1. Vamo-nos enganando e já
não é pouco! Foi o comentário de um amigo à minha homilia de apresentação da
Mensagem do Papa para o II Dia Mundial dos Pobres, no passado Domingo. Procurou
fazer-me uma breve catequese de bom senso, pois ninguém tem uma receita eficaz
para curar a história da nossa desumanidade. Mergulhados no mistério do tempo,
cada um de nós vive, apenas, o pequeno intervalo entre o nascimento e a morte.
Tanto vale acreditar que o mundo vai mudar para melhor como repetir que irá
sempre de mal a pior. Os anúncios do avanço das ciências e das técnicas
deixaram, há muito, de o entusiasmar. A quem vão eles servir? Oferecem, aos
donos dos grandes negócios, novos instrumentos e condições para desenvolverem a
concentração da riqueza e do poder económico, bélico e político. O mundo de
todos em mãos de poucos.
Insistiu comigo: aquilo que o
Papa diz e tenta fazer não resolve nada. O próprio Cristo, num momento de
grande lucidez, arrumou com todas essas veleidades: pobres sempre os tereis
entre vós! Estava escrito na Bíblia o que ele bem conhecia: não “haja pobres
entre vós” e, no entanto, Jerusalém, a cidade santa tinha-se tornado um grande
centro de mendicidade.
Sei que as atitudes, os
gestos e as palavras de Bergoglio não resolvem nada, mas também sei que ajudam
muitas pessoas a resolverem-se a abandonar o cepticismo estéril e a
interrogar-se: que posso eu fazer? Impede-nos de tapar os olhos e os ouvidos e
de dizermos que não sabemos bem o que se passa. Recusando ou aceitando somos
cúmplices, aliados ou indiferentes. O Papa não consente que forjemos um Deus
que nos substitua e, por isso, há crianças, adolescentes, jovens e adultos que
para serem felizes optam por hierarquizar as suas necessidades e desenvolver os
seus talentos para vencerem a solidão e as situações difíceis de outras
pessoas. Descobriram que havia estilos de vida mais divertidos e entusiasmantes
do que o culto da estupidez consumista. Um estilo sóbrio de vida pode e deve
ser mais divertido do que a peregrinação obrigatória a todos os restaurantes do
Guia Michelin.
Jesus Cristo e o Papa
Francisco passaram e passam por situações muito difíceis, mas são profundamente
felizes ao terem libertado as suas pulsões e desejos tornando-se disponíveis
para verem o mundo como a Casa Comum de toda a família humana, nossa família!
Bergoglio já tinha mostrado
na Laudato SI que não podemos separar o clamor da devastação do planeta e o dos
pobres. A escuta da terra e a dos pobres andam sempre juntas. Pertence,
precisamente, à ecologia política mostrar que a crise ambiental e a crise
social andam juntas.
A pobreza e a austeridade de
S. Francisco não eram um ascetismo puramente exterior. Eram algo de mais
radical: a renúncia a converter a realidade em mero objecto de uso e domínio,
matando o encanto e a beleza do mundo. Mercantilizar todos os âmbitos da vida é
instrumentalizar as relações humanas e a relação com a natureza. Nem tudo na
vida humana se pode ou deve comprar e vender.
2. O Papa não inventou os factos. Em Setembro
de 2015, os países reunidos na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU)
comprometeram-se com uma agenda de desenvolvimento até 2030. Nessa agenda havia
um compromisso: acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os
lugares. Ou seja, os esforços devem apontar para o objectivo de fazer com que o
rendimento mínimo diário de cada pessoa supere 1,25 dólares, índice que
designa, actualmente, a linha da pobreza extrema.
Como estancar a reprodução
das grandes desigualdades e da pobreza? Quando se diz que é o produto de
escolhas políticas injustas que reflectem a desigual distribuição do poder na
sociedade, não se abordam, de forma clara, as possibilidades concretas de
alterar essas escolhas. Se não é possível erradicar a pobreza no mundo sem
reduzir drasticamente os níveis de desigualdade, como conseguir esse objectivo?
Diz-se que os níveis extremos de desigualdades interferem na capacidade do
Estado e da sociedade redistribuírem o rendimento. Erguem barreiras à
mobilidade social e mantêm parcelas da população à margem da economia.
Que fazer? Quem sabe não pode
e quem pode não quer.
3. Estaremos, então,
condenados ao imobilismo e deixar livre o caminho para o abismo?
O relatório da ONU para o
Desenvolvimento 2017, afirma que 6,5% da população global continuará na pobreza
extrema até 2030, se a actual taxa de crescimento e políticas para o sector
permanecerem inalteradas.
Segundo a ONU são necessários
novos esforços multilaterais para tirar 550 milhões de pessoas da situação de
pobreza. Se isso não acontecer, os
esforços para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável serão
fortemente prejudicados. Não se vence a pobreza até 2030 e os países menos
desenvolvidos vão ficar muito abaixo das metas estabelecidas.
O secretário-geral da ONU,
António Guterres, pediu acção imediata dos países para enfrentar o problema:
“apesar dos grandes esforços na luta contra a pobreza, a desigualdade cresceu
em todo o mundo. Os conflitos estão a aumentar. Outros problemas como as
alterações climáticas, a insegurança alimentar e a escassez de água estão a
colocar em risco os progressos alcançados nas últimas décadas”.
Os cépticos continuarão a
dizer que, com ONU ou sem ONU, com o Papa Francisco ou sem o Papa Francisco, a
situação dos pobres e dos remendos para a minorar é muito antiga e desencorajante.
Os pobres, ao morrerem, continuarão a deixar, como herança aos seus
descendentes, apenas a sua pobreza.
A condição humana é
histórica, está a caminho, não está irremediavelmente condenada ou salva.
Esquecemos que a desigualdade entre os seres humanos começa cedo. Uns nascem em
berços de ouro, outros debaixo das pontes. O que lhe é próprio é não se render
ao infortúnio, nem a nível individual, nem a nível social. Quando alguém não
pode, precisa de quem o ajude e, para se realizar como humano, precisa de
ajudar. Mas, sem uma dimensão política em que seja possível procurar uma vida
de qualidade, em instituições justas, a nível individual e global, não há manta
que chegue para todos.
É verdade que ninguém dispõe
de soluções prontas a servir a dignidade humana de todos. Mas ninguém devia
dispensar a pergunta: eu não posso mesmo fazer nada?
O Papa Francisco faz o que
pode, mas não nos pode substituir.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 25.11.2018
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Sobre Saramago e Deus
Padre Anselmo Borges
O Centro de Literatura
Portuguesa da Universidade de Coimbra e a Câmara Municipal de Coimbra
organizaram nos passados dias 8, 9 e 10 de Outubro, no Convento de São
Francisco de Coimbra, um Congresso Internacional: "José Saramago: 20 anos
com o Prémio Nobel". Carlos Reis e Ana Peixinho pediram-me uma intervenção
sobre Saramago e Deus. O que aí fica é uma breve síntese da minha fala nesse
Congresso.
