A ignorância não é um dever
Frei Bento Domingues
Público, 5 de Novembro de 2017
Não foi a Bíblia que deu origem à
subordinação das mulheres na civilização ocidental
1. Lutero não passou por Portugal. Na revista Brotéria, de Outubro, tentei explicar porque lhe negaram o passaporte. Apesar
disso, de vez em quando, surgem acontecimentos que levam os meios de
comunicação a lembrar que existe uma coisa muito antiga chamada Bíblia, que ele
próprio traduziu para alemão. Agora parece que foi invocada, juntamente com o
código penal de 1886, pelos juízes Neto Moura e Maria Luísa Arantes, para
atenuar um crime horroroso contra uma mulher adúltera.
Não admira, dizia-me um leitor de
Saramago. A Bíblia está cheia de histórias escandalosas e de maus exemplos. O
diabo não precisa de ser muito pior do que um deus que mata e manda matar. Esse
livro parece escrito por um bipolar: passa facilmente do sublime ao detestável,
por vezes no mesmo salmo. No entanto, cuidadosamente encadernado fica bem numa
sala, ainda que pouco frequente numa casa portuguesa. Entre as dificuldades em
ler e interpretar esses textos antigos figura uma insistente ignorância ou
esquecimento: a Bíblia não é um livro!
Habituados, como estamos, a ver as
Sagradas Escrituras cristãs num só volume e a dar-lhes um nome no singular, a
Bíblia, somos levados a imaginar que é uma obra que um autor divino escreveu,
de fio-a-pavio, mas com mais heterónimos do que Fernando Pessoa.
Na verdade, não se trata de um livro,
mas de uma biblioteca formada por 73 ou 74 obras, segundo o cânone da Igreja católica,
e 66, segundo o cânone das Igrejas reformadas. Foi escrita ao longo de vários
séculos em diversos contextos geográficos, sociais e culturais.
Sem poder entrar aqui em pormenores,
convém lembrar o seguinte: quase dois terços dos livros da Bíblia cristã são
comuns ao cristianismo e ao judaísmo rabínico, herdeiro imediato das escrituras
do judaísmo antigo. Na verdade, o Antigo Testamento (AT) católico é mais vasto
e variado do que o TaNak e o AT das Igrejas reformadas que adoptaram o cânone judaico. A escrita dos
livros do AT católico durou cerca de um milénio. Teve como quadro essencial a
Palestina. É possível que alguns livros tenham sido escritos, em parte, na
Babilónia e outros no Egipto (em Alexandria).
A exegese histórico-crítica mostrou que
figuram no AT diferentes géneros literários e temas que são documentados nas
outras literaturas próximo-orientais do primeiro milénio a.C., em particular,
nas literaturas dos demais povos semitas [1].
2. Os juízes, se queriam referir-se à relação de homens e mulheres na
Bíblia, teriam de se aconselhar com o trabalho de investigação e de militância
das feministas que reexaminam não só a própria Bíblia, mas também a
interpretação que os homens fazem dela, tentando, muitas vezes, justificar e
perpetuar uma dominação ancestral, própria de sociedades patriarcais. A mulher
era propriedade do marido; a virgem, antes do noivado, propriedade do pai. O
adultério da mulher e a defloração de uma rapariga eram, antes de mais, um
atentado contra o direito de propriedade [2].
A exegese bíblica feminista assume-se
como instrumento de luta pela igualdade social. O seu objectivo expressa-se em
termos de emancipação ou de libertação das mulheres. Desse ponto de vista, a
leitura feminista da Bíblia é comparada e, em parte, comparável ao trabalho da
Teologia da Libertação.
Contrariamente ao que às vezes se
afirma, não foi a Bíblia que deu origem à subordinação das mulheres na
civilização ocidental. A subordinação era um traço das civilizações europeias
antes da chegada da Bíblia. Essas civilizações tinham esse traço em comum com
as civilizações do Próximo Oriente de que a Bíblia é uma expressão. O que a
Bíblia fez foi dar a essa prática a sua legitimação religiosa.
