18 março 2018

QUANDO PERDER É GANHAR

     
1. Não fui eu que inventei o título desta crónica. Vem direitinho do Evangelho segundo S. João, com paralelo em S. Lucas, escolhido para ser proclamado na Missa deste Domingo. Quem, dentro ou fora dessa celebração, gastar algum tempo a meditar e a confrontar a sua vida com este texto, absolutamente espantoso, só tem a ganhar. A sua lógica é estranha, mais acertada, porém, do que qualquer outra lógica mundana, religiosa ou eclesiástica.
Começa numa conversa e vai acabar noutra. O contexto já é o da Páscoa judaica: seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde estava Lázaro que Jesus tinha arrancado da morte. Por esse motivo, a família de Lázaro ofereceu um jantar em sua casa. Pelos vistos, os discípulos também foram convidados.
Marta, como de costume, estava a preparar tudo e a servir à mesa. Maria, a irmã, era mais para o louco e foi buscar o melhor perfume para lavar os pés de Jesus. Enxugou-os com os seus cabelos. O seu reconhecimento por ver o irmão vivo era sem medida. Toda a casa ficou perfumada por aquela alegria.
Judas Iscariotes não gostou dessa extravagância. Aproveitou a cena para se mostrar o defensor dos pobres e marcar pontos aos olhos do Mestre: porque não se vendeu este perfume por trezentos denários – eram 300 dias de trabalho normal – para os dar aos mendigos? O narrador observa com malícia: ele disse isto, não porque se preocupasse com os mendigos, mas porque era ladrão e, como tinha a bolsa comum, metia a mão na massa; o “pobre” a beneficiar com a poupança seria ele próprio. Jesus cortou essa conversa e disse algo que teve consequências dramáticas: mendigos tendes sempre entre vós. Esta fala foi usada pelos exploradores para não se tocar nas injustas estruturas da sociedade. Jesus teria consagrado a desordem social. Se lermos bem, descobrimos que essa não era e não é o sentido da fatídica sentença. Verificaremos que Judas estava numa onda e Jesus noutra totalmente diferente. Pobres, desgraçadamente, nunca faltam. O que continua a faltar é a vontade de acabar com as causas da pobreza imposta.
Por outro lado, o autor do IV Evangelho não está a escrever uma reportagem jornalística, mas a fazer uma meditação retrospectiva, seleccionando enigmas e mistérios. A sua narrativa sabe que o fim trágico de Jesus estava a aproximar-se. Não iria morrer na cama rodeado de familiares e amigos. Daí, o seu empenho em defender a loucura de Maria, pois escreve para destacar a solidão imensa do Mestre - até os discípulos o abandonaram - e a paixão das mulheres por Aquele que lhes restituiu a dignidade humana e divina de filhas de Deus. Foram elas que acompanharam Jesus até ao fim e até depois do fim!
Isto para dizer que a situação externa daquele jantar estava carregada de tensões. Todos queriam ver Lázaro, o miraculado e Jesus, o autor do acontecimento. Os sumos-sacerdotes, os que viviam da religião oficial e do fluxo enorme de peregrinos naquela data, sentiram a ameaça. Muitos judeus estavam a passar-se para o lado de Jesus. Deliberaram matar os dois.
Entretanto, tudo se agravou. A multidão que tinha vindo para a Páscoa aproveitou o momento para uma ruidosa manifestação de apoio a Jesus, o Nazareno. Os discípulos, como sempre, não entendiam o que se estava a passar. Os fariseus estavam desesperados com aquele sucesso: todo o mundo vai atrás dele![i]
2. No meio daquela multidão, havia uns gregos simpatizantes do judaísmo (os «tementes a Deus»), intrigados com o que estava acontecer. Pediram, então, a um discípulo galileu, Filipe, nada menos do que isto: queremos ver Jesus.
O evangelista, como é sempre o seu costume, apresenta a resposta como se Jesus não tivesse percebido.
De facto, tinha chegado o momento sobre o qual já nenhuma ilusão era permitida. Jesus, no meio daquela confusão toda, talvez se interrogasse acerca do sentido do caminho percorrido com os discípulos, com as multidões e com os adversários cada vez mais agressivos e ameaçadores.
      Dada a sua teologia, S. João apresenta Jesus angustiado, mas não vencido. É chegada a hora em que o Filho do Homem será glorificado.
        A partir desse instante já não era possível recuar sem trair todo o sentido da sua vida e o Deus da sua paixão.Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto. Quem ama a sua vida; perdê-la-á e quem a perder neste mundo conservá-la-á para a vida eterna. Se alguém me quiser servir, que me siga. Onde eu estiver, estará também o meu servo. Se alguém me servir, meu Pai o honrará. Agora a minha alma está perturbada. E que hei-de dizer? Pai salva-me desta hora? Mas por causa disto é que eu cheguei a esta hora. Pai glorifica o teu nome”.
     S. João não está longe da versão de S. Lucas quanto à exigência libertadora no seguimento de Cristo: Aquele que quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará[ii]. Realça: que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se ele se perder ou arruinar a sua humanidade?
3. Chegamos ao ponto essencial. Os discípulos de Jesus passaram o tempo a perguntar-lhe: que ganhamos nós em te seguir? A resposta foi sempre a mesma: a capacidade de servir alegria, de gastar a vida pela vida verdadeira de todos, a começar pelos mais abandonados. É por esse caminho que nos tornamos verdadeiramente humanos.
       Durante os tempos de Cristandade, perderam-se, na Igreja, muitas energias para conseguir e defender o poder de dominar. No entanto, em todos os momentos de verdadeira reforma, a referência incontornável continuou a mesma: é perdendo o poder de dominar que se ganha o gosto da vida como dom, a alegria verdadeira[iii].
Os Actos dos Apóstolos recolhem um aforismo de Jesus que não se encontra em mais lado nenhum. É referido por S. Paulo ao despedir-se dos anciãos de Éfeso: “Não desejei prata, ouro, nem o vestuário de ninguém. Vós próprios sabeis que às minhas necessidades e às dos meus companheiros valeram-me estas mãos. Mostrei-vos, de todos os modos, que trabalhando assim, devemos ajudar os fracos, lembrando as palavras do próprio Senhor Jesus: Há mais felicidade em dar do que em receber”[iv].
Dir-se-á que tudo isto está muito datado. Hoje, a economia, a política, as religiões já superaram essa ingenuidade e as suas ideologias globalizaram sistemas de dominação imperialista e de confronto bélico. Não valeria a pena interrogar as famílias, as instituições católicas de ensino a todos os níveis, a pastoral da Igreja nas suas diversas expressões, com a seguinte questão: será que nesses nichos católicos crescem pessoas com as “manias” de Jesus Cristo?
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 18.03.2018


[i] Jo 12, 1-19
[ii] Jo 12, 20-33; Lc 9, 23-26
[iii] Yves Congar, O.P., Igreja serva e pobre, Logos, Lisboa 1964; Javier Elzo,
   Quién manda en la Iglesia?, PPC, Madrid 2016
[iv] Act 20, 32-38.

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