1. Numa entrevista dada a
João Céu e Silva, uma das últimas, se não a última, Saramago referiu-se-me com
admiração por ter lido e gostado do seu livro Caim. "Até fiquei
surpreendido quando ouvi um teólogo - uma coisa é um teólogo e outra um padre
-, Anselmo Borges, dizer que tinha gostado do livro." Mas na net também se
diz, e é verdade, que fui crítico por causa de alguma unilateralidade com que
Saramago leu a Bíblia. Assim, a minha intervenção quer ser essencialmente um
esclarecimento sobre essa minha dupla visão.
2. Saramago foi à Academia
Sueca dizer, no dia 7 de Dezembro de 1998, logo na primeira frase: "O
homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem
escrever."
Quando me expresso sobre o
diálogo inter-religioso, digo sempre, com escândalo de alguns, que desse
diálogo também fazem parte os ateus, os ateus que sabem o que isso quer dizer -
os crentes também só o são verdadeiramente se souberem o que isso quer dizer.
Fazem parte, porque são eles que, estando de fora, mais facilmente vêem as
superstições, as inumanidades e até as barbaridades que tantas vezes infectam
as religiões. Assim, à maneira de Saramago, também digo: foi com dois ateus que
aprendi do melhor da Teologia: Ernst Bloch e o nosso homenageado, José
Saramago. Mais com Bloch, porque, dada a situação da Teologia na universidade
alemã - em todas as universidades, há duas faculdades de Teologia, uma católica
e outra protestante -, ele tinha profundos conhecimentos bíblicos. Neste
enquadramento, refiro três pontos.
2. 1. Também sou ateu em
relação ao deus denunciado por eles. Porque é isso que se deve ser, se se
quiser manter a dignidade humana face a um deus brutal, irresponsável,
ciumento, mesquinho, tirânico, cruel, sádico, sanguinário... Neste sentido,
estou de acordo com Ernst Bloch, quando escreveu que "só um bom ateu pode
ser um bom cristão, só um bom cristão pode ser um bom ateu".
Previno que a boa exegese
mostra que nem sempre está no texto bíblico aquilo que o puseram a dizer e que
passou à tradição. Por exemplo, o caso de Isaac, cujo significado é o contrário
daquilo que frequentemente se ensinou: ao aparecer o cordeiro, Deus está a
proclamar que não quer o sacrifício de seres humanos. Mas, de facto, muitas
vezes foi a outra tradição que passou, aquela a que se referiu o prestigiado
biblista católico do século XX Norbert Lohfink quando constatou que a Bíblia
judaica é "um dos livros mais cheios de sangue da literatura
mundial".
Como aceitar um deus que
castigasse a humanidade inteira por causa de os primeiros pais terem comido uma
maçã? De qualquer modo, no quadro da evolução, quem foram os primeiros e como é
que poderiam ter um acto de liberdade tal que arrastasse consigo todos os males
do mundo, incluindo a morte? Que sentido pode ter um pecado original herdado,
de tal modo que todas as crianças seriam geradas em pecado, do qual só o
baptismo pode libertar?
E Jesus não foi enviado por
Deus para ser morto e com a sua morte pagar a dívida infinita da humanidade
para com Deus e Deus aplacar a sua ira e reconciliar-se com a humanidade. Que
pai decente imporia isso ao seu filho querido, condenando-o à morte?
Caim, segundo Saramago, vai,
castigado, pelo mundo, não sem perguntar a deus porque é que o não impediu de
matar o irmão, Abel. Deus é, pois, co-responsável por esse acto...
Trata-se de um deus
arbitrário, irresponsável, ciumento, pior do que nós.
Ficamos arrepiados, quando
lemos que Deus exigiu de Abraão que matasse o seu filho Isaac. O próprio
filósofo Sören Kierkegaard, que propunha Abraão como modelo da fé
incondicional, viu o horror da situação e diz que o miúdo voltou para casa e
deixou de acreditar em deus e Abraão nunca disse uma palavra a Sara sobre o
acontecido.
Sodoma e Gomorra. Lá também
havia crianças inocentes. E deus não se lembrou delas?
Babel. Deus, em vez de
castigar os homens pelo seu feito, deveria honrar-se com o êxito das suas
criaturas. É ciumento, invejoso.
Também no Dilúvio, deus não
teve compaixão para com os inocentes. A mesma acusação vale para a situação dos
filhos primogénitos dos egípcios.
Ah, e, aquando do nascimento
de Jesus, houve a matança dos inocentes e José não se preocupou. No regresso do
Egipto nem sequer perguntou às mães pela sua dor...
Do pior: as guerras
religiosas, pois é deus contra deus, e as vítimas são os homens e as mulheres e
as crianças... Como é possível deus mandar matar, haver guerras em nome de
deus?
2. 2. Ernst Bloch foi mais
longe. Sabendo Teologia e exegese, distinguiu muito bem duas camadas na Bíblia:
a do deus dos senhores, do deus dominador, tirânico, imoral e opressor e a do
Deus da libertação e dignificação de todos. Em conexão, viu também dois tipos
de Igreja: a Igreja dos senhores, a Igreja do poder inquisitorial, opressora, e
a Igreja dos pobres, do bem, da justiça, da paz. Para Bloch, há um duplo fio
condutor na Bíblia: o sacerdotal, em que domina o deus opressor, dos senhores,
e o profético-messiânico-apocalíptico, que anuncia o Reino de Deus, a herdar
meta-religiosamente como Reino do Homem: "Esta vida no horizonte do futuro
veio ao mundo pela Bíblia."
Jesus agiu como um homem bom,
escreve Bloch, "algo que ainda não tinha acontecido". Ele personifica
a bondade e o amor e nele exprime-se e realiza-se o melhor da esperança, o
ainda não do que a humanidade pode e deve ser. Ele não foi morto por Deus seu
Pai, mas pelo religião do Templo, a religião dos sacerdotes, que viviam da
exploração dos crentes.
O que devemos ao
cristianismo? O próprio conceito de pessoa foi dentro dos debates à volta da
tentativa de compreender Jesus Cristo que surgiu. Sabemos que nenhum homem pode
ser "tratado como gado": foi através de Jesus que o sabemos, porque
nele, por ele e com ele, se proclama a dignidade infinita de todo o ser humano.
Onde é que nasceu a
Declaração dos Direitos Humanos? Foi na China? Na Arábia?
Jürgen Habermas, o filósofo
mais influente da actualidade, agnóstico, escreveu que a democracia não é senão
a tradução para a política da ideia cristã de que cada homem e cada mulher são
filhos de Deus. Isso, politicamente traduzido, dá um homem um voto, uma mulher
um voto.
