Apostar no génio
Frei Bento Domingues
Público 03.06.2018
Numa grande obra de arte, está inscrita uma abertura à transcendência.
1. Os dominicanos franceses, A. Couturier e P. Régamey, directores da famosa revista L’ Art Sacré (dos anos 50 do século passado), impuseram a si próprios, como critério nas escolhas dos artistas a convidar para as encomendas de novas igrejas, o de apostar no génio! Este
critério deveria ser anterior às considerações de ordem confessional.
Partiam da convicção de que, numa grande obra de arte, está inscrita uma
abertura à transcendência. Os resultados da aplicação concreta deste
critério foram admiráveis e inspiradores. O Movimento de Renovação da
Arte Religiosa (MRAR) em Portugal, no século XX, foi profundamente
influenciado por essas exigências [1]. A bela exposição no Convento de
S. Domingos (Alto dos Moinhos) para celebrar os 800 anos da presença
dominicana em Portugal (1216-2016) testemunha a importância dessa
lucidez religiosa [2].
Alegra-me que o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, tenha assumido as preocupações inscritas na metáfora do padre Alain Coutourier: apostar no génio. Já deu muitas provas dessa esclarecida visão. Agora, marcou a presença do Vaticano na Bienal de Arquitectura de Veneza, na ilha San Giorgio Maggiori, um bosque com vista para o mar, com a construção de dez capelas de dez arquitectos de vários países e continentes. Entre eles está o arquitecto português Eduardo Souto de Moura. A encomenda da Santa Sé não lhes exigia um templo cristão. Tinha apenas de ter uma mesa para pousar um livro. Isabel Salema apresentou, neste jornal, a história da encomenda das capelas e, especialmente, a realização e as convicções de Souto de Moura [3].
2. Quando se aborda a relação da Igreja com estes temas, é indispensável saber de que se fala ao usar a palavra igreja. Se pensamos apenas nas hierarquias, ficamos sem saber quais são os critérios democráticos da sua representatividade. Em princípio, todos os seus membros devem poder dizer: a igreja somos todos nós. A igreja são os seus membros e só, indirectamente, designa os templos mais ou menos belos, com ou sem paredes.
No plano da cidadania e da política, não basta dizer que a igreja é plural e cada um decide como quiser. Esta afirmação alimenta alguns equívocos. Confunde a igreja com a hierarquia e não deixa ver o que é a liberdade eclesial na construção da sociedade, seja a nível económico, político ou cultural. Em nome da liberdade cristã, não vale tudo. Esquece-se, principalmente, o confronto com a prática histórica de Jesus e com os seus equivalentes no mundo actual. Sem este confronto, vingam as respostas sempre prontas a servir, pela hierarquia, e deixa de ser o Evangelho a questionar os próprios cristãos. O cristianismo e os seus valores passam a ser, apenas, uma etiqueta para quando dá jeito.
Importa sublinhar que Jesus questionou, durante toda a sua vida pública, a religião em que foi educado e que legitimava tudo – o certo e o errado – em nome da vontade de Deus inscrita na Lei e nas Tradições ancestrais.
Jesus tinha antepassados no profetismo de Israel. Os profetas não eram adivinhos. Eram pessoas clarividentes, lúcidas, acerca do que estava a acontecer e das decisões que abriam ou fechavam o futuro. A preocupação e a ocupação deles era o presente, para tornar a população consciente do que estava a arriscar, segundo as opções que tomava. É interessante saber que essas vozes incómodas foram rareando e os escribas e doutores da lei entretinham-se em subtilezas que deixavam os que já estavam mal ainda pior, fosse em que domínio fosse, religioso ou profano. Nesse mundo, Deus era antigo, a Lei era antiga, os seus intérpretes constituíam uma antiga casta de legitimação de interesses ou de conquista de posições. João Baptista lutava por uma mudança moral, mas não alterava as antigas representações nem de Deus nem das suas leis.
Jesus foi educado num mundo em que a própria religião se tinha tornado a cadeia dos que não tinham defesa. Ele era um leigo. Não tinha frequentado nenhuma das escolas famosas da época, mas a sua experiência de Deus mostrou-lhe que nem da religião nem das leis sociais vigentes se podia esperar o Reino da alegria.
Jesus de Nazaré desfatalizou a história. Nada tem de ser como está. A juventude de Deus é a força da renovação do mundo.A sua intervenção libertadora, muito concreta na história de há 2000 anos, foi interpretada pela poética do Apocalipse, no horizonte de uma renovação total do mundo, sem data marcada: "Vi, então, um céu novo e uma nova terra... Eis que faço novas todas as coisas... Eu sou o Alfa e o Omega, o Princípio e o Fim e a quem tem sede darei gratuitamente da fonte de água viva. O vencedor receberá esta herança e eu serei o seu Deus e ele será o meu filho." [4]
3. O Papa Francisco, numa conversa com Thomas Leoncini, afirma que Deus é jovem [5]. Um amigo disse-me: é um título oportunista adaptado à publicidade, sabendo que, desde há muito tempo, se repete que Deus não é velho nem novo. Morreu, acabou e acabou também a cultura que se baseava nessa referência. É certo que a Igreja Católica tem feito um certo esforço de renovação em muitas áreas. Chegou mesmo a reunir um Concílio, em meados do século XX, para falar, de forma simpática, da Igreja no Mundo contemporâneo, Mundo esse que o Vaticano, do século XIX, tinha condenado de todas as formas e feitios.
Parece-me que esse amigo está completamente enganado pela catequese que recebeu e pelas missas que frequentou até ao dia do desengano em que tudo, na religião, lhe cheira a passado e a mofo. As imagens do Inimaginável, com que foi intoxicado pelas beatices bem-intencionadas, resultaram na sua alergia actual. Precisa de apostar no génio que é o Papa Francisco e no Deus que renova a sua juventude.
[1] João Alves da Cunha, UC Editora, 2015
[2] Os Dominicanos em Portugal (1216-2016), Coord: António Camões Gouveia, José Nunes, O.p., Paulo F. de Oliveira Fontes, UCP Lisboa, 2018
[3] PÚBLICO, 26.05.2018, pp. 32-33. Não foi por essa magnífica Capela que este arquitecto recebeu o Leão de Ouro, a distinção máxima da Bienal de Arquitectura de Veneza, mas pelo complexo turístico de São Lourenço do Barrocal, recuperação de um monte alentejano e a sua adaptação a hotel.
[4] Ap 21
[5] Planeta, 2018
[2] Os Dominicanos em Portugal (1216-2016), Coord: António Camões Gouveia, José Nunes, O.p., Paulo F. de Oliveira Fontes, UCP Lisboa, 2018
[3] PÚBLICO, 26.05.2018, pp. 32-33. Não foi por essa magnífica Capela que este arquitecto recebeu o Leão de Ouro, a distinção máxima da Bienal de Arquitectura de Veneza, mas pelo complexo turístico de São Lourenço do Barrocal, recuperação de um monte alentejano e a sua adaptação a hotel.
[4] Ap 21
[5] Planeta, 2018
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