ENTREVISTA ENZO BIANCHI
“As mulheres devem estar nos lugares de decisão da
Igreja”
O teólogo que fundou a
comunidade monástica de Bose, Itália, mantém-se fiel à ausência de hierarquias.
Procura a “espiritualidade a sério” e já ensinou um chef a confeccionar ovos
pelo tempo de uma ave-maria. Bianchi não hesita ao dizer que “é estúpido querer
saber se o inferno está vazio ou cheio”.
Ao fim de 50 anos, a comunidade monástica de Bose, em
Itália, continua a ser uma experiência singular na Igreja de coexistência entre
homens e mulheres de várias confissões cristãs. O seu fundador e prior, Enzo
Bianchi, é uma voz activa na dignificação do papel da mulher na Igreja e diz
que o papa Francisco “tem, de verdade, no coração a promoção da mulher”.
São palavras proferidas poucos dias antes de Francisco
ter nomeado três mulheres como consultoras para a Congregação para a Doutrina
da Fé. Pela primeira vez na história da Igreja, as mulheres ascendem a este
cargo e passam a ser maioria (três em cinco) neste órgão que já foi a
Inquisição.
A entrevista com Enzo Bianchi, que esteve em Lisboa
com o filósofo Massimo Cacciari para uma das Lições Italianas organizadas pelo
Instituto Italiano de Cultura e o Citer (Centro de Investigação em Teologia e
Estudos de Religião da Universidade Católica), é uma parceria do PÚBLICO
com este centro universitário.
Qual é, para si, a principal mensagem da recente
exortação apostólica do papa Francisco, Gaudete et Exsultate?
A mensagem central que eu identifico na Gaudete et Exultate é
o destaque de que o verdadeiro santo cristão é um santo quotidiano, é um santo
da vida normal, não é um herói, mas simplesmente quem na vida quotidiana, onde
quer que se encontre, pode muito bem praticar o seguimento de Jesus Cristo, e
vivê-lo a partir dos seus sentimentos, com as suas atitudes, com as suas
preferências. Toda a vida humana é atravessada por fragilidade, por pecado, por
contradições, mesmo aquela que tenta conformar-se à vontade de Deus. Mas é esta
tentativa, este empenho, este esforço de amor que é a santidade comum. O papa
chama-lhe “santidade ao pé da porta”, quase a convidar-nos a vê-la naqueles que
habitam o mesmo condomínio, o mesmo alojamento, a reconhecê-la em vidas que são
quase escondidas, que não têm nada de extraordinário, que não têm nada de
heróico, mas podem igualmente ser vidas de observância e santidade cristã.
É isso a que papa se refere quando fala da “classe
média da santidade”?
Não é que o papa peça uma vida média, no sentido de baixa, ou que não tenda
verdadeiramente para uma santidade que seja plena. Porém, é como se dissesse
que a santidade não é um projecto que o homem elaborou por si composto por uma
construção de esforços heróicos e de méritos. A santidade é algo que Deus faz
sobre as nossas vidas, as nossas vidas comuns, porque Deus purifica-nos dos
nossos pecados e perdoa-nos. E dá-nos a força para arrostar as dificuldades. E
nesta dinâmica, creio eu, está a classe média da santidade, como lhe chama o
papa.
As duas heresias de que o papa fala na sua exortação,
o gnosticismo e o pelagianismo – hoje raras de se ouvir -, são uma resposta aos
críticos conservadores?
Certamente, o papa está a falar de duas tentações que estiveram sempre
presentes ao longo da história da Igreja e estarão sempre presentes. Na
história do cristianismo sempre se deram estas duas visões contrapostas, e
ambas não correspondentes à verdade do Evangelho: de um lado, a ideia que tudo
depende do homem, da vontade, simplesmente daquilo que ele faz, das suas obras;
de outro lado, a ideia que a salvação é toda questão de conhecimento intelectual,
de compreensão.
Ora, o papa estigmatiza estes dois vícios permanentes,
que renascem sempre no seio do cristianismo, mas não lhe pertencem,
diferentemente das outras religiões que não vêem problema nisso. Exactamente
porque tem esta fé no amor de Deus gratuito e preveniente, o cristianismo é
profundamente crítico em relação seja ao gnosticismo, como ilusão que o
conhecimento possa tornar-se meio de salvação, simplesmente como compreensão,
sabedoria, seja ao pelagianismo, à soberba confiança na auto-suficiência das
obras do homem.