Não haveria o horror da
pedofilia, também na Igreja, se se ouvisse a maior proclamação de sempre feita
por Jesus sobre a dignidade das crianças: "Deixai vir a mim as
criancinhas, porque delas é o Reino de Deus", acrescentando logo a seguir:
"Ai de quem escandalizar uma criança: mais valia atar-lhe uma mó de moinho
ao pescoço e ser lançado ao mar."
Tudo isto para repetir o que
disse logo no início da minha fala: estou grato, muito grato, a Saramago, mas
não aceito a sua afirmação: "A história dos homens é a história dos seus
desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a
ele." A sua leitura foi unilateral.
3. O que é ser ateu? Quando
se diz que se é ateu, é preciso começar por perguntar o que se entende por isso
e concretamente em relação a que Deus se é ateu.
Há dois modos de negação de
Deus: a negação real e a negação determinada.
Por negação determinada
entende-se a negação de um determinado deus, de uma certa imagem de deus. Foi o
que Saramago fez. Como podia ele ou alguém intelectualmente honesto aceitar um
deus cruel e sanguinário? Daí a inversão da oração de Cristo na Cruz, no
Evangelho segundo Jesus Cristo. Onde no Evangelho se diz: "Pai,
perdoa-lhes porque não sabem o que fazem", lê-se em Saramago:
"Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez."
A negação determinada não
significa negação real. A pergunta é, portanto, se Saramago negou realmente
Deus ou se, pelo contrário, na negação do deus arbitrário e sanguinário não
está dialecticamente presente o clamor pelo único Deus verdadeiro, o do amor
incondicional, o do Antimal.
De qualquer modo, segundo
Saramago, "Deus é o silêncio do universo, e o ser humano o grito que dá
sentido a esse silêncio". "Esta definição de Saramago é a mais bela
que alguma vez li ou ouvi", escreveu o teólogo Juan José Tamayo.
"Essa definição está mais perto de um místico do que de um ateu."
4. No final da minha
intervenção, a viúva de Saramago, Pilar del Río, aproximou-se, agradeceu e
disse-me: sabe qual foi o contexto desse diálogo entre o meu marido e Tamayo?
Íamos os três pela Plaza de la Giralda, em Sevilha, e os sinos da catedral
repicaram, e Saramago: "Os sinos tocam porque está um teólogo a
passar." E Tamayo retorquiu: "Não, os sinos repicam porque um ateu
está prestes a converter-se ao cristianismo."
Padre e professor de
Filosofia
in DN 24.11.2018
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sexta-feira, 23 de Novembro de 2018
Tomáš Halík: “Deus gosta de quem luta com ele”
Entrevista de António Marujo
Imagem de Maria Wilton (não
incluídas)
“Deus não é um problema, é um
mistério. E a fé é a coragem de entrar na nuvem do mistério”, diz o teólogo
checo Tomáš Halík, que esta semana esteve em Lisboa, a propósito da edição do
seu último livro, Diante de Ti os Meus Caminhos (ed. Paulinas). Obra que cruza
as memórias e a reflexão teológica e antropológica a que o autor já habituou os
seus leitores, Halik percorre, nela, os anos da aproximação à fé cristã durante
a sua juventude, a opção pelo catolicismo e pela missão de presbítero, a
clandestinidade e as proibições e controlos a que foi sujeito, a morte do
colega Jan Palach, a democratização da então Checoslováquia ou a amizade com o
primeiro Presidente eleito, Vaclav Havel.
A partir do seu trabalho com
jovens estudantes, Halik traça, também, as suas reflexões sobre o papel do
cristianismo na contemporaneidade. “Não acredito numa Igreja sem feridas”, diz,
para manifestar a sua extrema preocupação com o fenómeno dos populismos
contemporâneos: “Comunismo e populismo não se podem comparar. No comunismo, precisamos
de coragem. Agora, precisamos de sabedoria.”
Ao longo da entrevista, Tomáš
Halík pára por vezes durante largos segundos para pensar na resposta. Noutras,
volta atrás, porque a ideia não estava a sair como pretendia. “Escrevo os meus
livros para pessoas com mentes e corações abertos”, dirá, a terminar.
P. – Nos seus livros, cita
várias vezes Nietzsche e, sobretudo, o seu “Assim Falava Zaratustra”. Neste
último, escreve mesmo que começou a ler Nietzsche e volta a ele sempre, em
diferentes momentos da sua vida.
Há várias similaridades entre
Nietzsche e SørenKierkegaard, que foi um grande cristão, não conformista.
Também há semelhanças com Pascal. Todos eles lutam contra um cristianismo
superficial e de massa. Nietzsche criticava Jesus mas há também alguns
capítulos no seu Anti-Cristo, que é como uma canção de amor e admiração por
Jesus. Penso que os críticos perspicazes são sempre bons parceiros para pensar,
provocadores do pensamento.
– Termina este novo livro
escrevendo: “Acredito que o NADA, ao qual nos dirigimos na morte, é apenas
outro nome maravilhoso de Deus.” Isto é uma profissão de fé cristã ou uma
declaração ateia?
– É uma citação do grande
místico Mestre Eckart: “Deus não é nada das coisas deste mundo.” É uma
purificação da idolatria presente em alguns dos nossos conceitos de Deus.
Alguns retratos de Deus são humanos e não podemos viver sem eles. Mas, se
esquecermos a diferença entre o símbolo e o que ele simboliza, isso é
idolatria, fundamentalismo. Mestre Eckart está a dizer: Deus não é nada assim.
Deus não é um problema, é um
mistério. E a fé é a coragem de entrar na nuvem do mistério, para viver este
mistério, este paradoxo da vida sem medo e com confiança.
– Esse mistério de que fala
tem algo a ver com o “horizonte absoluto” de que falava o Presidente Havel?
– Essa expressão de Havel é
inspirada em Martin Heidegger e no existencialismo. Sim, há alguma similitude.
Penso que é algo muito típico da espiritualidade checa: [muitos checos] não são
ateus, são muito sensíveis aos valores espirituais, mas não são capazes de
falar de Deus em termos tradicionais.
O “alguma coisa” é a religião
mais difundida no nosso tempo: “Não acredito em Deus mas alguma coisa deve
existir...” Este é um desafio para os teólogos, para a hermenêutica sobre o que
será “alguma coisa”. Deus não é “alguma coisa”, não é um assunto entre outros
assuntos, é algo muito diferente, o que nos provoca a meditar e ir mais fundo.
– No seu Paciência Com Deus,
recorda a história de uma parede em Praga onde alguém tinha escrito “Jesus é a
resposta”, e outra pessoa teria acrescentado “Mas qual era a pergunta?” A
Igreja e os cristãos têm demasiadas respostas para perguntas que esqueceram?
– Receio que sim.
– Pode dar um exemplo de uma
dessas perguntas mais importantes?
