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INFO: TERCEIRA ROSA DE OURO PARA FÁTIMA? & “A Religião dos
Portugueses”: Reabrir portas que frei Bento abriu
A TERCEIRA ROSA DE OURO
1. No
Concílio de Trento (1545-1563), Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de
Braga, teria afirmado que os eminentíssimos cardeais precisavam de uma
eminentíssima reforma. Esta custou muito a chegar e, no nosso tempo, foi o Papa
Francisco que se empenhou na reforma da Cúria com uma coragem e desenvoltura
que não fica nada a dever à do nosso Bracarense. Perante as resistências
activas e passivas que encontrou, já terá desistido? Há quem assim julgue e há
quem assim espere. Creio que estão enganados.
Em 2017,
pelo quarto ano consecutivo, Bergoglio voltou a usar a mensagem de Natal à
Cúria Romana para sublinhar, com muita dureza: para servir a missão da Igreja
na sociedade continuam a ser indispensáveis mudanças profundas na assembleia
dos cardeais e na mentalidade de muitos elementos da hierarquia eclesiástica.
Destacou que
alguns dos que formam o aparelho burocrático do Vaticano usam-no para formar
grupos de pressão e de intriga, para impedir as reformas que ele próprio
desencadeou. São um cancro que gera egoísmo e está infiltrado nos organismos
eclesiásticos e nas pessoas que lá trabalham. A permanente denúncia que o Papa
faz do clericalismo e do carreirismo destina-se a libertar a criatividade das
comunidades cristãs, frutos da graça do Pentecostes, em saída para todas as
periferias existenciais e prontas para todos os socorros como um hospital de campanha.
Estas
expressões só não se tornaram lugares comuns porque a imaginação de Bergoglio
surpreende-nos todos os dias e o desejo de dominar renasce em todas as
gerações. Em nome de
banalidades sacralizadas, o Papa é apelidado de herético e o sempre assim foi
serve os sinais da restauração do catolicismo convencional. Pelo contrário, a
santidade é fonte de criatividade de novas expressões do Evangelho no mundo
caótico e niilista da nossa actualidade.
Desde que
foi eleito, em 2013, não abandonou a sua obsessão de reforma da Cúria, dominada
por italianos. Era inadiável acabar com os escândalos financeiros e os
comportamentos de ocultação da pedofilia de eclesiásticos que tornavam a imagem
da Igreja, nos meios de comunicação social, como irrecuperável.
As
resistências foram muitas e não desarmaram. O Papa destacou: até os que foram
incumbidos de realizar as reformas traíram a confiança, deixando-se corromper
pela ambição e vã glória. Quando são afastados, declaram-se, erradamente,
mártires do sistema... em vez de fazerem o mea culpa.
Quando se
fala na reforma da Cúria, convém ter em conta a sua história e os debates
actuais em torno de questões de ordem sociológica, política, teológica e
pastoral. Isto não cabe nos limites de uma crónica. Sugiro, por isso, a leitura
de um bem informado artigo de Massimo Faggioli[1]
2. A reforma da Cúria é um trabalho em andamento. Este
Papa não quer fazer dela um processo burocrático dependente de uma nova
constituição apostólica, como disse Dom Semeraro. Segue os princípios da
flexibilidade gradual, da tradição como fidelidade à história, da inovação e da
simplificação.
Na visão de
Bergoglio, a Igreja, o papado e a Cúria Romana estão interligados. A Cúria não
existe apenas para transmitir mensagens para o resto da Igreja, mas também para
receber mensagens de uma Igreja sinodal.
Além disso,
a existência da Cúria é vital para que o génio romano, isto é, a aspiração de
Roma a ser a síntese, seja o ponto de encontro da dimensão universal e local da
Igreja. O Papa leva a sério a ideia de reforma de Yves Congar: o primado da
caridade e da pastoralidade; a preservação da comunhão; a paciência e respeito
pelos atrasos; a renovação através de um retorno ao princípio da tradição, a
não confundir com as tradições.