Certamente nestas duas tentações encontram-se também
críticos do papa Francisco, porque de um lado ele é mal aceite por um certo
intelectualismo católico que se alimenta de uma teologia decerto altíssima, mas
que acaba por confiar mais em preceitos doutrinais que não na força do
Evangelho e, portanto, o papa estigmatiza-os.
Por outro lado, há uma resistência contra o magistério
do papa que vem de uma atitude própria de alguns sectores conservadores, os
tradicionalistas, que tendem a ver a santidade simplesmente como o resultado
dos esforços das pessoas. Assim, mesmo a liturgia, perdida no mundo
tradicionalista, torna-se não uma via de salvação na qual Deus perdoa os nossos
pecados e nos acolhe na nossa miséria, mas torna-se simplesmente um trajecto
para alcançar a comunhão com Deus que devemos merecer através de uma série de
ritos, de observâncias minuciosas, como se isso fosse decisivo para a salvação
do homem.
Diz que o teísmo o assusta. Porquê?
O deísmo é a afirmação de Deus como uma entidade meta-histórica, alheia à
contingência que, ao contrário, é núcleo essencial da encarnação de Jesus
Cristo, que é algo que podia não haver, é um acontecimento de liberdade
radical. Pascal dizia por isso, com razão: “É melhor o ateísmo que o deísmo .”
Ora, também nós, porém, os católicos, estamos um pouco
doentes de deísmo. Estamos presos numa tradição doutrinal em que primeiro
afirmávamos Deus em si e, depois, afirmávamos Jesus Cristo. Mas este dualismo
vem de um modelo cultural exterior ao cristianismo, que se aninhou nele. O que
constitui o cristianismo é a absoluta centralidade de Jesus Cristo, a via, o
caminho aberto por Jesus – “Eu sou o caminho”. Para chegar a Deus passamos por
Jesus Cristo. O nosso Deus é o Deus de Jesus Cristo. Tudo isto faz, sim, que o
teísmo, quando é afirmado de uma maneira autónoma em relação à cristologia,
torna-se realmente uma espécie de deísmo e assim um grande problema para a fé.
E creio que hoje há sectores culturais da Igreja que estão ainda ligados a um
racionalismo metafísico que contorna o tema da encarnação, não o leva a sério.
A fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado dissolve-se assim numa religião
desencarnada da história, num deísmo que mata a verdade central do
cristianismo, que é Deus feito homem, feito carne.
Como vê a possibilidade da comunhão dos recasados?
Este tema, que, claramente, foi tratado pela [exortação] Amoris
Laetitia, pelo Sínodo e pelo papa Francisco, é um tema, sem dúvida, não
fácil, porque temos por trás um tempo em que precisamente se fazia crer às
pessoas que os divorciados estavam excomungados. Os divorciados nunca estiveram
excomungados pela Igreja. Havia em relação a eles uma disciplina de não
admissão aos sacramentos, mas excomungados nunca estiveram. No entanto, no
pensamento popular, pensava-se que eles estavam excomungados. E o papa
justamente, e não simplesmente por uma condição de contingência, porque hoje os
católicos divorciados são muitos, mas precisamente a partir de uma reflexão
sobre o Deus que é misericórdia, abriu um caminho de acolhimento que não
significa que os divorciados possam fazer automaticamente a comunhão. Isto não
é verdade, porque fica assente o princípio doutrinal de que a fidelidade
matrimonial é um dever absoluto, com o fundamento sobre uma palavra de Jesus no
Evangelho, não é alguma coisa de que a Igreja possa dispor.
O que o papa diz é que em certas condições, em certas
situações, em que não se pode refazer uma história de fidelidade com o cônjuge
anterior, em que se desenvolveram todas as exigências de justiça para com o
outro cônjuge, e para com os filhos, e se há uma vida cristã e se há uma vida
eclesial, quando todas esta condições são cumpridas, então deve ser dada ao
recasados a possibilidade de iniciar um caminho que seja, antes de mais, de
penitência, mas que, ao mesmo tempo, leve a usufruir dos dons que Deus nos dá
nos sacramentos, e sobretudo na eucaristia, porque o papa Francisco repete o
que tinha dito Bento XVI ao declarar que já o Concílio de Trento tinha
estabelecido “A eucaristia não é um prémio para os bons, para os justos, mas é
um dom oferecido para a salvação dos pecadores”. O Concílio tridentino, que
decerto tem por trás a tradição católica, afirmou vigorosamente que a
eucaristia é um sacramento para a remissão dos pecados, portanto, remite também
os pecados. Tudo isto faz, assim, que, em certas condições, através do trabalho
de discernimento, haja a possibilidade de os divorciados estarem na mesa da
eucaristia. Mas esta não é uma lei geral e automática, prevê e requer caminhos
de purificação espiritual. Para sintetizar: o que se dá é uma mudança de uma
disciplina da Igreja, não uma modificação da sua fé ou da sua moral.