– A pergunta sobre o sentido
da vida. Não apenas enquanto questão teórica ou filosófica, mas uma questão
prática: em todas as decisões, na nossa vida, estamos a responder de forma
concreta à pergunta sobre o sentido da vida. O nosso agir é sempre uma resposta.
– Também escreve que muitas
vezes concorda com os ateus, mesmo em quase tudo. É possível um crente dizer
isso?
– Muitos ateus não são
inimigos de Deus, mas são inimigos de um certo tipo de teísmo, de uma teoria
humana sobre Deus. E há vários tipos de teísmo muito problemáticos. O ateísmo
pode ajudar-nos a purificar a nossa fé da idolatria.
– A secularização é um sinal
dos tempos, como o padre Arturo Sosa, o geral dos jesuítas, disse no último
Sínodo?
– Foi um sinal dos tempos em
décadas anteriores. Agora, vivemos num mundo pós-secular: apesar dos muitos
conceitos de secularização, é errada a ideia de que a religião está a
desaparecer. A religião não está a desaparecer, apenas desapareceu do ponto de
vista de alguns média e de alguns cientistas sociais dos séculos XIX e XX. Hoje
em dia, a religião está aqui.
Não diria que Deus e a
religião estão de volta, porque nunca desapareceram. Mas estão em
transformação. Somos testemunhas da grande transformação da religião. O modo
tradicional de viver a religião está cada vez mais débil, está a perder a sua
biosfera cultural e social.
– Em que sentidos se está a
transformar?
– A religião, por vezes,
transforma-se em ideologia política, algo muito perigoso; outras vezes,
transforma-se em espiritualidade, que deve ser desenvolvida para não nos
tornarmos em alguém que vira costas ao mundo, mas ante alguém que encara o
misticismo com olhos abertos.
Contemplação e acção: grandes
personalidades como o fundador da comunidade de Taizé, Roger Schutz, falavam da
contemplação e acção. E era isso que ele queria dizer: precisamos da teologia
pública e de uma religião pública, que esteja no mundo para defender os
direitos humanos. Não é preciso ter uma ideologia política para ser activo na
vida pública, mas antes ter uma dimensão mais profunda da contemplação e
espiritualidade.
– A indiferença é pior que o
ateísmo militante?
– Sim. Há um ateísmo
militante estúpido e é sempre difícil discutir com gente estúpida. Mas há
também o ateísmo de pessoas que têm os seus corações feridos, que estão feridas
por algum mal nas suas vidas. Devemos tomar essas pessoas seriamente porque
este sentimento de que não há Deus é também um momento que faz parte da nossa
fé cristã: é a fé da Páscoa, onde há morte e ressurreição.
Não há ressurreição sem cruz
e, por vezes, há crises de fé na nossa vida pessoal ou na História, como uma
participação mística no momento em que Jesus, na cruz, disse: “Meu Deus, meu
Deus, porque me abandonaste?” Devemos entender esta pergunta. A resposta da
ressurreição não é regressar ao Jesus do passado, mas abrir para uma nova
dimensão. Por vezes, na nossa própria história ou na história da Igreja e da
humanidade, algum tipo de fé tem de morrer. Mas, perante isso, o ateísmo não é
a única possibilidade, há uma fé mais profunda, um an-ateísmo, um acreditar de
novo. É a ressurreição da nossa fé, que é a transformação.
– Ao falar de pessoas
feridas, escreve no seu livro O Meu Deus é um Deus Ferido: “Ao tocar nas
feridas do mundo, tocamos em Deus.” Significa que no ateísmo e no agnosticismo
há também muitas feridas?
– Há pessoas que dizem “eu
gostaria de acreditar mas não consigo, porque estou tão ferido por este mal...”
Devemos abraçar este tipo de ateísmo para dizer às pessoas esta experiência que
é o absurdo do mal e o tempo de escuridão, a experiência da noite escura da
alma.
As noites escuras da alma são
um momento muito importante. Não devemos anular essas perguntas de modo
simplista, devemos abraçar essas pessoas, especialmente nas feridas dos
corações humanos.
– É esse o sentido do que o
Papa tem referido várias vezes, sobre a Igreja ser um hospital de campanha?
– Absolutamente, é uma grande
ideia. Louvo o Papa Francisco por essa ideia. Devemos desenvolver essa
metáfora, porque a Igreja deve também fazer prevenção, cura e recuperação das
feridas na nossa vida.
Uma das grandes doenças na
nossa vida é o populismo, o novo populismo, o racismo, a xenofobia, o medo e o
desespero, tão forte no nosso mundo. E não só a Igreja, mas também a imprensa
livre, as universidades, devem ser um hospital para curar essa doença. E também
trabalhar na prevenção, preparando as pessoas para confrontarem as mentiras, as
notícias falsas e todos esses [males].
– O que é pior: o populismo,
o racismo, a xenofobia ou um regime comunista, sem liberdade?
– Uma vez, uns americanos
disseram-me, numa conferência, que é tudo o mesmo. Contei-lhes uma anedota:
numa sinagoga, estava escrito: “se entrar sem o solidéu, é como cometer
adultério”. No dia seguinte, alguém tinha acrescentado: “Eu experimentei ambos,
mas não tem comparação.” Comunismo e populismo não se podem comparar: no
comunismo, precisamos de coragem; agora, precisamos de sabedoria.
– Subscreve a ideia do Papa
que diz que estamos já a viver uma nova guerra mundial aos bocados?
– Sou um pouco mais cauteloso
com a metáfora da guerra. É um confronto com muitos males no nosso mundo. O
populismo é o pior que conheço.
– Era amigo e muito próximo
de Vaclav Havel e de outros líderes da transição democrática checa. Qual era a
maior virtude de Havel?
– Era ser um defensor da
liberdade, da dignidade e dos direitos humanos. Muitas pessoas do nosso mundo
buscam a aprovação dos outros. Ele foi muito importante, não só para o nosso
país, mas também para o nosso mundo como um político que não era só um jogador
com poder, mas um pensador. Era uma inspiração moral e espiritual para o povo,
lutando contra preconceitos e estereótipos – o que requeria grande coragem,
porque muitos políticos dizem apenas o que as pessoas esperam.
Lembro-me que, uma vez,
estive num debate na televisão com um dos nossos políticos no poder. Quando
saímos, disse-lhe que o que ele tinha dito era mentira e ele respondeu:
“Verdade? O que é a verdade? Eu estou a falar com os meus eleitores e sei o que
eles querem ouvir. Não estou interessado na verdade.” Essa é a tragédia.
– Pilatos perguntou “o que é
a verdade?” e essa foi a única pergunta que Jesus não respondeu...
– Sim, porque ele era a
resposta. Nunca ouvi na vida esta pergunta de Pilatos, mas entendo-a. Foi a
mesma resposta desse político: não estou interessado na verdade, mas no poder.
