1. A Quaresma é
uma questão muito séria de toda a Igreja e de cada cristão: é o reconhecimento
de que não estamos irremediavelmente perdidos. Não existe nenhuma situação que
não possa ser alterada. O aforismo ecclesia
semper reformanda não é apenas realista é também um caminho de esperança.
Os rituais da penitência não deveriam servir para mostrar que uns têm remédio e
outros estão em situações irregulares irremediáveis,
reduzidos ao estado de limbo eclesial.
Este tempo único começou com a imposição das cinzas:
lembra-te que és pó da terra e à terra hás-de voltar. Hoje, com a cremação, és
pó e nem à terra voltarás. Era uma declaração muito empírica, mas um bocado
niilista. Parece-me que a nova fórmula é mais estimulante: arrependei-vos e acreditai no Evangelho[1],
como quem diz, é urgente mudar porque é urgente a alegria. O pecado estraga,
a graça do perdão liberta e abre o futuro.
O texto do Evangelho escolhido para essa celebração não
alinha com um costume, que eu ainda conheci, de pôr as igrejas de luto e os
santos de roxo. Atreve-se a desencorajar a religião do espectáculo, a
dificultar a estatística do bem-fazer e o reconhecimento público dos
benfeitores da igreja e das obras de caridade. Ao turismo religioso, dentro e
fora dos templos, chama exibicionismo hipócrita.
A conversa de Jesus não tinha nada de teórico. Era dirigida
aos discípulos e a todos os que desejam seguir o seu caminho e que calculam o
que podem ganhar e perder com essa opção. Não tem o estilo capcioso e sedutor
de quem anda a angariar adeptos com prémios e promessas. O melhor é ler o texto
todo: “Tende cuidado em não praticar as vossas acções diante dos homens para
serem vistos por eles. Aliás, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que
está nos Céus. Assim, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti,
como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serdes louvados pelos
homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Quando deres
esmola, não saiba a tua mão esquerda o que fez a direita, para que a tua esmola
fique em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto te dará a recompensa.
Quando rezardes, não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de orar de
pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas para serem vistos pelos homens. Em
verdade vos digo, já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando rezares entra
no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e o teu Pai, que vê o
que está oculto, te dará a recompensa. Quando jejuardes, não tomeis um ar
sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto, para mostrarem aos homens
que jejuam. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém,
quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não
percebam que jejuas, mas apenas o teu Pai que está presente em segredo; e o teu
Pai, que vê o que está oculto te dará a recompensa[2].”
Parece que, agora, na missa, para que se note quem reza como
deve ser, ajoelha. De outro modo, não consegue chamar a atenção para a sua ortodoxia.
2. No primeiro
Domingo da Quaresma[3],
Jesus foi fazer um retiro para o deserto. Parece que não foi nem um tempo nem
um lugar de sossego. Todas as versões falam de tentações e tentações
diabólicas. Afinal tinham a ver com as esperanças messiânicas: resolver, de uma
vez por todas, os problemas do povo.
O caminho imperial proposto por Satanás exigia que Jesus
sacrificasse tudo à dominação económica, política e religiosa. De forma
espectacular. Se estabelecesse esse império não teria rival e mostrava que era
mesmo o filho de deus poderoso.
Esse programa tinha um pequeno inconveniente: era a
substituição da vontade libertadora de Deus pelo império dos interesses do Dinheiro.
A alegria do Evangelho teria de esperar. Jesus mandou bugiar essas propostas
diabólicas. S. Lucas dirá: o assunto não ficou definitivamente resolvido. Tendo acabado toda a tentação, o Diabo o
deixou até o tempo oportuno[4].
Passaram mais de dois mil anos e o “diabo” parece cheio de
oportunidades e acólitos. São os interesses do dinheiro que fazem do mundo
actual uma distribuição de matadouros. Não é de quem governa os Estados Unidos,
não é de quem manda na Rússia e no império que procura, não é de quem exige na
China um poder sem limite, que podemos esperar a paz mundial.
Para estes impérios o dinheiro não é para os seres humanos.
Os seres humanos existem para eles terem cada vez mais poder de decisão de tudo
e de todos.
3. A liturgia
deste Domingo, terceiro da Quaresma, está centrada na indignação e na revolta
de Jesus contra a religião transformada em negócio. Subiu a Jerusalém e
encontrou no templo os vendedores de bois, de ovelhas, de pombas e os cambistas
sentados às bancas. Tudo o que era preciso para um culto bastante caro de
judeus que vinham para a Páscoa, de todo o lado. Conta S. João que “Jesus fez um
chicote de cordas e expulsou-os todos do Templo, com as ovelhas e os bois;
deitou por terra o dinheiro dos cambistas, derrubou-lhes as mesas e disse aos
que vendiam pombas: tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai casa
de comércio.”
