1. As narrativas
dos Evangelhos já têm mais de dois mil anos, mas foram escritas para
desassossegar as igrejas de todos os tempos. Contam que Jesus de Nazaré não conseguia
passar ao lado das vítimas de doenças físicas ou psíquicas, frutos de muitas
outras misérias. Convivia e comia com as pessoas que a hipocrisia religiosa e
moral classificava como pecadoras, sabendo que se expunha a ser considerado
como uma delas. Por causa da sua teimosia em trabalhar na libertação das
pessoas, mesmo no dia mais sagrado da sua religião, o Sábado, era tido como um
agente clandestino de Satanás. Mas para ele, esse dia só podia ser reservado
para Deus se fosse a festa da vida liberta.
Os evangelistas puseram na boca deste Nazareno um apelo comovente:
vinde a mim todos os que andais cansados
e oprimidos e eu vos aliviarei. Os Actos dos Apóstolos resumiram todo o seu
itinerário numa frase: passou a vida
fazendo o bem.
Não suportava, porém, os espiões da sua ortodoxia religiosa
ou política. Não tinha paciência para as astúcias dos príncipes dos sacerdotes,
dos escribas e fariseus. Àqueles que o interrogavam de má-fé – só para ver se o
apanhavam em falta – mandava-os bugiar. Jesus, mesmo em pleno tribunal não reagiu
como um vencido ou um cobarde. Passou ao ataque. A imagem que melhor o pode
sugerir é a de um profeta bíblico, figura da lucidez perante as contradições da
actualidade. Profeta e mais do que profeta, irmão universal.
No texto do Evangelho da Missa de hoje, ao desmascarar os
fariseus que o queriam meter num beco sem saída, cunhou um aforismo que tem
percorrido os séculos e desautorizado os que não se cansam de manipular a
religião para fins políticos e a política para fins religiosos.
A questão dos impostos é sempre muito sensível, sobretudo em
situações de luta anticolonial. Naquele caso, era especialmente grave. Jesus
tinha de tomar posição e mostrar se estava com ou contra a dominação romana, se
era um verdadeiro israelita ou um traidor. Resposta de Jesus: fostes vós que criastes
esta situação política estampada na moeda que usais. Portanto, «dai a César o
que é de César e a Deus o que é de Deus».
Os aforismos não são demonstrações, mas podem traduzir e
suscitar atitudes exemplares. As actuais e violentas manifestações de fundamentalismo
religioso e político já deviam estar ultrapassadas pela resposta de Jesus. Não
estão. A chamada morte de Deus e do homem – nem deísmo nem humanismo – conduziram
ao puro niilismo. Quando vale tudo, nada vale a pena. De facto, estamos, de
novo, na pior forma da perversão religiosa: matar em nome de Deus!
2. Sem tentar refazer
essa história de rivalidades loucas, não posso esquecer o conhecido mito grego de
Prometeu ou o drama da relação entre religião e cultura. Os deuses escondem aos
seres humanos o segredo da vida feliz. Aquilo que os seres humanos precisam
para fazer a sua vida, por sua conta e risco, o fogo (isto é, as ciências e as
técnicas), tem de ser arrancado aos deuses contra a sua vontade, como o fez
Prometeu. Deuses e homens são rivais. A felicidade dos deuses é a desgraça dos
humanos e a felicidade dos seres humanos é uma usurpação aos deuses. São irremediáveis
concorrentes.
Essa mentalidade penetrou em certas formas de pensamento e comportamento
no mundo cristão de diversas épocas, embora de forma indevida, perversa. Desenvolveu-se
no âmbito de uma pseudo-espiritualidade de “desprezo do mundo”. Esta é uma
expressão carregada de ambiguidades. O dito popular, «tudo o que sabe bem é
pecado ou faz mal», teve e tem um sucesso anticristão. Por detrás dessa atitude
está uma concepção do chamado pecado original, deveras muito original: sem
saber como, nascemos não apenas com uma herança genética, sã ou doente, mas
também com uma história de pecado em que fomos concebidos. Temos contas a
ajustar com Deus, reparar o mal que lhe fizemos, antes mesmo de ter feito ou
pensado seja o que for!
Mesmo quando somos conscientes do mal que fazemos, S. Tomás
de Aquino lembrou que Deus não é ofendido por nós, a não ser na medida em que
agimos contra o nosso próprio bem ou o dos nossos irmãos, filhos de Deus[1]. Nem Deus procura a sua
glória por causa dele, mas por nós e para nós. Não é um carente afectivo[2]. A glória de Deus é a
alegria dos seres humanos.
Deus não é, não pode
nem quer ser tudo. O mundo não é divino. Deus afirma-se fazendo ser o que Ele
não é. Gera a diferença radical. A transcendente acção divina não entra em
concorrência com a evolução cósmica ou com a liberdade humana.
A teologia negativa de Tomás de Aquino é anti
idolátrica, mas não é niilista. O prazer de Deus criador, o Poeta, não é a
negação dos prazeres humanos.
Dizia o teólogo evocado que o prazer é o resultado do agir perfeito. O
prazer dos sentidos testemunha a sua boa saúde e a sua integração harmoniosa no
bem total da pessoa, guiada pela razão e pelos afectos. A construção humana é
um processo de conjugação de relações interiores, consigo mesmo, com os outros
e com o mundo. O mal surge quando, de modo responsável, nos privamos dessa
virtuosa conjugação de relações limpas. Os apetites desgarrados introduzem uma
desordem que nos destrói.
3. Durante vários
anos ensinei a cadeira de teologia das realidades terrestres. A sua temática tinha-se
afirmado nos anos 40-50 do século passado e marcou a constituição conciliar, «A
Igreja no mundo contemporâneo» (Gaudium
et Spes). A questão que a desafiava era existencial: qual é a significação
das actividades nas quais os seres humanos passam a maior parte do seu tempo –
na família, na escola, na profissão, nos lazeres – para o acolhimento e
realização do Reino de Deus, alegria do mundo? É uma descoberta nunca acabada.
Era e continua a ser importante acabar com a ideia de que um
católico praticante é, apenas, o das práticas religiosas, prescritas ou
devocionais. Quando os inconformados com as situações degradantes da sociedade se
decidem a trabalhar na construção de um mundo mais humano é que se tornam, como
diz S. Paulo (Rm 12), verdadeiramente praticantes do culto que agrada a Deus.
Mesmo sem assinatura religiosa.
Neste momento, o culto que Deus nos pede, em Portugal, é a
mobilização da Igreja e da sociedade pela nossa casa comum ameaçada, ano após
ano, pela incúria de todos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 22. 10. 2017
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