O que se pode dizer ou responder? Jesus estava ali como a resposta.
“Tenho medo do populismo. Há
muitos monstros que devemos olhar nos olhos; se calhar, são parecidos connosco.”
– O Presidente Havel sugeriu
que lhe sucedesse no cargo. Porque recusou?
– Eu pensei nisso. Mas, como
padre e professor, muito próximo dos jovens, tenho possibilidade de dizer o que
verdadeiramente penso e o que é a minha consciência. A situação após a revolução
[1989-2003] era diferente, mas posso, na posição em que estou, servir a minha
nação um pouco melhor. Especialmente hoje, com a atmosfera no nosso país que,
como noutros, está tão destruída pelo populismo.
Alguém que lute contra estes
estereótipos não tem possibilidade de ganhar as eleições. Devemos preparar a
atmosfera moral, devemos ser um hospital de campanha e preparar as mudanças do
clima que se instalou na Europa e no resto do mundo. [Os populistas] sabem como
expressar o que as pessoas pensam ou os medos e a ansiedade com que vivem. E os
políticos são mestres em expressar e usar estes sentimentos das pessoas.
– Porquê?
– Isto está ligado ao
processo de globalização. A globalização foi a razão principal da queda do
comunismo: a economia estatal planificada e um regime que controlava as ideias
e a cultura não podiam aguentar-se num mercado livre de bens e ideias.
Agora, o processo de
globalização chegou a um ponto em que testemunhamos o seu lado negro. Há muita
gente desapontada, porque não é aceite ou não escutam os seus problemas, e
recebem instrumentos muito poderosos nas novas redes sociais, que são bolhas em
que as pessoas estão sempre expostas a preconceitos e a ouvir apenas o que
querem ouvir, não são confrontados com novas maneiras de ver o mundo. Por
vezes, digo que as redes sociais são redes anti-sociais. Nessas bolhas há
pessoas que apoiam e desenvolvem a sua ansiedade e agressividade. É um tempo
muito difícil.
– Tem medo deste aumento do
populismo?
– Claro que tenho. É um
grande problema. Estamos a viver tempos difíceis – é um tempo interessante, mas
difícil. Toda a gente tem a sua parte de responsabilidade e há muitas pessoas a
irradiar medo e agressividade. Por outro lado, pessoas como Vaclav Havel ou o
Papa Francisco irradiam confiança, humor, amor, esperança.
Há muitos monstros no nosso
mundo. Richard Kearney, um psicanalista, disse: se fores perseguido nos teus
sonhos por um monstro, olha o monstro nos olhos; provavelmente reconhecerás que
o monstro é um pouco parecido contigo. Devemos ter a coragem de olhar para
estes monstros nos olhos. Há tantas demonizações entre grupos de pessoas...
– Estamos a enfrentar os
mesmos monstros que nos levaram à Grande Guerra e à Segunda Guerra Mundial?
– Há algumas semelhanças. O
fascismo, o nazismo e o bolchevismo nasceram da crise económica, da grande
depressão económica, que alimentou esses monstros. Agora, não estamos numa
crise económica tão grande – no meu país, estamos muito bem –, é mais uma crise
espiritual do que económica, é uma crise de identidade.
Claro que ambas estão
ligadas: se há uma crise familiar, a família não tem capacidade de apoiar os
jovens para criar a sua própria identidade. As pessoas mais fracas estão à
procura de identidades colectivas: as seitas religiosas fundamentalistas, o
extremismo político da esquerda e da direita, um novo conservadorismo na
Igreja… Conheço muitos padres jovens que têm personalidades tão fracas que
procuram uma imagem forte de conservadorismo e a distância em relação às
pessoas. E isso é uma tragédia.
– Diz no livro que a sua
missão como padre é construir pontes: entre católicos e não católicos, crentes
e não crentes, diferentes gerações… Essa é uma experiência também física:
muitos diálogos que teve durante a oposição ao comunismo começaram na Ponte Carlos,
em Praga. A sua missão continua a ser a de fazer pontes?
– É mais difícil do que era
há dez anos atrás: para construir pontes, somos confrontados com agressividade
de ambos os lados, da esquerda e da direita. O meu autor preferido, G.K
Chesterton, disse: “Se os magros te dizem que és gordo e os gordos dizem que és
magro, pode significar que és normal.” Se somos atacados de ambos os lados,
pode ser bastante normal, apesar de não ser muito agradável. Mas é parte da
nossa missão e de dizer não ao radicalismo.
– Nos últimos anos também se
comprometeu no diálogo inter-religioso... Construir pontes no mundo religioso é
importante?
– Sim, muito importante.
Os contactos inter-religiosos
têm algum risco, que é permanecer apenas do domínio dos académicos – muçulmanos,
cristãos ou judeus. Entre eles entendem-se muito bem, mas melhor ainda do que
falarem entre si é, por exemplo, colocar juntos jovens de diferentes religiões
a dialogar, para entender a perspectiva do outro.
– Expressa no seu livro uma
grande admiração pelo Reino Unido. Lamenta o Brexit? Estamos a destruir uma
ponte entre europeus?
– Sim, acho o Brexitestúpido
e trágico. Eu estava na Universidade de Oxford quando soube [o resultado do
referendo] e todos os professores, que achavam que iam ficar dentro da UE,
ficaram em choque. É outro tipo de populismo. Agora, muitos britânicos querem
corrigir o erro. Seria uma possibilidade haver um segundo referendo, algo que
seria lógico, pois precisamos de uma Europa forte e unida.
No leste temos a Rússia de
Putin, um país muito perigoso: o bolchevismo acabou mas o mais perigoso foi o
nacionalismo e imperialismo russo. Putin tem nas mãos o poder de converter de
novo em colónias ou satélites os países à volta, colocando-os sob o seu
controlo. As fake news, que agora estão por todo o lado na internet, vêm da
Rússia com o propósito de destruir a confiança na UE, são um perigo muito
importante. Precisamos de saber distinguir a qualidade da informação quando a
vemos.
– Assinou uma carta, no ano
passado, de apoio ao Papa. Porque é que ele precisa do apoio das pessoas?
– Porque há uma parte dos
teólogos, padres e leigos que estão a lutar contra ele, pois querem voltar a um
tempo antigo. Mas não é possível regressar a uma guerra que acabou. Devemos
concentrar-nos em enfrentar os problemas do nosso mundo atual.
A oposição ao Papa Francisco
é muito semelhante à oposição dos fariseus contra Jesus. Eles queriam leis,
queriam prescrições severas e a mensagem do Papa Francisco é redescobrir o
verdadeiro coração do Evangelho: o amor, a solidariedade, responsabilidade
pelos pobres, responsabilidade pela criação. Isto não interessa a pessoas que
têm outra agenda. Ele é um perigo para estas pessoas porque tem novas ideias e
cria uma nova atmosfera – e este é o futuro da Igreja.