Qual é o significado de uma exortação apostólica que
defende claramente a mulher, a exalta, falando até de um “génio feminino”, e a
liga a períodos muito difíceis da história da Igreja?
Creio que o papa Francisco tem, de verdade, no coração a promoção da mulher e o
desejo profundo que na Igreja haja esta possibilidade real de a mulher poder
ser verdadeiramente um sujeito e não simplesmente uma destinatária, porque, de
facto, está na hora de a mulher não estar na Igreja unicamente como corpo
discente, mas ser parte de uma Igreja magisterial. Devo dizer francamente,
todavia, que esta expressão “génio feminino”, que se deve a João Paulo II, não
me satisfaz, assim como não agrada a muitas mulheres. Porque para haver um
génio feminino, então deve haver um génio masculino, e entramos num jogo de
distinções, algo vão.
No mundo ocidental estamos a viver
um destes momentos de anestesia social e histórica. O problema é que todos,
inclusive os jovens que geralmente são uma força de transformação, hoje estão
muito homologados por esta cultura da sociedade de consumo.
Enzo Bianchi
Creio que devemos estar atentos à retórica que às
vezes a Igreja usa, sobretudo em relação às mulheres e em relação aos jovens. A
retórica é geralmente inimiga da mudança real de atitudes e um reconhecimento
daquela metade do mundo que são as mulheres, não pode passar apenas por grandes
palavras, mas antes de mais pelos factos.
No seu livro Jesus e as Mulheres, fala
dessa espiritualidade e da dificuldade da Igreja em aceitar a mulher. De que tem
medo a Igreja, ao certo?
Eu escrevi Jesus e as Mulheres exactamente para poder dizer
que é absolutamente necessário procurar no comportamento e no estilo de Jesus
em relação às mulheres alguma coisa que inspire também a praxis da
Igreja hoje.
Jesus teve discípulos e teve discípulas, teve um
discípulo amado e teve uma discípula amada, Maria de Magdala. No final do
Evangelho é Maria de Magdala a primeira a receber e transmitir a mensagem da
ressurreição, o que faz dela uma apóstola dos apóstolos. Mas para definir o
papel da mulher na Igreja não podemos focar-nos unicamente em Maria de Magdala,
mas dar adequado relevo ao conjunto da palavra e dos actos de Jesus. Jesus
viveu uma vida normal, entre o seu povo, em que procurou remover todos aqueles
tabus e todas aquelas proibições que impediam uma verdadeira comunicação com as
mulheres e que as retinha, mesmo às crentes, numa situação de menoridade em
relação aos homens. Jesus enfrentou, combateu esses tabus, rompeu barreiras e
há nos evangelhos tantos exemplos desta determinação e, no meu livro, estão
todos descritos e comentados. Eu estou convencido de que a Igreja deve ter a
coragem de iniciar este caminho na sequela de Jesus e que o primeiro passo deve
ser de dar a palavra às mulheres.
Termino, dizendo sobre a Igreja e as mulheres, que
para que as mulheres façam parte da Igreja no papel de plena igualdade e
dignidade que Jesus Cristo lhes reconheceu, para que as mulheres não se tornem
uma parte em falta da Igreja, (o que é um risco crescente), é preciso que elas
possam tomar a palavra. Isto é para mim o essencial: as mulheres devem estar
nos lugares de decisão da Igreja, porque é preciso escutá-las. Há um princípio
na tradição cristã: o que respeita a todos deve por todos ser tratado, meditado
e deliberado. Não se pode pensar que isto não diz respeito às mulheres, que são
a metade da humanidade.
