1. Fátima nunca mais é o título de um livro
militante do padre Mário de Oliveira. Fátima
cada vez mais, passados 100 anos, goste-se ou não, é o panorama do que está
acontecer. Porque será?
Conheço Fátima desde 1947, onde também vivi, em épocas bastante
diferentes. Contactei, muitas vezes, com os familiares dos pastorinhos, a
começar pelos pais da Jacinta. Ao longo do tempo, fui lendo o que se escrevia
sobre o fenómeno. Já apresentei, até por escrito, as minhas impressões que não
foram sempre as mesmas.
O primeiro sentimento foi de algo banal e triste, estranho e
inverosímil. Como era possível que Nossa Senhora viesse pedir mais sacrifícios
a uns pobres e inocentes pastorinhos, para reparar um Deus ofendido por pecados
que não eram deles? Porque não foi ela ter com esses que cometiam pecados tão
grandes que deixavam o coração de Deus em sangue? Um colega mais velho
respondeu-me: na religião isto é tudo ao
contrário. Talvez, mas não é justo!
Tentando, depois, entender o que tudo aquilo tinha, e tem, de
assustador e cordial, nos limites das catequeses primárias e dos crescentes movimentos
devocionais da época, as perplexidades aumentaram.
Dizer que se trata de um dos fenómenos religiosos mais
relevantes do seculo XX, nascido no seio do catolicismo popular português,
enquadrado pela hierarquia eclesiástica, desenvolvido no quadro de uma luta
católica pela liberdade da Igreja e num quadro mundial de guerras, a abordagem
de Fátima dispõe, hoje, além da documentação de propaganda, apologética e
contestatária, de documentação crítica e
de obras de interpretação, de diversa índole, e fácil acesso. Desse conjunto,
saliento: A nível da História, destaco Fátima
do Bispo Carlos Azevedo[1]. Com a Senhora de Maio[2],
António Marujo e Rui Paulo da Cruz, conseguiram uma Fátima, a muitas vozes,
dissonantes. O pequeno Dicionário de Helder Guégués[3] revela-se muito útil. Ana
André e Sara Capelo registaram as vozes dos que percorrem quilómetros e quilómetros,
a pé, até ao Santuário[4]. Fátima é diferente para
todos.
Podemos saber de 1917 a 2017 – sem contar com as anteriores narrativas
das aparições angélicas - como tudo aconteceu e se desenvolveu ao longo de um
século, mas continuo longe de qualquer síntese explicativa. Tenho, pelo
contrário, outra pergunta: os cenários espectaculares e as publicações que
prepararam e acompanham o ano de 2017 vão coroar ou desassossegar uma narrativa
centenária?
2. Dir-se-á que a
resposta a essa pergunta exige ter em conta outras que não cabem nesta crónica,
como por exemplo: que ganhou e que perdeu o catolicismo português com Fátima? É
uma questão real, mas carregada de ambiguidades, pois, entre os golpes
militares de 1910, de 1928 e de 1974, Portugal mudou e a relação com o fenómeno
religioso também.
O Concílio Vaticano II é a data incontornável da Igreja no
século XX. Em certos países foi preparado por diversos movimentos,
nomeadamente, de novas experiências ao nível da evangelização, da pastoral, da
liturgia e do debate teológico. Os representantes episcopais da Igreja
portuguesa apresentaram-se sem propostas de alteração do rumo do catolicismo.
Alguns tiveram o desplante de afirmar que nós já estávamos muito à frente desse
concílio.
O Vaticano II deixou que ficassem em aberto, para o
pós-concilio, várias questões, entre elas, as da moral familiar, dos
ministérios ordenados e do exercício dos direitos humanos no interior da
Igreja. O resultado foi dramático. Em vez da alegria da evangelização do mundo
contemporâneo, em todos os continentes, Roma ocupou-se em ocultar as reformas
urgentes no Vaticano e em impedir o debate aberto da moral familiar, da
teologia da libertação e das experiências da inculturação da Fé e de abrir o
debate sobre os ministérios ordenados das mulheres e dos homens casados. A
primavera que João XXIII desejava transformou-se num prolongado inverno, um
reino da esquizofrenia: por um lado, o impulso do Concílio e por outro uma
série de medidas para o fazer esquecer.
É conhecida essa história que a eleição do Papa Francisco
tornou ainda mais evidente.
3. Há quem diga
que Fátima nos salvou. Quando uns dizem que nos livrou da II Guerra Mundial,
outros apressam-se a lembrar a perda do império, as guerras coloniais, a
miséria do povo e a imigração acelerada. Não vou entrar por aí. Seria demasiado
fácil ter umas aparições à mão que nos servissem para resolver todos os
problemas do país e do mundo. Uma propaganda dessas só poderia servir para desacreditar
Fátima em toda a linha. Seria uma pseudo-substituição do país e das suas
instituições.
Importa sublinhar que conseguiu uma grande vitória sobre a
ideia de que a religião e a Igreja Católica, em Portugal, estariam no fim, em poucas
décadas. Fátima é um grande centro de atracção no campo religioso. Não resolveu
os nossos problemas sociais, económicos e políticos, nem devia. Realizou o
melhor da laicidade: Portugal é um país laico, mas permite que todas as
religiões possam aqui respirar à vontade.
Fátima desenvolveu-se à margem da renovação cultural do
país. Os grandes criadores da nossa literatura do século XX viveram divorciados
de Fátima e Fátima deles. Mundos estranhos, salvo raríssimas excepções. Por
outro lado, a cultura religiosa popular, catalisada pelos muitos santuários do
país, onde convergia a devoção peregrinante e a romaria, a religião e a cultura
da alegria estão bastante anestesiadas.
Fátima vive da libertação interior de cada peregrino e isso
é algo admirável e insubstituível. Fazer desse caminho o todo da inculturação
da fé cristã, é o culto de uma espiritualidade de olhos fechados.
Fátima precisa de se tornar o novo livro do Desassossego.
Frei Bento Domingues O.P.
in Público 01.10.2017
[1]
Fátima. Das visões dos pastorinhos à
visão cristã, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2017. Já tinha dirigido o Dicionário e História Religiosa de Portugal,
presidido à Comissão Científica da Documentação Crítica de Fátima e coordenado,
com Luciano Cristino, a Enciclopédia de
Fátima. Conseguiu, em pouco mais de 200 páginas, um texto que se recomenda
pelo seu rigor e sobriedade.
[2]
Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2017.
[3]
Factos e Figuras de Fátima. Um Dicionário,
Clube do Livros, Lisboa, 2017
[4]
Peregrinos, Fundação Francisco Manuel
dos Santos, Lisboa, 2017.
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