1. No passado
Domingo, o Público apresentou uma deliciosa
reportagem[1] sobre as celebrações
dominicais promovidas e orientadas por leigos, mulheres e homens e um oportuno
editorial de Lurdes Ferreira, sobre O
tempo dos leigos.
As trapalhadas com os ministérios na Igreja afectam,
sobretudo, a celebração da Eucaristia e são uma dificuldade para a
hospitalidade eucarística entre as Igrejas cristãs[2].
Na reportagem sobre as pessoas que tomam a iniciativa de
reunir e formar uma comunidade que não tem ministros ordenados para presidir à
Eucaristia, por que razão não poderá o bispo ordenar alguém que é reconhecido
como competente e zeloso na formação e no crescimento dessa mesma comunidade?
Edward Schillebeeckx[3] tentou, em 1980, uma solução
para o serviço de presidência da Eucaristia, nas comunidades eclesiais. Aparentemente
não correu bem, mas ele não desistiu. Esse caminho é, neste momento, aquele que
nos pode abrir um presente e um futuro para a vida eucarística das comunidades
católicas. Em nome de uma disciplina canónica inadequada, estamos a deixar as
paróquias, os grupos e os movimentos católicos à deriva. Insiste-se na
celebração da Eucaristia como o sacramento dos sacramentos. Com toda a razão.
As comunidades de baptizados têm direito a participar na sua celebração. De
facto, arranjam-se cenários para as impedirem. O pretexto é sempre o mesmo: não
há padres. Se não há, façam-nos. Não faltam candidatos e candidatas preparados,
ou que podem ser preparados, com desejo de receberem esse ministério. Mas não
nos moldes actuais. O modelo presente já não pode ser o único. Sem imaginação, sem
vontade de alimentar e dinamizar as comunidades católicas, as lideranças da
Igreja só se podem queixar de si mesmas.
Importa entender o percurso e as razões deste dominicano
holandês para perceber duas coisas: nunca se conformou com os obstáculos
criados às reformas propostas pelo Vaticano II, nem se contentou com repetir os
seus documentos. Procurou inovar e não se resignou perante os repetidos
processos que Roma lhe moveu, sem nunca o conseguir condenar.
2. O primeiro
processo foi sobre as suas posições acerca da secularização (1968). Soube, por
um amigo, K. Rahner, que estava a ser perseguido. Este tinha recebido do Santo
Ofício, sob sigilo rigoroso o material dessa acusação. Rahner violou esse grave
sigilo porque, dizia, o direito natural vale mais do que uma medida
eclesiástica! No final do processo, confidenciou-lhe: apesar de tudo, dois
terços dos consultores da Congregação partilhavam as ideias do acusado!
O segundo processo foi sobre a sua cristologia (1979).
Respondeu a todas as questões que lhe enviaram em 1976, mas em 1978 já estava
com outro processo às costas e teve de ir a Roma esclarecer a sua posição.
Nessa altura, eu estava em Roma e conhecia muito bem um dos
professores que o iriam examinar. Lembro-me de Schillebeeckx ter declarado: o
que se passar nesse interrogatório será comunicado aos jornalistas, o que
aconteceu. Não foi condenado, mas recebeu, em 1980, uma carta para novos
esclarecimentos. Havia uma distinção entre as posições da Congregação e as de
Schillebeeckx, mas não acerca da fé cristã. O pior estava para vir.
Em 1984 surge um terceiro processo. Neste caso sobre os
ministérios na Igreja. A questão de fundo era a que ainda hoje nos perturba: o
serviço de presidência da Eucaristia. Ele defendia um ministério extraordinário
quando não houvesse padre ou bispo para esse serviço. O cardeal Ratzinger
perante o relatório de teólogos holandeses sobre o livro de Schillebeeckx,
publicou uma carta que excluía a posição desse teólogo e acrescentava que era
um assunto que já tinha sido resolvido no IV Concílio de Latrão: só os padres
podiam presidir à celebração eucarística. O assunto estava arrumado. Essa
recusa não convenceu o teólogo flamengo observando que Ratzinger esquecia que o
objecto desse Concílio era a exclusão dos diáconos que substituíam o bispo,
quando este não podia estar presente.
O professor de Nimega não se dá por vencido e escreve um
novo livro no qual já não fala do ministro extraordinário da presidência da
eucaristia, mas apela para uma outra categoria, para dizer a mesma coisa. Pede
uma espécie de sacramento para os agentes de pastoral, a fim de poderem receber
uma ordenação, no quadro dos ministérios sacramentais. Se não desejam soluções
extraordinárias, sigam o caminho do que deve ser normal.
3. No final desses
processos, perguntaram a Schillebeeckx se tinha sofrido muito. Não, outros
sofreram mais. Mas quando soube, por K. Rahner, que estava ser objecto de um
inquérito, sem saber porquê, disse-lhe: “eis a recompensa reservada aos que
trabalham, dia e noite, para a Igreja! Depois, tudo aquilo me irritou. Nós, os
teólogos não somos infalíveis, mas há maneiras e maneiras de tratar as pessoas”.
Quando lhe perguntam se tinha pensado em abandonar a Igreja
e sair da Ordem, respondeu: “Nunca. Nunca. Pertenço à Igreja Católica Romana,
mas isso não significa que esta Igreja não possa cometer erros. De facto,
comete. É preciso ter coragem de o dizer. Abandonar a Ordem dos Dominicanos?
Nunca pus em questão a escolha que fiz aos 19 anos. Para concluir este capítulo
dos processos tenho de dizer: nunca recebi qualquer tipo de condenação até
agora e espero nunca receber. Apesar destas aventuras, sou feliz por pertencer
à Igreja e à Ordem Dominicana”.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 21.01.2018
[1] Margarida David Cardoso, Ou Rosa dava a “missa” ou a igreja fechava,
[2] Cf. Frei José Nunes, Ministérios Laicais no Novo Testamento e
primeiros séculos da vida da Igreja, in
Laicado Dominicano e a pregação, XII Jornadas Nacionais da família
dominicana, Fátima, 8 a 10 de Novembro de 2013; D. Borobio, Ministérios Laicais, Ed. Perpétuo
Socorro, Porto 1991; J. Estrada, La
identidad de los laicos, Paulinas, Madrid, 1990; A. Faivre, Naissance d’une hiérarchie, Beauchesne,
Paris, 1977; Pierre Bühler, Foi o Papa e
não Lutero quem provocou a rutura (entrevista de António Marujo, Revista
Expresso 6 de Janeiro 2018)
[3] Edward Schillebeeckx, Je suis um théologien heureux, Paris, Cerf,
1995
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