1. Com verdade ou maldade,
ouvi repetir, desde há vários anos, que para os meios de comunicação, sobretudo
para as televisões, os incêndios representam uma bênção. Fazem subir as audiências
sem grandes custos, alimentam a morbidez pelos desastres, intoxicam o país de irremediáveis
opiniões contraditórias e paralisantes. A visão dos nossos recursos, potencialidades
e lacunas é substituída pelo espectáculo das chamas. Resta a conversa sobre as responsabilidades
do Estado, cada vez mais diluídas e transnacionais, os interesses das empresas
privadas, a desertificação do interior e os aproveitamentos partidários de
circunstância. O reordenamento do território com a participação activa das populações
é o tema nunca esquecido e sempre adiado. As suspeitas de fogo posto e as
capacidades da lua incendiar a noite são enigmas recorrentes.
Se os meios de comunicação ajudam
a fixar, em cada ano, os bodes expiatórios de serviço, não me parece que sejam
eles os responsáveis pelo nevoeiro e escuridão que envolvem as explicações de um
fenómeno que todos confessam ser muito complexo, acumulando anos de desatenção,
que, agora, poderia ser resolvido por relatórios de alguns peritos ou por
decreto presidencial ou governamental.
Antes de entrar noutras questões não
posso, no entanto, evitar uma pergunta: querem os meios de comunicação contribuir
para sarar as feridas das vítimas ou continuar a dificultar a sua cicatrização?
Quem se mostrou pouco convencido
da eficácia da repetição das imagens da tragédia foi António Leuschner,
psiquiatra e presidente da comissão de acompanhamento, na área da saúde mental,
das populações afectadas pelos incêndios de Pedrógão Grande. Numa lúcida entrevista
ao Público (24.12.2017), mostrou que
o excesso de manifestações emocionais, em vem vez de ajudar, pode dificultar a
recuperação psicológica das pessoas mais afectadas. Defende atitudes de
sabedoria.
“Acho bem que as pessoas não se distanciem com
frieza, devem dar sinais de que estão solidárias. Mas o pior que pode haver
para um decisor é deixar-se afectar demasiado pela emoção, porque corre o risco
de errar. Nem oito, nem oitenta. Nem excesso de emoção nem gelo ”.
Como psiquiatra, observa que apesar de tudo há
muita gente que já deu a volta e que ninguém se suicidou. Algumas situações
mais graves foram encaminhadas para a psiquiatria. Foram excepções.
António Leuschner pensa que a
divulgação das circunstâncias em que 64 pessoas morreram em Pedrógão pode ter
mais efeitos maléficos do que benéficos. É altamente patogénica porque desperta
sentimentos que não ajudam as pessoas. Sem acusar ninguém, lembra que estar a
recordar tudo passado um mês, dois, três, quatro, cinco, seis meses, não faz
bem às pessoas, não contribui em nada para a felicidade de quem sofreu muito.
Este psiquiatra ainda está para
perceber a importância da divulgação do famoso capítulo sexto do relatório do
investigador Domingos Xavier Viegas. “Pode ter importância para a investigação,
para as autoridades judiciais, para se perceber o que correu mal, mas divulgar
os detalhes… confesso que ainda não consegui entender o que é que se ganha com
isso. Receio que tenha mais efeitos maléficos do que benéficos”.
2. Em Setembro de 2012, publiquei, neste espaço, uma crónica
intitulada Queimar o País? Tinha-se sofrido
um Verão terrível. Procurei, nessa crónica, alertar para a responsabilidade
ecológica dos cristãos. Lembrava que a participação na Eucaristia dominical devia
obrigar os católicos a não passarem ao lado das questões ecológicas e sociais
localizadas. É o próprio Ofertório da missa que implica a aliança indissolúvel
entre a sua dimensão material e espiritual: “Bendito
sejas Senhor, Deus do Universo, pelo pão e pelo vinho que recebemos da vossa
bondade, frutos da terra e do trabalho humano que hoje Vos apresentamos e que
para nós se vão tornar pão da vida e vinho da salvação”.
Sem a integração, semana a
semana, das tarefas com que tecemos o nosso dia-a-dia, traímos o sentido cósmico
da celebração da Missa e esquecemos que “tudo tem a ver com tudo”. É nela e por
ela que, no contexto de cada comunidade local, dizemos e alimentamos o sentido cristão
da história humana e da vida espiritual de cada participante.
Por causa dessa crónica fui
convidado a participar num colóquio que me chocou profundamente. Reuniu pessoas
de reconhecida competência científica e outras com interesses económicos
respeitáveis. Talvez pela minha incapacidade de observação, pareceu-me que o
país tinha sido o grande ausente.
3. Como se pode observar no Google, não faltaram colóquios antes e
depois das tragédias do passado verão. Não duvido que vão ser muito úteis a
médio e a longo prazo, mas a urgente mudança de mentalidade e de costumes, talvez
exija métodos mais rasteiros. Na minha ingenuidade, vou continuar a crónica de
2012, com outras perguntas e sugestões. Em 2015, o Papa Francisco publicou a
Carta encíclica Laudato Si. É um
alerta para a Igreja e para a humanidade sobre a responsabilidade de todos no
cuidado da Casa Comum. Enquanto
católicos portugueses, temos o dever de assumir e interrogar o que fizeram e
fazem os bispos portugueses nas suas dioceses, os párocos nas respectivas
paróquias, que iniciativas lançaram nas suas intervenções? Mas não só. Que
fizeram os responsáveis pela orientação ecológica da catequese e, no mesmo
sentido, quais são os programas dos colégios católicos, da Universidade
Católica, dos movimentos nacionais e diocesanos, da Rádio Renascença, das
congregações religiosas para fazerem uma virtuosa
mudança climática no país, isto é,
vencer a indiferença?
Não vale a pena, no fim do Verão,
lamentar a ausência das comunidades locais na prevenção e nos cuidados a ter
para que não se repita o que poderia ter sido evitado.
Aqui vai uma sugestão que precisa
de diferentes desenvolvimentos. Começaria por desenhar, com alertas bem
visíveis, em cada lugar, um mapa que assinalasse o que é urgente e possível
fazer já, ao nível da prevenção, pelas próprias populações, com a ajuda do
poder local, regional ou nacional, se for o caso.
Nesta sugestão, ao referir em
cada local, é para se ter, de norte a sul do país, todo o território marcado de
tal forma que não se continue com a conversa fiada sobre o nosso crónico défice
democrático. Como fazer?
Voltarei ao assunto, mas a
prática para que este texto aponta não precisa de esperar.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 07.01.2018
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