– Esse futuro depende do
Papa?
– O futuro da Igreja depende
da habilidade que ela tiver em comunicar com os que buscam. O número de pessoas
que se identificam completamente com a Igreja está a diminuir, mas também
diminui o número de ateus convictos. Já o número dos que procuram algo, pessoas
com mente aberta mas que não estão satisfeitas com esta forma de cristianismo,
está a aumentar.
Não devemos empurrar estas
pessoas para estruturas existentes, mas abrir as estruturas físicas e mentais
da instituição, enriquecendo-as com as experiências de quem anda à procura. O
futuro da Igreja depende da maneira como comunicamos com essas pessoas e como
os acompanhamos.
– Há limites na reforma
desejada pelo Papa Francisco? A questão dos abusos sexuais pode ser um desafio
ao ministério do Papa?
– Sim, porque é um grave
sinal dos tempos: não só os abusos sexuais, mas também os abusos de poder na
Igreja. Quando a Igreja perdeu o poder no mundo, muitos padres viraram este
poder para a Igreja em si e converteram-no em poder sobre mulheres e crianças
mais fracas.
A experiência desta explosão
de escândalos não é só problema de alguns indivíduos, é um grande problema da
Igreja. É algo como [depois do] Holocausto: na Alemanha, depois da Guerra,
muitos alemães receberam as notícias sobre o Holocausto – porque eles não
sabiam o que se passava – e viram-se confrontados com um grande mal que tinha
sido feito em nome da nação alemã.
Hoje, estamos a ser
confrontados com uma tragédia dentro da Igreja, de que muitos de nós não fazíamos
ideia. Temos de refletir acerca destes assuntos, penso que tenha sido o mau uso
da sexualidade e do poder. O que o Papa tem dito acerca do clericalismo está
correcto, mas é necessária também uma teologia mais profunda, a partir de um
ponto de vista antropológico acerca da humanidade e do papel da sexualidade na
vida humana.
– São precisos também
psicólogos nos seminários para aqueles que querem ser padres?
– Claro. Acho que muitos
padres não são muito preparados para o ministério na maioria dos seminários,
mesmo sem querer generalizar. Precisamos de melhor preparação espiritual e
psicológica.
– Escreve que, por vezes, o
seu corpo e a sua alma “doíam com o desejo pela mulher”. Não é habitual padres
católicos falarem deste modo, destes assuntos. Os padres deviam expressar mais
este tipo de sentimentos?
– Isso é parte da experiência
de muitos padres e todas as crises são uma possibilidade de ir mais além. É
possível transformar a energia e sentimentos sexuais em energia espiritual. Mas
não é fácil e receio que muitos seminaristas o consigam fazer.
O celibato nasceu nos
mosteiros, em comunidades com uma preparação espiritual muito grande. Talvez no
futuro volte a ser assim. Mas não tenho a certeza se não há um tempo para
pensar na possibilidade de viri probati, homens casados, serem ordenados.
Devemos falar e pensar no assunto abertamente, criticamente e de maneira
responsável.
“Os padres não deviam ser uma
casta. É bom ter padres que vivem no meio das pessoas comuns e partilhem o seu
modo de vida.”
– O padre Halík e o seu grupo
de padres clandestinos defendiam uma terceira via de padres católicos: além dos
padres das paróquias e da vida monástica, deveria haver padres a trabalhar no
meio das pessoas comuns e isso ser parte da sua identidade. É possível chegar a
esse ponto?
– Penso que sim. No futuro
será mais normal haver padres trabalhadores, um conceito que já havia em França
nos anos 1950. É uma experiência que tive e pela qual estou muito grato: ser
padre na paróquia e professor catedrático. É muito importante para não estar
tão isolado. Os padres não deviam ser uma casta, para ultrapassar a mentalidade
do clericalismo. Haverá sempre padres em paróquias e em mosteiros, mas é bom
ter padres que vivem no meio das pessoas comuns e partilhem o seu modo de vida
e os seus problemas com maior proximidade.
– O irmão Aloïs, de Taizé,
falou, no último Sínodo dos Bispos sobre os jovens, de uma Igreja acolhedora
para os jovens. Estamos longe desse desejo?
– É muito importante estar em
contacto com os jovens, que nem todas as pessoas da Igreja são capazes de ouvir
com paciência e humildade. Estamos habituados a ser mestres e, às vezes, temos
de ser os estudantes. Não posso falar no geral. Aloïs, de Taizé, é um grande
amigo e eu estive várias vezes em Taizé. A comunidade é um exemplo de como
convidar os jovens a partilhar a sua experiência, a estar juntos, a rezar
juntos. Tenho a mesma experiência na nossa paróquia académica: baptizei, nestes
quase 30 anos, mais de dois mil jovens, após dois anos de catecumenado. A nossa
paróquia está sempre cheia de jovens ao domingo, naquele a que chamam o “país
mais ateu”.
Isto depende do modo como se
comunica com estas pessoas e o que lhes podemos oferecer. Por isso, trabalhamos
com artes, retiros espirituais, alguns com filmes e análise desses filmes, arte
moderna na igreja barroca... Não é suficiente apenas celebrar a missa. As
pessoas querem atmosfera na sua vida para a sua busca espiritual. Se há alguém
que consegue fazer e inspirar isso, as pessoas virão. Nada está perdido mas
limitar-se apenas a repetir fórmulas ou ter um “aleluia, aleluia” emocional não
é suficiente.
Temos de tomar as pessoas a
sério e partilhar as suas questões e problemas, termos a mente aberta,
conhecendo a sua cultura e valores. É possível trabalhar com os jovens mas tem
de ser de modo diferente de antes.
– Pensou em ser padre
jesuíta. Porque é que a experiência e a espiritualidade jesuíta são tão
importantes para si?
– Há algo de muito corajoso
em ir para os lugares mais difíceis. E há uma certa disciplina e liberdade
interior em ser jesuíta. Os Exercícios Espirituais são uma obra prima, no
sentido de reconhecer como Deus está activo na normal experiência no dia-a-dia.
É algo que ensino aos jovens:
não esperem uma grande revelação, cada acontecimento da nossa vida é uma
revelação de Deus e ele está presente em todos os momentos, os bons e as
crises. Há palavras de Deus em acontecimentos da nossa vida e da nossa
sociedade, mas precisamos da cultura para os distinguir e contemplar, indo mais
e mais fundo. Para mim, essa é uma espiritualidade muito importante para a
Igreja e para o mundo.
“Escrevo os meus livros para
pessoas com mentes e corações abertos, que estão à procura e que têm questões e
dúvidas.”
– No livro Quero Que Tu
Sejas, escreve que a questão “Deus existe?” é semelhante a “O que é o amor?” Os
cristãos esqueceram esta ligação entre Deus e o amor?