Para M.
Faggioli não existe nenhuma alternativa real à proposta do dominicano Y. Congar
para uma reforma da Igreja, excepto aquela que levaria a um cisma. Mas, do
ponto de vista das actuais políticas eclesiais, a questão é muito mais
complicada. A ideia de Congar sobre a reforma da Igreja pode ser frustrante
para aqueles que perderam a paciência que o teólogo francês invocava há 50
anos.
Muitos
católicos esperavam que Francisco já tivesse implementado uma reforma
institucional visível da Cúria depois de cinco anos no cargo. Mas, como já
dissemos, o Papa não acredita numa reforma burocrática.
Apesar das
esperanças dos liberais e dos temores dos conservadores do status-quo, o Papa
Francisco não governa por decreto, nem mesmo a Cúria.
Para ele, a
reforma é, em primeiro lugar, movimento e não apenas a mudança estrutural das
instituições. É uma mudança de mentalidade, que não começa com uma mudança na
lei. É uma descentralização, o que significa que as periferias devem assumir
mais responsabilidades. Ela faz parte do caminho para uma Igreja mais colegial
e sinodal, que é salvaguardada através do papel universal do bispo de Roma.
O Papa
deseja a Cúria Romana como um pequeno modelo de Igreja, que procura ser sério
e, quotidianamente, mais vivo, mais saudável, mais harmonioso e mais unido
entre si e a Cristo[2]
. Não aceita a Cúria para um lado,
a Igreja para outro e em luta permanente.
3. No
Domingo passado, o Papa anunciou que a 29 de Junho haverá um Consistório para a
nomeação de 14 novos cardeais. A proveniência destas nomeações procuram
exprimir a universalidade da Igreja. Entre os novos cardeais surge o bispo de
Leiria-Fátima, António Marto. Daqui o saúdo pelos motivos que foi nomeado e
pelos que aceitou.
O Papa não
precisa de aumentar o número de cardeais que resistem, de forma activa e
passiva, às reformas que ele anunciou desde a primeira hora e que procuram que
essas reformas não lhe sobrevivam. A Igreja precisa de cardeais que ajudem este
Papa e que sejam uma garantia de que estas reformas se tornem, de forma
criativa, irreversíveis.
Não se pode
deixar de realçar as declarações do bispo António Marto: O Santo Padre conhece
bem o que eu penso e sabe que tem em mim um apoiante.
Não o move a
atracção pelas caudas vermelhas e os chapéus cardinalícios. A simplicidade do
Papa e as suas causas bastam-lhe. Não aceitou a sua escolha em termos de
meritocracia, mas como um serviço que lhe é pedido. Não é um prémio, uma
terceira Rosa de Ouro ao Santuário de Fátima.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público, 27. 05. 2018
[1]
Uma ''reforma da reforma'' diferente: Papa Francisco e a Cúria Romana, artigo
publicado por La Croix International, 05-02-2018. Ver tradução em:
http://www.ihu.unisinos.br/575885-uma-reforma-da-reforma-diferente-papa-francisco-e-a-curia-romana-artigo-de-massimo-faggioli
[2]
Encontro pré-Natal em 2014
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“A Religião dos
Portugueses”: Reabrir portas que frei Bento abriu
Foi hoje posto à venda o livro A Religião dos Portugueses –
Testemunhos do Tempo Presente, da autoria de frei Bento Domingues, com organização
de Maria Julieta Mendes Dias e de mim próprio (ed. Temas e Debates/Círculo de
Leitores). Publicado inicialmente em 1987/88, A Religião dos Portugueses
tornou-se uma referência, nestas três últimas décadas, nos estudos religiosos
em Portugal, em diferentes âmbitos. Essa marca, aliada ao facto de o livro
estar há muito esgotado, impunham a sua reedição. Foi o que aconteceu com o
livro agora disponível que, além da edição original, acrescenta vários textos
de frei Bento Domingues sobre o mesmo tema, incluindo um capítulo escrito
propositadamente para esta edição.
