1. Que livro é
esse que me leva a dizer que é mesmo indispensável? Se tenho de confessar que
foi essa a convicção que a sua leitura me impôs, sei que o espaço desta crónica
não é o mais adequado para a justificar. A verdade é esta: ajudou-me a diminuir
ignorâncias que talvez não sejam só minhas; ofereceu-me o conhecimento de
alguns percursos da Bioética que ajudam a vencer a ideia de que perante
questões tão complexas, o mais razoável seria deixá-las no segredo dos
especialistas.
O título, que enche a capa dessa obra, revela, sem
ambiguidades, o seu conteúdo: Eutanásia,
Suicídio Ajudado, Barrigas de Aluguer.
Destina-se a possibilitar um debate de
cidadãos, esclarecido e fecundo.
O autor, Miguel Oliveira da Silva, é Professor Catedrático
de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Foi, entre
2009 e 2015, o primeiro Presidente eleito do Conselho Nacional para as Ciências
da Vida. Integra, por eleição, o Bureau da DH-Bioética do Conselho da Europa.
No passado dia 9, a obra foi apresentada, na Casa Museu
Fundação Medeiros e Almeida, por José Barata-Moura e Anselmo Borges.
Ficou claro que as questões abordadas neste livro não deveriam
deixar ninguém indiferente. Têm a ver com a dignidade humana de todos os
cidadãos, do presente e do futuro. Vivemos num mundo global, mas que também
parece cada vez mais fragmentado e não se prevê que se vá tornar mais estável.
Como reza um velho aforismo, o que a todos diz respeito deve
ser tratado por todos. Segundo S. Tomás de Aquino, a virtude da prudência
política – condição para intervir de forma esclarecida nas orientações e
decisões da comunidade - não é uma exigência exclusiva de legisladores e
governantes. É indispensável a todos os cidadãos.
Se a cultura activa das virtudes torna bons os seus
praticantes e boas as suas acções, sem ela até as leis mais justas perdem vigor
e eficácia na sua aplicação.
Para serem virtuosas, as opções e decisões políticas não podem
dispensar o recurso a estudos adequados. Segundo o citado autor, o estudo, além
de todas as experiências e dados recebidos dos investigadores, professores e
educadores, exige sempre uma veemente
aplicação da mente. Sem esse esforço não se consegue verdadeira autonomia
pessoal.
Não se deve confundir ética e política. Não esqueço, porém,
que a política é uma ciência prática cujo objecto é o agir, algo complexo e mutável.
A decisão prudencial ganha em associar a ética da convicção e a da
responsabilidade, isto é, tem de saber calcular os riscos e as consequências
das opções. As melhores intenções, sem políticas bem preparadas e executadas,
alimentam as piores asneiras.
Tornou-se um hábito dizer mal da política e dos políticos,
sobretudo dos que não são da nossa cor. Mas esquecer que nos pertence alterar
rumos e métodos da prática política é uma forma de masoquismo. Um dos
frequentes incitamentos do Papa Francisco aos cristãos incide, precisamente, sobre
a importância da cura da intervenção política para que esta não seja guiada
pelos interesses do Dinheiro que geram a economia que mata crianças e adultos e
provoca os criminosos negócios das guerras, desgraça dos povos.
2. Na contra capa desde livro de Miguel Oliveira da
Silva está escrita a sua motivação. Perante o alargamento de direitos individuais
nos extremos da vida humana, somos responsáveis pelo modo como o Estado assegura
ou não a protecção dos mais vulneráveis: os jovens produtos de tecnologias
genéticas e reprodutivas e as pessoas humanas em sofrimento intolerável que
reclamam querer morrer.
Como ser equitativo no acesso a estas tecnologias e qual é,
aqui, a relação entre o Serviço Nacional de Saúde e o sector privado? Quando e
como têm os pais a obrigação de assegurar que os seus filhos possam conhecer a
verdade sobre a sua história biológica: quem lhes deu o esperma ou o óvulo,
qual a mulher que os gerou e pariu, quantos meios-irmãos poderá ter?
O parecer dos peritos deve servir para pôr as pessoas a
pensar, debater, informar, cogitar para não ser uma perfeita trivialidade.
Um debate sobre uma questão ética nunca está completamente
encerrado. Por vezes, e ainda que de outro modo, há que retomar, periódica e
recorrentemente, as mesmas interrogações e dúvidas. As leis bioéticas não podem
prever todos os casos, todas as situações concretas, sobretudo quando se trata
de novas tecnologias reprodutivas e genéticas que podem obrigar a uma
reapreciação e eventual mudança legislativa[1].
3. É
absolutamente impossível tentar resumir o conteúdo dos diferentes capítulos ou
temas desta obra, embora fosse a melhor maneira de apresentar as razões que me
levam a chamar-lhe um livro indispensável. Indispensável não é o livro.
Indispensável é conhecer a história e os debates da bioética, em Portugal e nos
outros países, para que seja possível uma participação democrática em assuntos
que a todos dizem respeito.
Como já escreveu Anselmo Borges, o achismo é o inimigo do conhecimento e do debate entre cidadãos.
Para encher os meios de comunicação - rádios, televisões, jornais, redes
sociais - não é preciso conhecimento argumentado. Basta dar a ilusão que a
verdade não tem interesse, tanto mais que a época da pós-verdade é o seu reino. Silêncio imposto sobre determinados
temas já o conhecemos e ainda existe em muitos países. Mas agora, procura-se o
mesmo resultado falando muito. Poucos dias depois de ter chegado a Nampula
(Moçambique), e não sabendo nada de macua,
passei por um grupo que falava e gesticulava alegremente. Perguntei a um rapaz
macua, que sabia português, o que estava aquela gente a dizer com tanto
entusiasmo. Resposta rápida: não estão a dizer nada, é só falar. Hoje em dia, e
entre nós, em relação a muitos programas que pretendem ser de informação e
debate, tenho a impressão de que também não dizem nada. É só falar. Seriam bem
dispensáveis.
O que não se pode dispensar é o conhecimento da história da Bioética
que – ao contrário da clássica Ética Médica até aos anos 70 do século XX – tem
um outro horizonte temporal e outro alcance filosófico: a equação moral que não
se esgota na imediatidade ou proximidade da relação quase sempre privada e
individual médico-doente. Há um outro tempo, uma esfera pública e comum,
transgeracional que pode mesmo afectar o futuro do planeta[2].
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 15.10.2017
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