– Não quero generalizar.
Temos de redescobrir esta ligação entre Deus e amor porque Deus é amor. Jesus
relativizou muitos valores mas havia algo que, para ele, era absoluto: o amor.
Digo por vezes aos jovens que não é tão importante acreditar em Deus, mas amar
Deus. E eles dizem “mas eu tenho que acreditar primeiro”. Respondo que não:
apenas na experiência do amor se pode perceber o que quer dizer a palavra de
Deus. Se não se tiver experiência com o amor ao mundo, aos outros, à natureza,
etc., Deus será uma palavra vazia. Só na experiência de amar as pessoas se pode
entender o que a palavra Deus quer dizer.
– Lemos nos seus livros
muitas referências acerca de muitas outras pessoas: Chesterton, em primeiro
lugar, porque é o seu autor favorito. Mas também muitos outros, diferentes,
como Kafka, Bonhoeffer, Unamuno, Tillich, Thomas Merton, Rahner, Graham Greene,
Fellini, Bergman, Dostoievski, James Jooyce, Jack Kerouac... Como descreveria o
seu trabalho de escrita, a partir de todas essas pessoas?
– Há uma tradição na cultura
humana, e também na religião e na Igreja, de pessoas que percebem o mundo e a
vida como um paradoxo. Vêm os dois lados e não estão satisfeitos com perguntas
simples, são capazes de sair dos paradoxos da vida. Podemos falar de São Paulo,
Santo Agostinho, Blaise Pascal, Kierkegaard, Chesterton e muitos outros –
incluindo o padre Tolentino [Mendonça], com quem partilho muitas semelhanças no
modo de pensar.
É importante escrever livros
teológicos não só como livros de dogmas e artigos de fé. Escrevo os meus livros
para pessoas com mentes e corações abertos, que estão à procura e que têm
questões e dúvidas, com sensibilidade espiritual. Não estão satisfeitas com as
respostas simples para questões complicadas e muitas delas precisam de alguém
que as acompanhe – não que as manipule, mas que as acompanhe. Esse é o sentido
da minha literatura e do meu trabalho pastoral.
in Blog http://religionline.blogspot.com
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Exclusive: Archbishop
Scicluna says February meeting start of ‘global approach’ to fighting sex abuse
Gerard O’Connell
In a decision highlighting the great importance he
gives to next February’s summit meeting on “the protection of minors in the
church,” to which he has called the presidents of all the Catholic bishops
conferences, Pope Francis has appointed a high-powered steering committee to
oversee the project.
The committee is composed of two cardinals, Blase
Cupich (Chicago) and Oswald Gracias (Bombay, India), and two of the church’s
experts in the field: Archbishop Charles Scicluna (Malta), and Father Hans
Zollner, a German Jesuit and president of the Center for Child Protection and
Director and professor of psychology at the Gregorian University in Rome, who
will serve as coordinator. The Vatican announced this today, November 23.
In this exclusive interview with America, Archbishop
Scicluna, whom the pope recently appointed as adjunct secretary of the
Congregation for the Doctrine of the Faith and who is also the president of its
tribunal for appeals, speaks about the significance and goals of the February
meeting, and how it will be conducted.
The Vatican announced today the archbishop will serve
on a committee overseeing the Vatican meeting along with Cardinals Blase Cupich
and Oswald Gracias and Jesuit Father Hans Zollner.
He described it as “a synodal meeting, the first ever
of its kind to address the issue of the sexual abuse of minors in the church.“
It is “quite significant” because it brings together the presidents of over 100
bishops conferences from around the world, and the heads of all the Eastern-rite
Catholic churches. Moreover, it is “a very important sign of what we call in
technical terms ‘affective collegiality,’ which means the bringing together of
bishops from around the world with the Holy Father to discuss important issues
and to get them to be on the same page with the Holy Father.”
He said Pope Francis called this summit meeting
because “he realizes that this issue,” namely the protection of children and
the prevention and addressing of sexual abuse by clergy in the church, “has to
be top on the church’s agenda.” The pope realizes that “this is a global issue,
it is not a case of geographical or cultural criteria, rather it is a global
issue which the church would want to approach with a united front, with respect
for the different cultures but with a united resolve and with people being on
the same page on it.”
While acknowledging that it is only four days long
(Feb. 21-24) and “is certainly not going to solve everything,” Archbishop
Scicluna emphasized that “it is a very important start of a global process
which will take quite some time to perfect.” As a result of this process he
hopes that “a number of initiatives on a continental level will start to happen
that will re-create the atmosphere of resolve, determination but also purpose
which I hope will mark the Rome meeting,” and will help “to address the issues
in a different number of cultures, that have their own restraints, their own
important positive aspects but also deficits that have to be discussed on a
continental but also local level.”
Archbishop Scicluna described the February meeting as
“the beginning of a new approach that I hope will be global, because it
concerns the whole church, but it will also have a very important local context
because safeguarding is not something up-there, it can’t be abstract, it has to
be lived in every parish, in every school, in every diocese, and so it has to
have an effect on the local level otherwise it’s not effective at all.”
He explained that the “main goals” of the meeting “are
to make bishops realize and discuss together the fact that the sexual abuse of
minors is not only an egregious phenomenon in itself and a crime, but it is
also a very grave symptom of something deeper, which is actually a crisis in
the way we approach ministry. Some call it clericalism, others call it a
perversion of the ministry.”
He recalled that Pope Francis “has talked a lot about
the way we go on with the stewardship of the community, not only as bishops but
also as priests,” and said “the issue not only concerns the individual tragic
cases of misconduct and the impact of that crime on the most vulnerable, the
children, but also the way stewardship is exercised when we are faced with the
issues; so the way we treat perpetrators, the way we treat victims, the way we treat
the community.” All this will be discussed in February.
“Accountability is part of stewardship,” the
archbishop stated. “Stewardship is not only accountability to God and to our
conscience, but also to our community,” he explained; “stewardship means doing
your job and doing it properly, especially when it is a question of care,”
whereas “cover-up” is “the antithesis of stewardship.” “When you cover-up,” he
said, “you are actually not solving a problem, you are deciding not to address
it, you are deciding to hide important consequences and avoid the demands of
justice, which is certainly not good stewardship.” He emphasized that “we have
to move away from panic-driven policies that put the good name of the
institution above all other considerations” and “in the end, those policies do
reputational damage to the institution; they are actually also
counterproductive, and it’s a no-go area.” He insisted that “we need to move
forward from any temptation to cover up any crimes. It is only the truth will
set us free.”
