25 março 2018

JERUSALÉM, SÍMBOLO DA GUERRA OU DA PAZ?

          
       1. Nunca fui a Jerusalém. Um grande amigo que lá viveu 45 anos e lá morreu, Frei Francolino Gonçalves, nunca tentou convencer-me de que essa seria a peregrinação indispensável. Se não pudesse dispor pelo menos de um mês para observar e estudar as suas loucuras e contradições, era melhor não pôr lá os pés. Lamentava que as «peregrinações paroquiais» se esquecessem de visitar e apoiar as comunidades cristãs vivas, de língua árabe, e se fixassem apenas em pedras e lugares sagrados da memória, resgatados pela arqueologia.
Li narrativas, reportagens e obras sobre a chamada Terra Santa e os seus lugares de importância diferente para judeus, cristãos e muçulmanos.
       Sei que o conhecimento directo da geografia dos acontecimentos bíblicos, históricos ou lendários, pode ajudar a imaginação de um leitor da Bíblia. Não consigo, porém, entrar na ideologia dos lugares sagrados ou santos. Esta facilmente resvala para a idolatria e para a magia. Um bom negócio, em todo o mundo, contra o qual o próprio Jesus se insurgiu. Sagradas são as pessoas de todos os povos e culturas. Nem acho graça nenhuma que um povo, seja ele qual for, se possa chamar povo de Deus, como um privilégio. Os outros povos de quem são?
       Jesus teve um encontro inesperado com uma Samaritana. Um encontro fantástico. Entre outras questões, ela procurou tirar a limpo a dos lugares sagrados: os nossos pais adoraram neste Monte (Garizim), mas vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar. Jesus, depois de muitas considerações, concluiu: Vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade[1]. Deus não está preso a nenhum lugar.
       2. Começam hoje, Domingo de Ramos, as celebrações católicas da Páscoa. Nesta época, as televisões repõem filmes sobre a Paixão de Cristo, as instituições culturais promovem concertos de música sacra e as igrejas cristãs, cada uma com o seu estilo, tentam que a mensagem de Cristo não seja apenas uma memória do passado, mas um alimento transformante da vida. Nada disso sai fora do previsível, mas o que desejava que acontecesse seria um imprevisível concreto e para já: Paz em Jerusalém entre judeus, cristãos e muçulmanos.
      Nada disto é da ordem do impossível nem está fora das referências e horizontes das chamadas religiões monoteístas. José Ornelas Carvalho, actual bispo de Setúbal, escreveu um texto sobre A utopia da paz na Bíblia que considero uma informação exemplar[2].
       Em Israel, como em todo o antigo Médio Oriente, o ideal da sabedoria e da aprendizagem consistia em conseguir uma vida feliz, tendo em conta todas as dimensões da existência humana. Por isso, os sábios tratavam dos mais variados assuntos, como as questões da alimentação, da vida familiar, dos negócios, do relacionamento social, do cerimonial e do relacionamento com o mundo de Deus. Sábia era a pessoa que conseguia harmonizar todas estas dimensões da vida. Nesta perspectiva, o fruto da sabedoria é a paz.
       O Salmo 122 não pode ser mais entusiasta: «Que alegria quando me disseram vamos para a casa do Senhor! Os nossos pés estão já às tuas portas, ó Jerusalém (…) Nela estão os tribunais da justiça, os tribunais da casa de David. Pedi a paz para Jerusalém: Prosperem aqueles que te amam; haja paz dentro das tuas muralhas, tranquilidade nos teus palácios. Por amor dos meus irmãos e amigos, proclamarei: a paz esteja contigo! Por amor da casa do Senhor, nosso Deus, pedirei o bem-estar para ti».
       E os outros? Desta visão idílica, desta ideologia da paz, como privilégio étnico e divino de um povo, nasce a guerra santa contra os que a ameaçarem.
      O ideal da paz institucional, baseado nos dois pilares, a monarquia e o templo, foi manipulado pelos que dela beneficiavam. Israel conheceu, muitas vezes, uma situação de ditadura – defendida em nome de Deus – ao sacralizar as suas instituições políticas. Os profetas como Miqueias, Jeremias e Ezequiel denunciaram aqueles que usavam o nome de profetas para enganar o povo e justificar a injustiça. No entanto, apesar de todos os esforços, Deus não se julgou atrelado ao destino de Israel e da sua paz. Pelo contrário. A eleição de Deus não é nem ritual nem automática. Ao dom de Deus deve corresponder um compromisso ético e religioso. Por isso, bênçãos e maldições estão sempre misturadas.
        3. Jesus de Nazaré subiu muitas vezes a Jerusalém[3], a cidade dotada por Herodes, o Grande, de magníficas construções, que não o fascinavam. Foi lá que, pela última vez, confrontou os seus contemporâneos com a sua mensagem e a sua pessoa. Aí morreu cruxificado. Foi em Jerusalém que se formou a primeira comunidade cristã. Foi daí que a pregação do Evangelho partiu para o mundo.
       Foi também nesta cidade que se reuniu o primeiro concílio da Igreja[4] para dirimir questões entre duas tendências do movimento cristão. A que desejava que os gentios convertidos aceitassem também a lei e os costumes judaicos e a outra, liderada por S. Paulo, que não podia aceitar que para ser cristão fosse necessário adoptar essa lei e costumes. A graça de Deus não fazia distinção de pessoas ou povos. Essas novas comunidades mistas, de judeus e gentios, realizavam o começo do universalismo cristão. O espírito de Jesus Cristo sentia-se livre e actuante em toda a Terra. O cristianismo não era uma sucursal do judaísmo.
      A partir do que foi acontecendo em Antioquia, Éfeso e Roma, Jerusalém deixou de ser o centro do cristianismo[5].
    Os muçulmanos chamam a Jerusalém, Al-Qods, «a santa» em árabe. Acreditam que foi lá que aconteceu a ascensão de Maomé ao céu. Jerusalém é o terceiro lugar sagrado do Islão.
      Aqui, surge uma questão que muitos peregrinos levantam: é isto a «Terra Santa», é esta a cidade da paz? Haverá um só Deus para tantas guerras?
    As religiões que se reclamam de Jerusalém, pelo menos nominalmente, representam dois mil milhões de habitantes da Terra. O seu bom ou mau exemplo encerra uma responsabilidade mundial. Em vez de judeus, cristãos e muçulmanos continuarem a disputar, pedaço a pedaço, a ocupação desta cidade, não seria preferível estabelecerem uma aliança que faça de Jerusalém a cidade da paz, um símbolo real de que o convívio amigo, entre as religiões, é possível? Era, por isso, importante que a sua gestão municipal resultasse de um acordo entre judeus, cristãos e muçulmanos[6]. Um sonho?
      Santa Páscoa!
      Frei Bento Domingues, O.P.
      in Público 25.03.2018


[1] Jo 4
[2] José Ornelas Carvalho, A Utopia da Paz na Bíblia, Cadernos ISTA nº 9, Ano V 2000, pp.62-102
[3] Lc 13, 34s; Jo 2, 13. Sobre a situação de Jerusalém no tempo de Jesus, aconselho a longa Introdução de Xavier Léon-Dufour, ao Dictionaire du Nouveau Testament, Seuil, Paris 1975.
[4] Act 15
[5] Rm 15, 19
[6] Álvaro Vasconcelos, Jerusalém cidade aberta, Público, 10.12.2017

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