02 junho 2013

O SEGREDO DA ALEGRIA DE JOÃO XXIII (2)

         
1. É próprio do moralismo destilar maldições sobre as mais autênticas alegrias humanas. Instalou-se, há muitos séculos, em certas correntes do cristianismo e reaparece, periodicamente, como se fosse a sua versão mais genuína pelo seu “desprezo do mundo”. É, na verdade, uma importação estranha à poética pregação de Cristo que respira, em cada gesto e em cada parábola, o gosto da plenitude da vida (Jo 20,30-31).
A evasão gnóstica foi denunciada por S. João ao falar de Cristo como Aquele que ouvimos, vimos com os nossos olhos e nossas mãos apalparam da Palavra da vida (…) E isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa (1 Jo 1, 1-4). A pregação e a intervenção da Igreja só valem na medida em que forem Evangelho, isto é, revelação de que, da parte de Deus, todos somos amados, mas com um encargo: amai-vos uns aos outros (Jo 15, 12-17).
Dir-se-á que qualquer um, em dia sim, poderia escrever algo parecido. Esqueci, nas transcrições referidas, uma frase que perturba essa veleidade: ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Não fica por aqui: sois meus amigos se esta for a vossa prática. Se os bons sentimentos não chegam para a boa literatura, também não são as boas intenções que nos salvam.
2. João XXIII agradeceu sempre a Deus ter nascido com bom feitio, mas nunca se contentou com o seu contagiante bom humor, testemunhado nos fioretti, que sobre ele foram publicados. Recorde-se a resposta que deu a quem lhe perguntou quantas pessoas trabalhavam no Vaticano: mais ou menos metade.
No Resumo das grandes graças feitas a quem tem pouca estima por si próprio, mas recebe as boas inspirações e as aplica com humildade e confiança, podemos ler:
«Primeira Graça: Aceitar com simplicidade e honra o peso do pontificado, com a alegria de poder dizer que nada fiz para o provocar, absolutamente nada; antes, com a preocupação diligente e consciente de não ter chamado a atenção sobre a minha pessoa; muito contente, durante as variações do Conclave, quando via alguma possibilidade de diminuir no meu horizonte e voltar-me para outras pessoas, verdadeiramente digníssimas e venerandas, em minha opinião.
Segunda Graça: Surgirem, no meu espírito, como simples e de execução imediata, algumas ideias, nada complexas, pelo contrário bastante simples, mas de vasto alcance e responsabilidade em relação ao futuro e com sucesso imediato. Exemplos da expressão: colher as boas inspirações do Senhor, “simpliciter et confidenter”!
Sem ter pensado nisso antes, terem saído de mim, numa primeira conversa com o meu Secretário de Estado, a 20 de Janeiro de 1959, palavras sobre o Concílio Ecuménico, o Sínodo Diocesano e a remodelação do Código de Direito Canónico, contrariamente a todas as minhas suposições ou pensamentos sobre este ponto.
O primeiro a ficar surpreendido com esta minha proposta fui eu próprio, sem que alguma vez me tivesse dado indicações a este respeito.
E dizer que tudo, depois, me pareceu tão natural no seu imediato e continuo desenrolar!
Depois de três anos de preparação laboriosa, é certo, mas também feliz e tranquila, eis-me agora nas faldas da Santa Montanha.
Que o Senhor nos ampare para conduzirmos tudo a bom termo».
3. João XXIII poderia dizer, como o poeta: o Concílio aconteceu-me. Numa nota escrita em 1959 pode ler-se: “Este é o mistério da minha vida. Não procureis outra explicação. Repeti sempre a frase de S Gregório Nanzianzeno: voluntas tua pax nostra”.
Ao longo de toda a sua vida, como testemunha o seu Diário, o que procurou, em primeiro lugar, foi cultivar a humildade para estar disponível, livre, para o que Deus quisesse fazer dele. Cada passo nesta direcção era um motivo de alegria. Ele gostava da sua família, gostou da vida no seminário, de ser padre, de ser bispo, de ser papa e de descobrir que tudo foram etapas para chegar ao ponto de sentir que o mundo inteiro era a sua família. Nessa altura, sentiu-se na onda de Deus. Não era uma conquista ideológica ou teológica, mas o fruto de ter amado todos aqueles com quem viveu e a quem foi enviado: Bulgária, Turquia, Grécia, França. Descobriu, não só outras faces da Igreja Católica, mas também a Igreja Ortodoxa, o Islão e o mundo laico. Foi um acolhimento transformador, dele próprio e dos outros. Tornou-se um pontífice, uma pessoa que faz pontes, que põe mundos em contacto.
Ao ler o Diário de João XXIII parece que tudo lhe acontece sem premeditação, mas não sem método: “o esforço vigilante de reduzir tudo, princípios, preocupações, posições, trabalho, ao máximo de simplicidade e de calma; o podar atentamente a minha vida daquilo que apenas é folhagem inútil e gavinha e dirigir-me à verdade, à justiça e à caridade, sobretudo à caridade. Qualquer outro sistema não é mais do que atitude e busca de afirmação pessoal que se trai e se torna embaraçante e ridícula. (…) Deixo aos outros a superabundância da astúcia e da chamada perícia diplomática e continuo a contentar-me com a minha bonomia e simplicidade de sentimentos, de palavra e de trato. O resultado final é sempre favorável a quem permanece fiel à doutrina e aos exemplos do Senhor”.
Frei Bento Domingues, O. P.
02.06.2013
in Público

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