Por consequência, creio que se requer uma mudança
radical, que suscita um grande medo em muitos, porque a Igreja é ainda muito
clerical e os homens, sem dúvida, monopolizam os postos de poder, são eles que
estão habituados há séculos a decidir e a representarem eles a Igreja e a não a
deixarem representar também por uma mulher. São hábitos de séculos que devem
ser mudados e tudo isto faz com que o caminho seja muito, muito difícil e
custoso. Mas devemos sair da retórica mais depressa e dar passos muito concretos
de forma que as mulheres se sintam verdadeiramente implicadas na vida eclesial
como sujeitos e em plena igualdade.
Há condições neste momento para uma mudança?
Agora, para uma mudança com vista à ordenação das mulheres, não creio que haja
condições, porque isto, por um lado, é um problema ecuménico que deve ser
resolvido com a Igreja Ortodoxa e hoje não há maturidade do povo cristão para
pensar que haja ordenações presbiterais dadas às mulheres. Mas ao lado desta
questão há todo um caminho a fazer. Penso por exemplo, em quantos organismos
poderiam ser confiados às mulheres e não serem simplesmente monopólio dos
homens, clérigos e leigos. Se abríssemos este caminho, dar-se-ia sem dúvida uma
mudança radical da condição de sujeição das mulheres na Igreja.
A comunidade de Bose é uma comunidade monástica
singular, juntando homens e mulheres de várias confissões cristãs. Quantas
confissões cristãs tem hoje Bose e quantos elementos?
A comunidade de Bose compõe-se de cerca de noventa membros, homens e mulheres.
Os católicos constituem certamente a maioria, mas temos também um número
significativo de membros das diversas igrejas da Reforma, e um pequeno núcleo
de ortodoxos. A composição da comunidade de Bose é, decerto, igual à da Igreja
actual e, para nós, isto é muito importante porque, em comunidade,
experimentamos uma espiritualidade a sério, que sem fazer compromissos nem
sincretismos, se alimenta de todas as tradições eclesiais e se enriquece com
estas. É uma grande graça, e nós, agora, fazendo isto há 50 anos, vemos que
esta comunhão no pluralismo das tradições é possível, que não é só fonte de uma
reconciliação, mas que é possibilidade de um caminho comum e de uma única
confissão do Senhor Jesus.
Ao fim de todos estes anos, qual é a principal
experiência de que Bose é testemunho?
Não creio que tenhamos um carisma especial, porque estamos no interior da regra
monástica. Certamente o nosso caminho teve dois elementos característicos que
foram escolhidos como resposta a uma urgência que reconhecemos na altura da
nossa constiuição e que se confirmaram como aspectos centrais da nossa
experiência comunitária. O primeiro é a lectio divina (leitura
orante da Bíblia), que fomos efectivamente nós a redescobrir no princípio dos
anos de 1970 como praxis eclesial de primária importância e
que a seguir se divulgou crescentemente na Igreja até que hoje ela é
expressamente recomendada pelos papas. A revitalização da antiga tradição
monástica da lectio divina é reconhecida como um marco da
nossa comunidade e muitos vêm ainda a Bose, porque em Bose se pratica a lectio
divina, porque em Bose todos os dias há a lectio divina e
porque as nossas vidas são plasmadas por ela.
A outra característica peculiar da nossa experiência é
a coexistência de homens e mulheres. É decerto uma mensagem positiva, passados 50
anos desde a fundação da comunidade, não ter havido escândalos, nem situações
difíceis, não houve ‘embaraços’, o que prova a nossa intuição de partida:
homens e mulheres podem viver em conjunto, escolhendo consagrar-se inteiramente
a Deus. O fruto deste convívio é uma certa maturidade afectiva, uma normalidade
humana importante. Sermos homens e mulheres na Igreja, na comunidade, não deve
tornar-se um factor de separação e de sujeição de alguns aos outros, mas deve
afirmar-se como um enriquecimento recíproco, como a construção de um caminho
comum.
Tudo isto tem um significado peri-monástico que
caracteriza Bose como uma forma de monaquismo numa sociedade secularizada. Um
monge teólogo da grande abadia beneditina de
Sainte-Marie-de-la-Pierre-qui-Vire, Ghislain Lafont, creio que era jovem quando
disse que o monaquismo de Bose é o primeiro monaquismo que conseguiu
inculturar-se numa sociedade secular. Creio que isto será o que decerto Bose
deu, dá, e esperamos que possa ainda dar nos anos próximos.
