1. Encontrei, em várias intervenções de
Thierry-Dominique Humbrecht[i] e no título de um dos seus livros, A
evangelização impertinente, a sugestão para esta crónica, ainda que com
desvios.
O autor referido pretende escrever um
guia do cristão nos países pós-modernos. Teve bom acolhimento. Não se
conforma com a moleza das expressões da presença cristã em algumas sociedades
ocidentais. Não é preciso estar inteiramente de acordo com o seu diagnóstico
nem com as suas propostas. É mais importante suscitar um debate do que
apresentar soluções para cristãos apressados e preguiçosos.
Th-D. Humbrecht é um investigador da
filosofia medieval e já deu provas da sua acutilância analítica. Não se
resigna, porém, a viver na sua torre de marfim do passado, nem se conforma com
o silêncio dos católicos nos actuais debates que percorrem a sociedade. O cristão
parece intimidado, excluído da cultura, dando a impressão de que não se deixa
interrogar pela gravidade do que está acontecer. Ao julgar irremediável que o
país deixe de ser cristão, não se apercebe que existe uma estratégia, dita
pós-moderna, interessada em libertar-se dessa herança. O niilismo exibido
esconde, no entanto, um projecto de poder, por vezes, também, uma nostalgia.
Tendo em conta esse ambiente, que
abrange uma grande complexidade, como é que um cristão se pode situar entre a
compaixão, a cumplicidade e a contracultura? Perante os cortes na transmissão
do que há de vivo no passado, o abandono de muitas heranças, a ditadura do
relativismo e certo ateísmo católico, muitos cristãos têm a impressão de que o
grande navio se tornou uma simples barcarola.
De facto, o próprio cristão cede
muitas vezes a essa lógica: escolho o que me apetece e deixo de lado o que
não me interessa. Nestas condições, como fazer ouvir o Evangelho? Pela
palavra ou pelo exemplo? E onde: na família, na educação, na política, na
cultura?
Entre a laicidade mal compreendida e
os vãos apelos ao milagre, o caminho da providência é o que se baseia na nossa
coragem pública. O cristão tem algo de insubstituível a dizer aos seus
contemporâneos. Não há Igreja sem evangelizadores impertinentes, que ofereçam
uma mensagem de esperança para tempos de relativismo.
Para o conseguir, é preciso
desembaraçar-se de um paradoxal anti-intelectualismo. O cristão deve, pelo
contrário, cuidar a sua formação e tornar-se competente sob o ponto de vista
intelectual. Por isso, os jovens cristãos devem preferir profissões criativas,
em todas as suas expressões, àquelas que acenam apenas com sucesso pessoal no
campo financeiro.
O filósofo dominicano Th. D.
Humbrech, professor em várias universidades, inconformado com a incultura do vale
tudo e o seu contrário, luta por uma viragem cultural, por um
catolicismo competente no campo literário, artístico, filosófico, teológico,
espiritual, ético e político.
2. Agrada-me esta vontade de acabar com um catolicismo
culturalmente envergonhado e complexado. Detesto, porém, todas as derivas de
compensação que vão desaguar no catolicismo fundamentalista, em nome da
verdadeira doutrina da Igreja e se esgota na falsa tranquilidade dos catecismos
e do Direito Canónico. A fé cristã não se fixa nas formulações dos credos. É
uma entrega ao infinito amor de Deus que nenhuma expressão O pode limitar. O
místico é aquele que não pode parar. É uma viagem permanente, sem apeadeiros,
sem estações definitivas, até chegar à plenitude da alegria de Deus.
A fé é um activador da criatividade,
não um extintor. Tomás de Aquino insistiu sempre em que uma coisa é recitar os
credos da ortodoxia, outra é procurar entender Aquele a quem nos confiamos.
Recitar o Credo sem procurar responder à questão: como é que é verdade
aquilo que confesso ser verdade?, posso ser muito ortodoxo, mas sou uma
cabeça vazia.
Também não basta ler os textos e as
narrativas do Novo Testamento (NT). A letra mata, só o espírito do texto
vivifica. Quando um padre ou um bispo faz uma homilia a repetir a leitura que
já escutámos, bem podia ficar calado. É fundamental entrosar as narrativas
bíblicas com as experiências actuais da fé, na encruzilhada dos problemas
vividos na sociedade.
O Concílio Vaticano II, tão esquecido,
lembrou que «é dever da Igreja investigar, a todo o momento, os sinais dos
tempos e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de
modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos seres humanos acerca do
sentido da vida presente e futura e da relação entre ambas. É, por isso,
necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e
aspirações, o seu carácter tantas vezes dramático[ii]».
A criatividade da fé cristã não se
pode manifestar, apenas, nas expressões teológicas e na poesia mística.
Pertence-lhe activar e exprimir-se em todas as grandes formas de criatividade
humana: literatura, artes plásticas, encenações teatrais, cinema, bailado,
humor e, sobretudo, música. Dentro e fora da liturgia.
Não é preciso nenhum mandamento
divino para justificar esta atitude. Como dizia Tomás de Aquino, o bem deve
ser praticado porque é bem e o mal devia ser evitado porque é mal.
3. Não podemos esquecer a impertinência do
Evangelho de Jesus Cristo. Se tivesse sido mais acomodado podia ter tido uma
carreira brilhante. O diabo do poder de dominação económica, política e
religiosa bem o tentou e o Nazareno não tinha o fascínio de João Baptista pela
austeridade. Ele gostava da vida. Tinha o defeito de não suportar ver uns à
mesa e outros à porta; uns como povo de Deus e outros não se sabe de quem; uns
classificados, à partida, como santos e outros como pecadores; uns
privilegiados porque eram homens e outras marginalizadas porque eram mulheres.
Tinha a impertinência de
gostar da vida para todos, desenvolvendo as potencialidades humanas e os
talentos, sem discutir se estavam bem ou mal distribuídos. Tinha ainda um outro
defeito: detestava a ganância e o carreirismo. Os discípulos que escolheu
andavam sempre a perguntar-lhe o que ganhavam na sua companhia e o lugar que
lhes estava destinado. Um dia teve de pôr tudo em pratos limpos, mas sem grande
sucesso.
O Evangelho de S. Mateus[iii],
fruto de muita reflexão e de muita experiência pós-pascal, quis deixar, em três
parábolas, algo de extraordinário: a importância da lucidez contra o deixar
correr, a importância de ninguém se desculpar por não ser um génio, mas não há
nenhuma ciência nem nenhuma capacidade de fazer fortuna que não tenha de olhar
para o lado e ver os que ninguém cuida.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público,
29.04.2018
[i] Thierry-Dominique Humbrecht, O.P., L'évangélisation
impertinente. Guide du chrétien au pays des postmodernes, Paris, Parole
et Silence, 2012 (3e édition).
[ii] Gaudium
et Spes, 4
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