1. A interrogação
desta crónica tem raízes ocultadas e persistentes na teologia dos sacramentos. Regressou
devido a graves problemas alimentares e simboliza a marginalização de questões
abafadas na reflexão e na prática da inculturação da fé cristã. Saltou para
aqui por alguma falta de humor.
O Cardeal Robert Sarah, Prefeito
da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos dirigiu uma
Carta aos Bispos diocesanos – ou àqueles que, por direito, lhe são equiparados
– para lhes recordar o dever de vigiarem a qualidade do pão e do vinho
destinados à Eucaristia e à idoneidade daqueles que os fabricam. Um amigo,
pouco versado na linguagem litúrgica, reagiu: querem ver que a ASAE já chegou à
Missa!? Acrescentei: ou será que já andam para aí a celebrar com broa de milho?
Um padre, muito zeloso, não gostou nada dessas mansas
piadas: não admito que se brinque com uma
das realidades mais sérias da nossa fé!
Quando tentei mostrar que a Carta não era sobre a
Eucaristia, mas apenas sobre a qualidade do pão e do vinho que lhe são destinados,
a indignação não abrandou, pois estaríamos a desrespeitar uma zona sagrada que
a protege. Não melhorei o ambiente ao dizer que antes do problema da qualidade
do pão destinado à Eucaristia, existe um imperativo mais sagrado e mais
cristão: lutar para que todos tenham o pão de cada dia, o alimento suficiente,
como consta da mensagem do Papa Francisco ao Presidente da FAO. Lembrou-me, com
razão, que essa não era a preocupação do Cardeal Sarah.
Era preciso regressar a uma pergunta banal: que terá acontecido
para motivar um texto cardinalício sem qualquer novidade?[1].
A explicação é oferecida numa linguagem eclesiástica que
alguns julgarão ser altamente ridícula. “Enquanto até agora, de um modo
geral, algumas comunidades religiosas dedicavam-se a preparar com cuidado o pão
e o vinho para a celebração da Eucaristia, hoje estes vendem-se, também, em
supermercados, lojas ou mesmo pela internet. Para que não fiquem dúvidas acerca
da validade desta matéria eucarística, este Dicastério sugere aos Ordinários
que dêem indicações a este respeito; por exemplo, garantindo a matéria
eucarística mediante a concessão de certificados.
«O Ordinário deve recordar aos sacerdotes, em particular
aos párocos e aos reitores das igrejas, a sua responsabilidade em verificar
quem é que fabrica o pão e o vinho para a celebração e a conformidade da
matéria (…)».
A Carta funciona como um puro acto de memória. As
normas acerca da matéria eucarística já estavam estabelecidas:
«O pão que se utiliza no santo Sacrifício da
Eucaristia deve ser ázimo, unicamente feito de trigo, confeccionado
recentemente, para que não haja nenhum perigo de que se estrague por
ultrapassar o prazo de validade. Por conseguinte, não pode constituir matéria
válida, para a realização do Sacrifício e do Sacramento eucarístico, o pão
elaborado com outras substâncias, embora sejam cereais, nem mesmo levando a
mistura de uma substância diversa do trigo, em tal quantidade que, de acordo
com a classificação comum, não se possa chamar pão de trigo (…).
«O vinho que se utiliza na celebração do santo
Sacrifício eucarístico deve ser natural, do fruto da videira, puro e dentro da
validade, sem mistura de substâncias estranhas… (...) Não se deve admitir, sob
nenhum pretexto, outras bebidas de qualquer género, pois não constituem matéria
válida»[2].
2. Esta
pureza ritual embate em graves problemas de saúde reconhecidos no citado
documento. De facto, a própria Congregação para a Doutrina da Fé já tinha indicado
as normas para as pessoas que, por diversos e graves motivos, não podem
consumir pão normalmente confeccionado ou vinho normalmente fermentado[3]:
«As hóstias completamente sem glúten
são matéria inválida para a eucaristia. São matéria válida as hóstias parcialmente desprovidas
de glúten, de modo que nelas esteja presente uma quantidade de glúten
suficiente para obter a panificação, sem acréscimo de substâncias estranhas e
sem recorrer a procedimentos tais que desnaturem o pão.
«O mosto, isto é, o sumo de uva, quer
fresco quer conservado, de modo a interromper a fermentação mediante métodos
que não lhe alterem a natureza (p. ex., o congelamento), é matéria válida para
a eucaristia.
«Os Ordinários têm competência para conceder a licença
de usar pão com baixo teor de glúten ou mosto como matéria da Eucaristia em
favor de um fiel ou de um sacerdote»[4].
3. Quando
frequentei a catequese, os cuidados rituais para a comunhão exigiam, além do jejum
desde a meia-noite até à hora de comungar, a tortura de engolir a hóstia, sem a
mastigar e sem a deixar tocar nos dentes. Supunha que era para não magoar o
Senhor, mas estava em oposição ao mandato de Jesus: tomai e comei e, na altura,
reservada ao padre: tomai e bebei.
Esta Carta dispensa essa tortura, mas liga a verdade e
a eficácia sacramental da Eucaristia à pureza de um cereal – o trigo – e ao
produto da videira, o vinho fermentado ou não.
Urge uma alteração de paradigma na teologia dos
sacramentos e da liturgia. Veio mais do mesmo. Se esquecermos as exigências universais
das múltiplas faces da inculturação, continuaremos num beco sem saída.
Temos de voltar a esta questão
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 23.07.2017
[2] Cf. Can. 924 do CIC e nos números 319 a 323 da Institutio generalis
Missalis Romani, foram já explicadas na Instrução Redemptionis Sacramentum desta
Congregação (25 de Março de 2004)
[3] Carta-circular
aos Presidentes das Conferências Episcopais acerca do uso do pão com pouca
quantidade de glúten e do mosto como matéria eucarística ( 24 de Julho de 2003, Prot. n. 89/78-17498)
[4] Cf. Carta ao Perfeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos
Sacramentos, 9 de Dezembro de 2013, Prot. n. 89/78 – 44897.
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