt.blogspot.com
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