O livro será apresentado terça-feira próxima, dia 29, a
partir das 18h30, pelo padre José Tolentino Mendonça. A sessão decorre na
Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa (R. Camilo Castelo Branco, ao
Marquês de Pombal).
Fica a seguir o meu texto de apresentação:
“A questão da ‘religião dos portugueses’ precisa de ser
reaberta”, escrevia frei Bento Domingues, em 1987. Foi o que acabou por
conseguir fazer este seu texto, que viria a tornar-se marcante na reflexão
contemporânea sobre a religiosidade portuguesa e as interpenetrações mútuas
entre espiritualidade e cultura.
Em rigor, acrescente-se, A Religião dos Portugueses não é
apenas um texto sobre o fenómeno relativo a Portugal. O seu autor faz um
percurso sobre a pesquisa recente (e, por vezes, também com pequenas incursões
históricas) acerca da questão espiritual e religiosa, sobre as características
e definições de religião e a relação desta(s) com a cultura.
Nesse percurso, frei Bento Domingues percorre as definições
de religião e do que cada um dos diversos conceitos comporta dentro de si. E
questiona mesmo análises superficialmente sociológicas que ora decreta(va)m a
morte de Deus, ora levanta(va)m a bandeira do retorno do religioso. A sua
leitura propõe chaves bem mais profundas e complexas, que procuram radicar-se
na natureza humana e numa realidade que não se esgota em chavões prontos a
usar. E que procura, sobretudo, entender que deus é que a realidade e as
pessoas mataram e a que deus(es) elas regressam. Aliás, a própria própria
sociologia actual – James A. Beckford, Grace Davie, Zygmunt Bauman, José
Casanova, Danièle Hervieu-Léger, Sabina Acquaviva ou Enzo Pace, entre outros–
tem privilegiado uma leitura complexa dessa mesma realidade, procurando fugir a
leituras simplistas que pouco ajudam a pensar e compreender o que se passa.
Frei Bento contesta as “frases bombásticas” e as “sentenças
de morte ou ressurreição, tentações da publicidade”. Critica as ambiguidades
quer da “ideologia da secularização dos anos 1960” quer da ideia do “retorno do
religioso”, que seria promessa de um século XXI religioso. E conclui: “A
situação actual é bem mais complexa do que a clara divisão entre Terceiro Mundo
religioso e Europa Ocidental secularizada e a-religiosa. A indiferença
religiosa nem sempre é tão indiferente como se diz e a religião não tem só o
sentido que as Igrejas lhe costumam dar. (...) Nem sempre é fácil distinguir
sintomas e causas, correntes de fundo e agitações de superfície, actualidade
que desenha o futuro e ecos de um passado sem retorno. Com isto não se pretende
propor a renúncia a entender o mundo em que vivemos. Mas renunciamos a fazer da
religião o reflexo de um passado obscurantista e da secularização a luz
beatificante da modernidade.”
O “fim da religião” de que tanto se falou é, para frei Bento,
outra coisa: “[O] papel de estruturação do espaço social que o princípio de
dependência desempenhou, no conjunto das sociedades conhecidas até à nossa,
chegou ao seu termo. A religião não se explica historicamente, nos seus
conteúdos e nas suas formas, senão pelo exercício de uma função exactamente
definida. Ora, essa função não só já não existe, como se tornou no seu
contrário, mediante uma transformação que, longe de lhe abolir os elementos, os
integrou no funcionamento colectivo, sinal seguro da sua reabsorção. A
sociedade moderna não é uma sociedade sem religião, é uma sociedade que se
constituiu nas suas articulações principais pela metabolização da função
religiosa.”
