23 julho 2017

JESUS NÃO GOSTAVA DE BROA? (1)

        1. A interrogação desta crónica tem raízes ocultadas e persistentes na teologia dos sacramentos. Regressou devido a graves problemas alimentares e simboliza a marginalização de questões abafadas na reflexão e na prática da inculturação da fé cristã. Saltou para aqui por alguma falta de humor.
       O Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos dirigiu uma Carta aos Bispos diocesanos – ou àqueles que, por direito, lhe são equiparados – para lhes recordar o dever de vigiarem a qualidade do pão e do vinho destinados à Eucaristia e à idoneidade daqueles que os fabricam. Um amigo, pouco versado na linguagem litúrgica, reagiu: querem ver que a ASAE já chegou à Missa!? Acrescentei: ou será que já andam para aí a celebrar com broa de milho?
      Um padre, muito zeloso, não gostou nada dessas mansas piadas: não admito que se brinque com uma das realidades mais sérias da nossa fé!
        Quando tentei mostrar que a Carta não era sobre a Eucaristia, mas apenas sobre a qualidade do pão e do vinho que lhe são destinados, a indignação não abrandou, pois estaríamos a desrespeitar uma zona sagrada que a protege. Não melhorei o ambiente ao dizer que antes do problema da qualidade do pão destinado à Eucaristia, existe um imperativo mais sagrado e mais cristão: lutar para que todos tenham o pão de cada dia, o alimento suficiente, como consta da mensagem do Papa Francisco ao Presidente da FAO. Lembrou-me, com razão, que essa não era a preocupação do Cardeal Sarah.
      Era preciso regressar a uma pergunta banal: que terá acontecido para motivar um texto cardinalício sem qualquer novidade?[1].
       A explicação é oferecida numa linguagem eclesiástica que alguns julgarão ser altamente ridícula. “Enquanto até agora, de um modo geral, algumas comunidades religiosas dedicavam-se a preparar com cuidado o pão e o vinho para a celebração da Eucaristia, hoje estes vendem-se, também, em supermercados, lojas ou mesmo pela internet. Para que não fiquem dúvidas acerca da validade desta matéria eucarística, este Dicastério sugere aos Ordinários que dêem indicações a este respeito; por exemplo, garantindo a matéria eucarística mediante a concessão de certificados.
       «O Ordinário deve recordar aos sacerdotes, em particular aos párocos e aos reitores das igrejas, a sua responsabilidade em verificar quem é que fabrica o pão e o vinho para a celebração e a conformidade da matéria (…)».
       A Carta funciona como um puro acto de memória. As normas acerca da matéria eucarística já estavam estabelecidas: 
       «O pão que se utiliza no santo Sacrifício da Eucaristia deve ser ázimo, unicamente feito de trigo, confeccionado recentemente, para que não haja nenhum perigo de que se estrague por ultrapassar o prazo de validade. Por conseguinte, não pode constituir matéria válida, para a realização do Sacrifício e do Sacramento eucarístico, o pão elaborado com outras substâncias, embora sejam cereais, nem mesmo levando a mistura de uma substância diversa do trigo, em tal quantidade que, de acordo com a classificação comum, não se possa chamar pão de trigo (…).
       «O vinho que se utiliza na celebração do santo Sacrifício eucarístico deve ser natural, do fruto da videira, puro e dentro da validade, sem mistura de substâncias estranhas… (...) Não se deve admitir, sob nenhum pretexto, outras bebidas de qualquer género, pois não constituem matéria válida»[2].
       2. Esta pureza ritual embate em graves problemas de saúde reconhecidos no citado documento. De facto, a própria Congregação para a Doutrina da Fé já tinha indicado as normas para as pessoas que, por diversos e graves motivos, não podem consumir pão normalmente confeccionado ou vinho normalmente fermentado[3]:
     «As hóstias completamente sem glúten são matéria inválida para a eucaristia. São matéria válida as hóstias parcialmente desprovidas de glúten, de modo que nelas esteja presente uma quantidade de glúten suficiente para obter a panificação, sem acréscimo de substâncias estranhas e sem recorrer a procedimentos tais que desnaturem o pão.
       «O mosto, isto é, o sumo de uva, quer fresco quer conservado, de modo a interromper a fermentação mediante métodos que não lhe alterem a natureza (p. ex., o congelamento), é matéria válida para a eucaristia.
       «Os Ordinários têm competência para conceder a licença de usar pão com baixo teor de glúten ou mosto como matéria da Eucaristia em favor de um fiel ou de um sacerdote»[4].
       3. Quando frequentei a catequese, os cuidados rituais para a comunhão exigiam, além do jejum desde a meia-noite até à hora de comungar, a tortura de engolir a hóstia, sem a mastigar e sem a deixar tocar nos dentes. Supunha que era para não magoar o Senhor, mas estava em oposição ao mandato de Jesus: tomai e comei e, na altura, reservada ao padre: tomai e bebei.
     Esta Carta dispensa essa tortura, mas liga a verdade e a eficácia sacramental da Eucaristia à pureza de um cereal – o trigo – e ao produto da videira, o vinho fermentado ou não.
      Urge uma alteração de paradigma na teologia dos sacramentos e da liturgia. Veio mais do mesmo. Se esquecermos as exigências universais das múltiplas faces da inculturação, continuaremos num beco sem saída.
       Temos de voltar a esta questão
       Frei Bento Domingues, O.P.
       in Público 23.07.2017



[2] Cf. Can. 924 do CIC e nos números 319 a 323 da Institutio generalis Missalis Romani, foram já explicadas na Instrução Redemptionis Sacramentum desta Congregação (25 de Março de 2004)
[4] Cf. Carta ao Perfeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, 9 de Dezembro de 2013, Prot. n. 89/78 – 44897.



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