Archbishop Charles Scicluna of Malta arrives in
Osorno, Chile, on June 14, beginning a pastoral mission to promote healing in
the wake of a clerical sexual abuse crisis. (CNS photo/courtesy of Archdiocese
of Santiago)
Archbishop Scicluna declared that “if we have a
sickness in the body of the church, we need to face it, not to hide it, because
otherwise it will grow and do more damage.” He recalled that Pope Francis
“addressed the question of accountability in a law that he promulgated in 2016,”
in the decree “As a Loving Mother,” which “creates a procedure whereby bishops
who are negligent or not up to standard with their stewardship can be removed.”
Indeed, he said, “there is an old tradition according to which, if the bishop
is going to cause harm with his stewardship, then the See of Rome has the right
and the duty to remove such a bishop.”
In this context, he emphasized that “we cannot avoid
the important theological aspect that we bishops are stewards in a hierarchical
communion together with the Holy Father, and so there is a jurisdiction of the
Holy Father over each and every one of us bishops that we have to respect when
we talk of accountability within the context of the Roman Catholic Church.”
He said the February meeting aims to get bishops and
religious superiors “to realize the gravity of the situation,” to accept
ownership of the issue, and then “to address questions of stewardship,” which
means “not only how we care about our children, but also how we deal with cases
[of abuse] and so questions of accountability and transparency are of the
utmost importance,” and will be discussed at the meeting.
In this context, he said, “we bishops need to approach
the issue of the sexual abuse of minors together as churches, and we also need
to adopt what Pope Francis is calling ‘a synodal approach,’ that is we cannot
do it alone in our community, we need also to empower the lay people, the
laity, in order to help us be good stewards.”
He believes the meeting will communicate “the important
message” that “the prevention of abuse and protection and safeguarding of our
children and young people is not a question only of the bishop, it is a synodal
issue; it is something that involves the whole church and everyone in the
church around the world; it concerns one and all.”
Insisting on “this synodal aspect,” Archbishop
Scicluna said, “it is not only bringing the bishops together but also
approaching it on the local level as a community, in a synodal process. It
takes a village to educate a child, and it takes a village to prevent abuse and
to approach it properly wherever, unfortunately, it happens.”
He said Pope Francis wants the church to move forward
on this question in a synodal manner, following the doctrine of the Second
Vatican Council. He explained that “synodality means that we appreciate the
different charisms and gifts of the laity, their expertise, and that we empower
them to join bishops in the role of stewardship.” He added, “it’s not a
question of having control over the hierarchy, it is the hierarchy empowering
and facilitating the sharing of charisms which the Spirit also gives to the
laity, because there are gifts there that will help issues of prevention and
safeguarding that we need to bring on board, and we need to facilitate as
bishops.”
He recalled that Pope Francis highlighted this synodal
aspect in confronting abuse in his “Letter to the People of God” before his
visit to Dublin last August; “he wants that to be on the agenda of every
conference of bishops around the world” and at the Rome meeting he wants the
bishops “to listen to victims, to talk to experts, and to listen to each other
and to the concern that this issue brings before them.”
He expects the February meeting in process and
structure to be somewhat like a synod in so far as “there are going to be
plenary sessions; there are going to be language groups working, and then
reporting back; there are going to be prayer groups; there are going to be
listening to different stake-holders. It’s going to be a mixture of
information, formation, discussion. The idea is that certain values are not
only agreed upon, but also that certain priorities are put forward and adopted
by the bishops.”
There will be “a penitential liturgy” during the
meeting because “Pope Francis wants it,” Archbishop Scicluna said, “and victims
are going to be a part of that liturgy too, just as they will be consulted in
advance of the meeting, and be listened to during it.”
Some have spoken about the need for changes in Canon
Law so as to deal properly with the abuse issue. Commenting on this, Archbishop
Scicluna said, “Canon law always follows reality. To a certain extent it does
form people in a certain context like the 1983 code of canon law did form a
generation in the implementation of Vatican II.” Since canon law follows
reality, he said, “it will have to change in response to new issues and new
priorities in the church.” He envisaged, for example, the possibility of
changes that would give “a stronger role for the metropolitan bishops” and “a bigger
role for the victims in canonical penal processes.” He doesn’t think the
February meeting “is going to enter into the details of such reforms of canon
law” but he expects that “there will be an important input that will start a
process that may actually get a reform of canon law.”
Archbishop Scicluna hopes “that the spirit of this
meeting will be positive and proactive, and will also help to give a sign of
hope to the bishops themselves, to the whole church, to the People of God, and,
importantly to leadership at all levels in the church.”
The Vatican announced that in addition to the
presidents of the bishops conferences and the heads of the Eastern-rite
Catholic churches, there will be other participants too at the February
meeting, including the prefects of the C.D.F. and the congregations for the
evangelization of peoples, the oriental churches, bishops, the institutes of
consecrated life and the societies of apostolic life, and of the dicastery for
laity, the family and life. Representatives of the Union of Religious Superiors
and of the International Union of Superiors Generals are also invited.
The Maltese archbishop underlined the importance of
the presence of these major superiors because “they have hundreds of religious
under their care, most of them priests but also even lay religious and they
also are important stakeholders in education, in formation and in pastoral
care. Superior Generals for women religious will also be present. It is very,
very important to have the major superiors present and part of this process.”
In its statement today, the Vatican revealed that
besides the four members of the steering committee, many other people are
involved in the preparation for the meeting, including lay experts and two lay
women who are under-secretaries from the dicastery for the Laity, the Family
and Life: Gabriella Gambino and Linda Ghisoni. The Commission for the
Protection of Minors, headed by Cardinal Sean O’Malley, is also involved and,
most importantly, so too are “some victims of abuse by clergy.”
Referring to the steering committee, Archbishop
Scicluna said Pope Francis chose its four members to be “responsible for the
organization” and “for advising him” and the Secretariat of States. Their task
is to oversee the preparation for the meeting, and to ensure that everything is
done properly. He emphasized that the choice of Father Zollner as coordinator
of the committee is “an important reminder” that the meeting is “not only about
stewardship, it’s also about reflective stewardship”; he brings “the expertise
of psychology and best practices in prevention, which have to be part and
parcel of the stewardship role of the church.”
He concluded by repeating that the meeting is only
“the beginning of a process” and when it ends “we’ll have to leave the Holy
Father and his close collaborators any decisions for further meetings on a
continental basis, on a more decentralized basis. This is the beginning of a
process, it is not the beginning and end of something.”
in America The
Jesuit Review, 23.11.2018
/www.americamagazine.org/faith/2018/11/23/exclusive-archbishop-scicluna-says-february-meeting-start-global-approach-fighting?fbclid=IwAR3vNioNA1usYtNTKeNbabE05Fue4cltAcG_z5866-7Up_3tXCzHXVGgtoY
NOTA: Também pode ler em português
Papa cria comissão para organizar reunião inédita sobre abusos sexuais, no
site da Agência Ecclesia, http://www.agencia.ecclesia.pt/portal/vaticano-papa-cria-comissao-para-organizar-reuniao-inedita-sobre-abusos-sexuais/
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