Sair e voltar ao cais, sempre em viagem
Neste caminho de reflexão, frei Bento dá um outro passo: a
sua humildade intelectual leva-o a considerar que a reflexão que propõe nunca
está terminada e que outros podem continuá-la; ao mesmo tempo, a empatia que
mostra para com a fé das pessoas leva-o a considerar o perigo de “determinar,
no concreto, o que é religião e o que é a magia, o que é idolatria e o que é
mediação simbólica inerente à religião, o que é religião da fé cristã e o que é
perversão do Evangelho”. Mesmo pugnando uma religiosidade e uma fé cristã mais
purificadas, o nosso Autor não ignora as dificuldades desse processo e admite
que até a mais autêntica experiência cristã “não consegue passar sem mediações,
sem expressões simbólicas”. Há uma razão, explica: “O dom da revelação, ou a
revelação como dom de Deus, é sempre feito a seres humanos, histórica, social e
culturalmente marcados. E religiosamente marcados!”
Se se fala de um caminho, devemos assumir que é mesmo uma
viagem aquela que frei Bento Domingues propõe – e não será por acaso que ele
fala de Fátima como o cais dos portugueses ou que dizia, numa conversa
preparatória deste livro, que “um místico está sempre em viagem”. Uma caminhada que sai e volta ao cais, para ir
ao fundo dos tempos buscar elementos da obra de António Leite de Vasconcelos As
religiões da Lusitânia, que passa por S. Martinho de Dume e o seu De
Correctione Rusticorum(séc. VI), passa pela presença muçulmana e pelo padre
António Vieira, até chegar ao fenómeno em que Fátima se transformou, com todas
as suas cambiantes, interpelações e paradoxos.
Nesse itinerário, frei Bento leva-nos também na companhia das
reflexões de Lúcio de Azevedo, António José Saraiva e Eduardo Lourenço,
Teixeira de Pascoaes, Natália Correia, Agustina Bessa-Luís ou Fernando Pessoa,
entre tantos outros. Sempre com o objectivo de procurar entender se há uma
“arte de ser católico português”, reciclando a expressão de Pascoaes. E
propondo uma síntese da religião dos portugueses, que se pode definir por um
“complexo judaico”, por causa da ideia do “povo escolhido” e por um “misticismo
vago” e “difuso”. É uma religião que se define ainda pelo seu carácter “nem
muito alegre nem muito triste”, com personagens que temperam os sofrimentos dos
“Cristos dolorosos e Virgens dolorosas, ensanguentados”, que se vêem em
Espanha; e por ser uma religião anticlerical, não só por parte dos
não-católicos, mas também pelo facto de não “poder passar sem a Igreja e sem o
padre, mas em não consentir que o padre confisque só para ele a direcção da
vida religiosa”, na linha da caracterização de Agustina Bessa-Luís.
O nosso Autor aponta ainda, com insistência – quer neste,
quer em outros textos e pronunciamentos – a incapacidade de a religião dos
portugueses se pensar teologicamente. “Não deixa de ser curioso que um País
quase maciçamente religioso e católico, como acusam as estatísticas, não conte,
a nível de ensino superior e da investigação nas Ciências Humanas, com o
fenómeno religioso”, observa, a dado passo.
Fátima, a vergonha e o coração
É nesta etapa da sua viagem que frei Bento se detém em
Fátima. Para, de novo, se espantar com o alheamento ou desprezo com que,
durante décadas, o país (seja no âmbito cultural ou religioso) se relacionou
com um fenómeno crescente e mobilizador. Primeiro, por causa do conflito entre
República e Igreja; logo em seguida, pelas relações de proximidade pessoal
entre o ditador Salazar e o patriarca Cerejeira. Finalmente, pela Guerra
Colonial, quando Fátima era olhada fosse como um anestésico (pelo regime do Estado
Novo), fosse como adormecedor de consciências (por quem se opunha ao conflito),
ou ainda como a única tábua de salvação e de refúgio, além da possibilidade da
emigração (por parte de muitas pessoas com as vidas destroçadas e sofridas).