Os judeus perguntaram-Lhe, com razão: que sinal nos dás que podes proceder deste modo? Jesus não
facilitou uma resposta inteligível, pelo contrário, tornou a conversa
impossível: destrui este templo e em três
dias o levantarei.”
Era evidente que Jesus já falava de outro templo e os seus
dias estavam contados.
Jesus passou a não acreditar em nada daquilo e a não se fiar
nem sequer naqueles que O louvavam e diz algo de extraordinário. Ele bem sabia o que há no homem.
Para uma próxima crónica teremos de enfrentar a questão
fundamental de toda a Quaresma e de toda a Semana Santa. Vem expressa de forma
incrível no prefácio da Oração Eucarística II: “Para cumprir a Vossa vontade e
adquirir para Vós um povo santo, estendeu os braços e morreu na cruz; e,
destruindo assim a morte, manifestou a vitória da ressurreição.”
Que vontade de Deus era essa que exigia o suicídio de Jesus
de Nazaré? Afinal, quem O matou?
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 04.03.2018
[1]
Mc 1, 15
[2]
Mt 6, 1-6. 16-18
[3]
Mc 1, 12-15
[4]
Lc 4, 13
● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●
À PROCURA DA PALAVRA
P. Vitor Gonçalves
DOMINGO III QUARESMA Ano B
“Foram precisos quarenta e
seis anos
para se construir este templo
e Tu vais levantá-lo em três
dias?”
Jo 2, 20
Encontros
e desencontros
“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela
vida”. Nesta frase de Vinícius de Moraes “encontro” o fio condutor para esta
“procura” que vos ofereço. Pois de encontros e desencontros estão tão cheios os
nossos dias. E se há mais e melhores vias de comunicação, nem sempre é fácil o
encontro entre as pessoas. Mas esse é um dos nossos maiores desejos: encontrar
e ser encontrado, como se estivéssemos a dizer: “amar e ser amado”!
A Bíblia mostra-nos Deus a tomar a iniciativa de vir ao nosso
encontro. Vem passear com Adão e Eva ao entardecer, procura-os depois da
desobediência, pergunta a Caim pelo seu irmão Abel, chama Abraão e faz aliança
com um povo, escolhe Moisés e oferece as dez palavras de vida, consolida David
e envia os profetas preparando a vinda de Jesus. Vem ao encontro para fazer
festa, para perdoar as infidelidades, para responsabilizar nas escolhas,
revelando um amor e uma esperança inesgotáveis. E o encontro ultrapassa tudo o
que seria de esperar em Jesus encarnado, morto e ressuscitado.
Certamente o sinal mais visível da ligação de Israel a Deus, o lugar
mais santo para se encontrar com Ele, era o Templo de Jerusalém. Edificado por
Salomão, destruído por Nabucodonosor, reconstruído no regresso do Exílio:
albergava as tábuas da Lei, ali se centralizava o culto e se faziam os
sacrifícios, e era “a menina dos olhos da religião judaica”. Todo o judeu
adulto devia ir, pelo menos uma vez na vida, ao Templo, e multidões afluíam a
Jerusalém na altura da Páscoa. Também nele existia um átrio dos gentios,
adoradores de Deus não submetidos às leis do judaísmo. Foi daí que Jesus
expulsou vendedores e cambistas, recusando a transformação da “casa de oração
do Pai” em “casa de comércio”. Não se pode encontrar o Pai em nenhum lugar onde
o dinheiro é adorado; em nenhum coração que a ele se vende, em nenhuma vida
escravizada pela ganância. A felicidade que o dinheiro promete tem o sabor
amargo da tentação da serpente: “desencontra-nos” de Deus, de nós próprios, dos
outros, e da própria vida!
As palavras de Jesus que acompanham o gesto profético indicam um novo
“templo” e um novo culto. O encontro com Deus deixa de se fazer no “lugar
sagrado” decorado com belas ofertas, passa pela “casa” dos filhos de Deus, o
espaço familiar e fraterno da intimidade e da partilha, “onde dois ou três
estiverem reunidos em meu nome” (Mt 18, 20), e torna-se pleno no “santuário” do
seu Corpo, na comunhão de vida e de amor com Cristo. É o culto “em espírito e
em verdade” (Jo 4, 24) anunciado à samaritana; encontro sem desencontros, com
Deus e com os irmãos, dentro da vida toda em que nos damos totalmente.
Recusando os falsos cultos de adoração do poder, do dinheiro e da fama, é
possível o encontro filial com o Pai, fraterno e comprometido com os irmãos,
responsável pelo mundo. De que amor estão cheios os nossos encontros?
in Voz da Verdade
04.03.2018
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