O que atrai os jovens que vão a Bose?
Temos efectivamente a presença de muitos jovens, para os quais organizamos
frequentemente acções formativas, jornadas teológicas, sessões de lectio
divina, retiros… E temos uma procura que supera muito a nossa oferta. Não
conseguimos efectivamente acolher mais do que cem, cento e vinte jovens de cada
vez. Frequentemente os pedidos de inscrição alcançam o dobro.
SEBASTIÃO ALMEIDA
É absolutamente necessário
procurar no comportamento e no estilo de Jesus em relação às mulheres alguma
coisa que inspire também a praxis da Igreja hoje.
Enzo Bianchi
Porque vêm? Essencialmente, creio, por duas razões. Em
primeiro lugar porque em Bose nós os escutamos. Os jovens querem ser escutados.
Não devem ser tratados apenas como destinatários passivos de uma mensagem, mas
devem ser reconhecidos também como sujeitos, portadores de uma palavra a
escutar. Estou convencido que o que faz falta aos jovens não é atenção de os
considerar destinatários de mensagens e ofertas, mas a escuta, o silêncio e
paciência que os põe em condição de se exprimir.
Em segundo lugar, o que atrai os jovens é o facto que
a nossa proposta é extremamente simples e se articula em dois aspectos. Por um
lado, o que fazemos é transmitir uma gramática humana básica para enfrentar a
vida, para os ajudar a viver o caminho de humanização que deve ser a nossa
existência. Porque um jovem tem absoluta necessidade de ser exercitado na
escuta, na palavra, nas relações, nas histórias de amor, e é precisamente isto
que nós procuramos fazer, na sabedoria possível de comunicá-lo e de verificá-lo
juntos. Por outro lado, apresentamos aos jovens, simplesmente, humildemente, a
palavra evangélica. Achamos que o nosso papel é oferecer aos jovens a
possibilidade se se encontrarem com o evangelho, nada mais. Não insistimos
noutros temas do cristianismo, nem em questões doutrinais, que eles terão tempo
de percorrer e de assumir.
A comunidade de Bose é uma comunidade onde os monges e
as monjas fazem votos de celibato e vida comunitária. E é uma associação laica.
Isso é importante para Bose?
O monaquismo sempre foi um fenómeno de laicos, e nós não o devemos esquecer
porque todos os padres do deserto eram laicos: Pacómio era laico, Basílio era
laico, mesmo S. Francisco permaneceu laico, nunca se tornou diácono, como diz a
lenda. Por isso, o monaquismo, por si, é laico e eu não quis de todo que fosse
diferente. Devo dizer que os bispos [da diocese a que Bose pertence] que se
sucederam me pediram que eu fosse ordenado padre, mas eu sempre recusei este
convite, porque quero ficar um simples fiel, um simples laico como os monges. Não
esqueço aquela frase dita por Pacómio ao patriarca de Alexandria, o grande
patriarca que foi procurá-lo e que era Atanásio, e que perguntou: “E a
comunidade?” E ele respondeu: “Somos simples laicos.”
O que eu escolhi foi simplesmente manter-me fiel a
esta tradição. É claro que isto tem consequências. Por exemplo, ter menos
vocações, porque muitos querem, sim, tornar-se monges, mas também padres, o que
não é certo que seja possível ao escolher ser monge de Bose. Porque em Bose é
só a necessidade da comunidade que determina a ordenação de um monge como
padre. Se a comunidade precisa de um padre, então dá-se uma ordenação. Mas a
maioria de nós fica laico para toda a vida. É uma escolha que afasta um número
consistente de jovens, e todavia, vemos que há uma resposta constante, que para
nós é suficiente. Não é tanto uma questão de números, quanto de qualidade da
vida comunitária. Estamos contentes ao ver que a comunidade se mantém por meio
desta opção como um corpo muito mais homogéneo, muito mais unido, porque somos
irmãos e simples irmãos, sem hierarquias. O nosso reconhecimento jurídico, que
foi feito pelo bispo, é de uma comunidade monástica, mas no nosso estatuto,
como na nossa regra, a condição é laical.
Ir para um mosteiro hoje é fugir do mundo?