Neste contexto, Bento Domingues cita Vitorino Nemésio que, na
véspera da visita do Papa Paulo VI a Fátima (13 de Maio de 1967), dizia:
“Fátima foi, para o que se chama ‘os intelectuais’ portugueses, um episódio de
massas, de que não se quiseram dar conta. (...) nós, os intelectuais,
aprofundamos pouco e não estranhamos nada... (...) O espírito sopra onde quer.
Fátima aí está, no volume mundial de um contágio de fé, como uma
transcendência. Um fenómeno de multidões atesta uma qualidade.”
Pode acrescentar-se à observação de Nemésio que os diversos
poderes – incluindo o do Estado Novo, que queria usar Fátima em seu proveito –
olharam também com desdém, durante décadas, para o lugar e as pessoas. Foi isso
que permitiu que só bem recentemente a localidade passasse a estar servida por
um acesso digno em autoestrada (mas não nas estradas secundárias nem na
ferrovia). Como também foi esse desprezo que levou a que só nos últimos três
anos, em vista do centenário, a localidade tenha começado a lavar a cara dos
espaços públicos, criando passeios e zonas pedonais, melhorando a iluminação
pública e promovendo outras melhorias do casco urbano, que tentam corrigir os
erros da tremenda falta de planificação urbana, que durou quase um século. Se
pensarmos que ali acorrem mais de cinco milhões de pessoas por ano (fazendo a
média dos últimos anos) e que Fátima é um dos principais destinos turísticos do
país, essa é uma situação que nos deveria envergonhar como país.
Só o novo quadro democrático surgido após 25 de Abril de 1974
permitiu – apesar dos preconceitos que perdura(ra)m ainda, seja no âmbito
social e académico, seja na instituição católica – passar a olhar para Fátima
de outra maneira. Uma sucessão de congressos, debates e conferências; a
publicação da Documentação Crítica de Fátimae de dezenas de obras de história,
análise e contextualização, mesmo numa perspectiva crítica; e várias
realizações teológicas, pastorais, culturais, académicas, científicas e
artísticas, na década que antecedeu o centenário de Fátima, permitiram começar
a fazer aquilo que há muito deveria ter acontecido: olhar para um lugar que
atrai milhões de pessoas em cada ano, de forma crescente, e estudar quais são
as razões que fazem mover tanta gente.
Seja no âmbito da sociologia, da história, da antropologia,
dos estudos teológicos ou de outros âmbitos do saber, há finalmente clima para
se olhar de outro modo para o que se passa em Fátima – independentemente de se
acreditar ou não na história original; aliás, a decifração e contextualização
do que se passou em 1917 tem sido um dos trabalhos importantes deste movimento.
A Religião dos Portugueses foi, em 1987-1988, um contributo
fundador neste processo, em vários aspectos: procurando entender as razões e
especificidades do catolicismo português; lançando o debate sobre as causas do
alheamento académico e social acerca de Fátima e acerca da ignorância e falta
de aprofundamento teológico e pastoral com que o próprio catolicismo português
se debruçava sobre o fenómeno; e procurando, ao mesmo tempo, entender as razões
da perseverança do fenómeno, para lá das tensões políticas, controlos clericais
e outras ambiguidades.
“Movimento de crianças transformado em movimento popular”,
Fátima não é uma terra de milagres, mas de refúgio para dores e sofrimentos,
onde as pessoas escutam uma mensagem que lhes diz que tudo acabará “no fogo do
amor” e onde se produz “um estremecimento da alma”, observa frei Bento. Para
acrescentar, noutro passo: “É neste inferno mundial, neste mundo sem coração,
que se ouve o céu chorar a terra e pedir aos homens que não se consagrem mais à
guerra, mas às obras do amor, ao Coração não manchado, mas ferido pelos pecados
de um mundo desumanizado e desumanizante. Por isso, conclui ainda: “Se para o
português «o coração é a medida de todas as coisas», é normal que se dê com a
«revelação» da religião do Coração num mundo sem coração. Por outro lado, a
religião do Coração não se pode fechar sobre si mesma. Neste sentido, é feliz a
fórmula do irmão Roger, monge protestante e fundador de Taizé: Maria é a
catolicidade do coração.”