Sendo fruto da civilização ocidental, o
próprio feminismo é herdeiro da mesma Bíblia que deu caução religiosa à
supremacia dos homens sobre as mulheres. Por isso, é natural que a Bíblia ocupe
um lugar muito importante nos estudos feministas, mas as mulheres ainda estão
longe da paridade com os homens. Na Igreja Católica, intérprete autorizada da
Bíblia, a hierarquia continua a ser formada só por homens e, além disso,
celibatários [3].
O NT não legitima as atitudes
dominadoras do AT em relação às mulheres. Pelo contrário, elas estão incluídas
no espantoso universalismo cristão, sublinhado por Paulo: “Não há judeu nem
grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só
em Cristo Jesus” [4]. No Evangelho de Marcos, mostra-se que o homem pode ser
adúltero contra a mulher. Como nota Frederico Lourenço, trata-se de “um
desenvolvimento notável rumo à igualdade de género” [5].
Quanto à atitude de Jesus em relação ao
apedrejamento de uma mulher apanhada em adultério, aconselho a leitura das
admiráveis observações do mesmo autor ao texto atribuído ao evangelista João
[6].
Se houve mulheres que se emanciparam
para servir o projecto de Jesus, é porque esse projecto as incluía. O
Ressuscitado encarregou-as de evangelizar os próprios apóstolos. Daí que a
Maria Madalena tivesse sido designada como Apóstola dos Apóstolos.
3. Frederico Lourenço entregou-se a um empreendimento que julguei impossível,
quando foi anunciado: traduzir, do texto grego, o conjunto da Bíblia,
tradicionalmente conhecido pelo nome de Septuaginta, com apresentação, introdução e notas
dos vários livros. Sobre a significação, a originalidade e as explicações
acerca da Bíblia Grega, o tradutor encarregou-se de nos elucidar logo no Vol.
I, consagrado aos Quatro
Evangelhos, em 2016. Em 2017, surgiram o Vol. II, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, e o Vol. III, Os
Livros Proféticos. Este, em Outubro. É o segundo
acontecimento mais importante do ano para todos os que julgam que a ignorância
do mundo bíblico não é obrigatória.
Francolino Gonçalves, O.P., morreu a 15
de Junho deste ano, na Escola Bíblica de Jerusalém, na qual viveu, investigou e
ensinou, durante mais de 40 anos. Segundo alguns confrades, sofreu muito por
não poder continuar as investigações do AT, que tinha em mãos, especialmente do
universo profético, bíblico e extra bíblico, de que era um reconhecido
especialista. Tenho muita pena que ele não pudesse acompanhar a obra
impressionante de Frederico Lourenço, que lhe daria grande alegria.
[1] Para as informações fundamentais sobre
os mundos em que se formou e desenvolveu essa biblioteca, ver o amplo e
rigoroso estudo de Francolino J. Gonçalves, Mundos bíblicos, Cadernos ISTA, n.º 18, 2005, pp 7-34.
[2] Ex 20,14; 22,15-16; Lv 20,10; Dt 5,21; 22, 22-29; Ez 16, 38-40.
[3] Cf. Francolino J. Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Bíblica Pontifícia, As mulheres na Bíblia, Cadernos ISTA, n.21 (2008), pp 109-158
[4] Gal 3, 25-28
[5] Mc 10, 1-12 e nota ao v. 11.
[6] Jo 8, 1-11; cf. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, pp.357-360
[2] Ex 20,14; 22,15-16; Lv 20,10; Dt 5,21; 22, 22-29; Ez 16, 38-40.
[3] Cf. Francolino J. Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Bíblica Pontifícia, As mulheres na Bíblia, Cadernos ISTA, n.21 (2008), pp 109-158
[4] Gal 3, 25-28
[5] Mc 10, 1-12 e nota ao v. 11.
[6] Jo 8, 1-11; cf. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, pp.357-360
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