Não. O mosteiro deve sempre ter esta posição de estar não marginalizado, mas
marginal, nas bordas, porque se o mosteiro se separa do mundo torna-se uma
seita. Deve absolutamente estar sempre à escuta do mundo, ter a capacidade de
estar presente no mundo, testemunhando uma diferença, que não deve ser
expressão de um medo, não pode tornar-se uma contracultura, uma forma de defesa
e recusa da sociedade. Dentro do monaquismo há o celibato, uma vida fraterna
comum, o trabalho e a oração criam uma antropologia diversa, em comparação com
a que se encontra no mundo, mas diversa não significa contrária, não significa
em luta, significa simplesmente que pode ser alternativa, porque é capaz de
fazer esta estrada e a sente como a sua verdade, mas não é uma estrada de
perfeição, não é um caminho melhor. O título do meu livro sobre a vida
religiosa [em edição espanhola, No Somos Mejores, Una Vision Renovada
De La Vida Religiosa] formula precisamente este ponto central: Nós não somos
melhores.
Voltando à Gaudete et Exsultate, o papa
Francisco pede aos cristãos que dêem tanta atenção aos imigrantes e sobretudo
aos pobres como se dá ao aborto. Surpreende-o isso?
O papa, nesta exortação apostólica, põe os pontos nos is. Um primeiro ponto é
deflacionar a contraposição entre a contemplação e vida activa. Ele diz que não
podemos refugiar-nos na oração e ignorarmos o irmão em necessidade, não nos
pode recolher em silêncio e fugir assim daqueles que pedem ajuda. Ele recusa
como um desvio este dualismo que polariza a vida contemplativa e a vida activa
como formas alternativas de vida cristã, convidando a integrar estas duas
dimensões na experiência de fé de cada um. Os cristãos seguem o Senhor,
certamente em momentos de contemplação, de oração, de escuta da palavra de
Deus, mas da mesma maneira devem escutar os homens, escutar as mulheres,
escutar os irmãos, escutar os necessitados.
Um segundo ponto no i, uma segunda chamada de atenção
é feita aos católicos que fazem grandes batalhas contra o aborto, pela
bioética, em defesa dos “seus valores”, e não fazem absolutamente nenhuma pelos
migrantes, pelos pobres, por aqueles que sofrem a opressão. Neste caso, observa
o papa, há uma defesa da vida muito teórica, cultural e política, que não
corresponde a uma batalha igualmente determinada em prol da vida real, dos
seres humanos em carne ossos, nas suas necessidades.
Hoje há sectores da Igreja, nomeadamente nos Estados
Unidos, muito empenhados em grandes batalhas identitárias, contra o aborto,
contra a eutanásia, contra a moral sexual mas que não se ouvem em relação às
situações de pobreza, injustiça, exploração, opressão que se vê no mundo. Isto
é escandaloso, e é este dualismo que o papa denuncia de maneira muito forte.
A dificuldade em se perceber o que é o humanismo
cristão vem da dificuldade de se dizer a palavra “Deus”?
Bem, sim e não, no sentido de que hoje, sem dúvida, a palavra “Deus” é uma
palavra que se esvaziou muito, de forma dramática na última geração, no milénio
actual. Muitos dizem que Deus já não interessa, que podemos viver a vida sem
Deus. E frequentemente esta posição é associada a uma reivindicação humanista
de tolerância e de convivência pacífica, porque no contexto actual de
radicalismos e fundamentalismos emergentes Deus acaba por ser associado ao
fanatismo, à intolerância religiosa, aparece exactamente como factor detonante
do fanatismo terrorista. Deus é uma palavra que não goza de boa saúde
actualmente e devemos tomar consciência disso. Mas o facto é que a fé dos
cristãos não consta na confissão de um Deus em geral, de uma entidade suprema,
abstracta, meta-histórica. O nosso Deus é o Deus de Jesus Cristo e Jesus Cristo
revelou-nos Deus através de uma vida humaníssima. Portanto, é inspirando-nos na
vida humana de Jesus que podemos avançar em direcção a Deus, um Deus inefável,
indizível, de que não conseguimos dizer nada porque nunca o vimos, que é a
fonte de vida, que é a fonte do amor, e que é o Pai de Jesus Cristo. Este é, na
minha opinião, o caminho que devemos fazer.
O que faz falta aos jovens não é
atenção de os considerar destinatários de mensagens e ofertas, mas a escuta, o
silêncio e paciência que os põe em condição de se exprimir.