Viagem de insatisfação
Claro que o fenómeno de Fátima está cheio de contradições,
paradoxos, histórias por contar ou mal contadas. Mas ele traduz também, para
muitas pessoas (e não apenas pessoas “do povo”, incultas ou ignorantes, como
tantas vezes se pensa) uma experiência de aproximação ao essencial ou de
possibilidade do refúgio num colo que frei Bento identifica com a ideia do
coração: “Em Fátima, onde se viram fogueiras do inferno, nunca foi dito que ia
tudo acabar numa fogueira. Isto vai acabar tudo no fogo do amor. É uma vitória,
não do ódio do mundo ou ao mundo, mas do coração. Antes de perguntar pelo
coração da mensagem de Fátima é preciso escutar esta mensagem do coração. «Para
o português, o coração é a medida de todas as coisas» (Jorge Dias).”
Como não entender isso quando se olha para os dois momentos
mágicos que são as procissões das Velas ou do Adeus, e que frei Bento
caracteriza como um “estremecimento da alma”, como “esse intenso momento de
saudade que resgata Fátima da repetição do mesmo cerimonial e, de forma triste
e doce, compensa, um pouco, a perda das tradicionais e criadoras manifestações
da religião popular”. Aliás, nesta mesma linha, Bento Domingues fala de Fátima
como um fenómeno onde cabem milhares (milhões, em rigor) de experiências
diferentes – tantas quantas as das pessoas que ali acorrem. Porque, sendo um
espaço enquadrado pela instituição católica, cada pessoa encontra nele aquilo
que entende e encontra-se nele com a expressão de Deus que entende.
Na conversa recente que já referi, frei Bento acrescentava
outra ideia a este propósito: em Fátima, houve a capacidade ou possibilidade de
não sufocar, dando um enquadramento litúrgico e estético às pessoas que lá vão,
mas permitindo que elas façam “uma viagem de insatisfação”, à procura de formas
de mitigar as suas sedes. Num quadro de uma religião que se fazia de múltiplas
obrigações, Fátima impôs-se também porque não era obrigatório lá ir – ou seja,
paradoxalmente, impôs-se como espaço de liberdade perante a instituição
religiosa.
Refira-se ainda a coincidência de esta nova edição de A
Religião dos Portugueses aparecer cinco anos depois da eleição do Papa
Francisco e um ano depois da sua viagem-peregrinação a Fátima. O facto de ele
ter reformulado completamente a tradicional oração da Salve Rainha ou de se ter
insurgido contra a imagem de uma “santinha a quem se pedem favores a baixo
preço”, e de o ter feito naquele lugar concreto, não é de somenos.
Faz sentido, por isso, incluirmos neste livro algumas das
crónicas dominicais de frei Bento alusivas a Fátima e que ainda não estavam
publicadas nas antologias editadas nos últimos anos (Um Mundo que Falta Fazer,
A Insurreição de Jesus, O Bom Humor de Deus e Outras Histórias e Francisco – O
Papa que põe a Igreja a Mexer, todos organizados por Maria Julieta M. Dias e
António Marujo, ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores). Nelas se procura
entender, sempre a propósito de Fátima e do catolicismo popular, a articulação
com algumas das intuições do Papa Francisco acerca da Igreja Católica, das
expressões da fé e do papel dos cristãos no mundo contemporâneo.