Enzo Bianchi
Onde há espaço para o humanismo cristão no mundo de
extremismo, populismo, violência, discurso do ódio?
Certamente hoje é fácil o fundamentalismo, é fácil a intolerância, em
consequência, mesmo no interior da Igreja Católica. O papa, na exortação Gaudete
et Exsultate lamenta-se da violência que se manifesta e se espalha na
Web, no mundo da Internet. Mas creio que o humanismo cristão, exactamente
porque é esta praxis que ajuda a convivência, que ajuda um
caminho de humanização, pode ser extremamente fecundo hoje. E hoje, mais do que
ontem, este humanismo evangelicamente inspirado é reconhecido antes de mais
pelos mesmos cristãos, como uma mensagem de reconciliação e de integração
social, como uma força que contraria a solidão e a fragmentação.
O papa Francisco terá dito a um jornalista italiano
que o inferno não existia. Faz sentido hoje discutirmos isto?
O debate voltou de novo e decerto Eugenio Scalfari [jornalista italiano que
alega ter ouvido essa frase ao Papa] interpretou como quis as palavras do papa.
Porque o que o papa pode dizer, dentro de uma fidelidade ao Evangelho, é isto:
que o inferno é uma ameaça que se encontra directamente nas palavras de Jesus.
Ousarei dizer que, se há uma novidade do Novo Testamento, é a possibilidade do
inferno. No Antigo Testamento, esta noção não se encontra: no Além
veterotestamentário há um repouso, há uma escuridão, mas não se fala de
ressurreição, de vida ultra-terrena, nem propriamente de condenação eterna. O
Novo Testamento, pelo contrário, anuncia a ressurreição, que implica a
possibilidade do inferno. Isso é de uma condição para além da condição terrena
que se confirme na escolha existencial do pecado, como opção de viver sem Deus,
sem amor. Este é o núcleo da palavra evangélica, que se reveste do imaginário
judaico do fogo, da desolação de lugares ultraterrenos, mas estes são apenas
ícones necessários para simbolizar o mistério.
Para os cristãos, o que é isto?
Para os cristãos, o imaginário dado por Dante dentro da Divina Comédia continua
predominante. Como há o reino dos bem-aventurados, há um reino na profundidade
do inferno onde há tormentos, sofrimentos diversos, conforme os pecados. Na
realidade, do inferno não sabemos nada. Digamos que Jesus põe diante de nós a
possibilidade de um caminho mortífero, que leva ao mundo sem Deus, sem amor, e
uma vida com Deus, com amor, que é chamada Reino dos Céus, que é chamada
paraíso.
O que faz o cristão? O cristão sabe e deve saber que
existem estas duas possibilidades diante dele e que é ele que escolhe, aqui. O
que está em jogo nesta promessa de salvação e nesta possibilidade de perdição
não é um segredo que nos escapa. O essencial é claríssimo para cada um: eu hoje
escolho o inferno, hoje escolho o Reino de Deus, escolho por meio das minhas
acções. Esta opção levar-nos-á àquilo que é um juízo diante da misericórdia de
Deus e é isto, a consciência do juízo de Deus, de um Deus que conjuga
misericórdia e justiça que conta e que deve condicionar o nosso discurso. Na
minha opinião, é estúpido querer saber se o inferno está vazio ou cheio. O que
interessa é se queremos ou recusamos o amor de Deus, vivendo-o como amor para
os irmãos.
Há apenas uma consideração que considero relevante a
este respeito. Um verdadeiro cristão pode pensar na sua felicidade no Reino de
Deus sem que ali se encontrem os outros? Uma pessoa não se salva sozinha. Por
isso, a esperança de um cristão deveria ser que para o inferno não vai ninguém,
que a misericórdia de Deus abrange tudo. Para dizer a verdade, quando penso no
Além, temo o inferno, mas temo-o por mim, e pergunto-me: se para o inferno vai
qualquer pessoa, porque não hei-de ir eu? Sou assim tão santo? Duvido, por
isso, espero que ninguém vá para o inferno.
É a atitude de Paulo que dizia: espero que a nenhum
dos meus irmãos judeus aconteça que não seja salvo. É a atitude de tantos
santos da tradição oriental, que diziam: se há o inferno, Senhor, manda-me a
mim, para que outros não entrem no inferno. É a atitude de quem é nutrido de
amor. Não pode haver um verdadeiro cristão que afirme que há inferno, porque
quer mandar para lá os outros, pensando que ele não vai.
O papa Francisco disse há algumas semanas: “Queridos
jovens, vocês têm o que é preciso para gritar contra a anestesia.” Cinquenta
anos depois do Maio de 68, é a Igreja, o papa Francisco, a exortar os jovens a
gritar. Há 50 anos a Igreja era o símbolo do conservadorismo. Não é uma ironia?
Sem dúvida, que na história, sabemo-lo bem, há estes movimentos, estes
refluxos, com uma oscilação entre momentos de grande esperança e, por
consequência, também de contestação da situação existente e de batalhas para a
mudança e momentos de recuo e bloqueio, em que todos parecem paralisados e
mesmo as vozes de mudança se mostram extremamente fracas. No mundo ocidental
estamos a viver um destes momentos de anestesia social e histórica. O problema
é que todos, inclusive os jovens que geralmente são uma força de transformação,
hoje estão muito homologados por esta cultura da sociedade de consumo. Então o
papa quer acordá-los, dizendo “Gritai, não deixeis gritar as pedras” e
desafia-os a tomar consciência do seu papel na história.
Pois, também aqui estejamos atentos a que não se torne
uma retórica. O que é preciso não é só dizer aos jovens “gritai”, mas é preciso
dizer “Nós estamos dispostos a tomar-vos a sério e a escutar-vos. Digam-nos
alguma coisa. Não basta gritar, digam-nos a nós que, juntos, queremos mudar as
coisas.”
É conhecido o seu gosto pela cozinha. De onde lhe vem?
Essencialmente da minha família e da minha terra, o Monferrato, que é sabido
ser uma terra de grande tradição gastronómica, refinada pelo intercâmbio com a
França. A minha avó era uma cozinheira francesa e o meu avô era padeiro. Não
éramos uma família de lavradores, mas de artesãos, ligados profissionalmente à
cozinha ou mais em geral à alimentação. A este contexto local e familiar
acrescentaram-se as circunstâncias da vida: a minha mãe morreu quando eu tinha
oito anos, o que me obrigou a preparar a comida para o meu pai que voltava do
trabalho. Já aos nove anos eu era responsável pelo menos para a refeição do
meio-dia, todos os dias. Desde então, nunca mais deixei de cozinhar. Cozinhava
para mim e para os companheiros de alojamento quando estava na universidade, no
alojamento tinha de preparar a minha alimentação. Continuei a cozinhar depois
de mudar-me para Bose, porque pelo menos durante os primeiros seis ou sete anos
eu era o único disponível para acolher aqueles que chegavam.
Isto nunca foi para mim um peso, mas uma alegria. Por
isso, quando devo fazer festa em comunidade ou quando convido amigos, a
primeira coisa que gosto de fazer é cozinhar para eles, convencido de que fazer
os cozinhados é a primeira maneira de dizer a alguém “quero-te bem”.
Portanto, a comida na mesa é amor?
Sim, exactamente, é a manifestação do amor. A mesa é o magistério do amor.
Come-se, mas também fala-se, compartilha-se, para que haja comida para todos,
dá-se atenção aos produtos que se utilizam. À mesa celebram-se todas as nossas
histórias, os casamentos, os nascimentos, as mortes. A mesa é o lugar onde se
iniciou a humanização, é o lugar onde nasceu a linguagem, a palavra. Então a
mesa deve ser levada a sério. O problema é que hoje a mesa se tornou o lugar da
máxima estranheza, quando a mesa tem a vocação para a máxima comunhão.
O chef italiano e seu amigo, Carlo
Petrini, diz que o ensinou a cozer ovos com base em ave-marias. Como é que as
ave-marias são mais precisas que os relógios?
A razão é muito simples: os nossos antepassados quando cozinhavam os ovos não
tinham relógio e por isso tinham essa sabedoria extremamente camponesa, imbuída
de religiosidade, que o tempo de fazer um ovo à la coque é
exactamente o de rezar dez ave-marias, enquanto para obter um ovo cozido temos
que contar o tempo de vinte pai-nossos… Hoje que temos os relógios, achamos que
já não precisamos das ave-marias, mas se calhar eram as nossas avós que sabiam
mais!
LURDES FERREIRA
6 de Maio de 2018
in Público
[Tradução de Rita Veiga]
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