Francisco, como referia frei Bento na conversa já citada,
acaba com a idolatria das fórmulas (pode dizer-se que foi isso que também fez,
ao recriar o texto da Salvé Rainha), preenchendo com humor, a valorização da
consciência e do discernimento, a experiência crente. O Papa, acrescentava o
nosso autor, “não está contra as fórmulas”, mas, “aos marcos da viagem, prefere
a própria viagem”. O que ele quer é uma Igreja peregrina, já que essa é a sua
característica ontológica, e peregrina em direcção à única coisa que não passa,
segundo a expressão de São Paulo na Carta aos Coríntios (I Cor 13): “A fé
passa, a esperança passa, a única coisa que fica é o amor.”
* * *
Esgotadas há muito as duas primeiras edições de A Religião
dos Portugueses, nem por isso o texto de frei Bento Domingues deixou de ser
continuamente citado em debates, artigos, conferências, seminários... Por isso
se impunha a sua reedição e actualização. É isso que esta nova edição procura
fazer, acrescentando aos capítulos que compunham a edição original novos
contributos que pretendem enriquecer a reflexão que esta obra fundadora já
continha – todos eles, aliás, sugeridos e escolhidos pelo Autor, de entre a
vasta arca da sua produção.
Neste livro, inclui-se mesmo um texto inédito – o terceiro
capítulo, com o título A Religião dos Portugueses: uma religião do coração?–,
escrito expressamente para esta edição, e uma extensa bibliografia que, sem
pretender esgotar o tema, remete para obras que frei Bento considera
indispensáveis nos estudos que se façam sobre este tema – e que elas próprias,
por sua vez, indicam listas bibliográficas importantes.
Procurámos manter os textos originais tal qual foram
publicados na sua primeira versão, corrigindo apenas algumas gralhas ou
pequenos detalhes; nos casos em que se regista uma diferença grande com a
situação recenseada há três décadas, isso fica registado em nota.
Tendo em conta os novos textos que aqui são incluídos, a
ordenação dos capítulos procurou, em primeiro lugar, uma coerência interna,
mesmo se há questões que se abrem num capítulo e se voltam a abrir vários
capítulos à frente – porque Bento Domingues nunca é de fechar ou arrumar
debates, antes volta a eles em permanência, com essa ideia da viagem sempre a
marcar o seu território reflexivo. Por isso, dois dos capítulos publicados nas
anteriores edições – sobre a Igreja na transição para a democracia e acerca da
primeira década do Concílio Vaticano II em Portugal – surgem, nesta edição, na
parte final. Esses dois textos são também marcantes pois, situando-se no campo
mais estrito da reflexão teológica e pastoral, fazem uma leitura do catolicismo
português num outro âmbito – o das suas tensões e dinâmicas internas ao longo
do último século, que muito ajudam a entender o ponto em que estamos hoje.
Antes desses dois capítulos, há um conjunto de textos mais
centrados na questão da “religião dos portugueses” e em Fátima, incluindo dois
publicados nas duas anteriores edições e o texto inédito já referido. Um outro
artigo, sobre o medo e a segurança na religião, inclui-se aqui também, pela
proximidade de análise com vários dos temas aqui tratados.
Finalmente, incluímos como posfácio um artigo escrito como
recensão de A Religião dos Portugueses, da autoria de Moisés Lemos Martins, a
quem se expressa aqui profunda gratidão pela sua generosidade. Registe-se ainda
a gratidão dos organizadores a frei José Filipe Rodrigues, O.P., e a Paulo
Farinha, pela colaboração prestada em momentos decisivos da preparação desta
obra, bem como à equipa da Temas e Debates, na pessoa da sua editora,
Guilhermina Gomes, pelo acolhimento e benignidade demonstradas na concretização
de mais este projecto.
Trazer à praça pública a perseverança de frei Bento é um
contributo pelo qual apenas se pode estar grato. Porque a sua estimulante forma
de pensar é essencial para nos entendermos enquanto povo, enquanto sociedade
ou, se é o caso, enquanto comunidade crente.
Lisboa, 12 de Maio de 2018
(dia litúrgico de Santa Joana Princesa,
monja dominicana no mosteiro de
Jesus, em Aveiro)
in Religionline, sexta-feira, 25 de maio de 2018
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