1. No mês de
Agosto, não pude responder às muitas solicitações telefónicas para comentar os
acontecimentos em torno do comportamento do Papa Francisco perante a pedofilia
clerical e nos começos de Setembro, também não. Ao agradecer a acolhedora
hospitalidade deste Jornal, talvez fosse oportuno esboçar um balanço das
campanhas para difamar o Papa, desacreditar os seus objectivos e os seus
caminhos de reforma da Igreja. Era urgente criar um clima que desse a impressão
de que Bergoglio não era o remédio, mas o veneno. Tinha chegado a hora de o
desmascarar.
O cálculo das oposições organizadas para derrotar o projecto
reformador do Papa Francisco não estava mal concebido. Impunha-se aproveitar os
seus encontros com as Igrejas onde os clérigos pedófilos, padres, bispos e
cardeais, fizeram mais vítimas. Era indispensável mobilizar os meios de
comunicação para mostrar as dimensões não só da tragédia, mas a incapacidade do
Papa em responder, com actos, à indignação das vítimas. O importante era
encontrar algumas pistas para dizer que o responsável de tudo era o próprio
Papa. Não tinha sentido que ele andasse a pedir perdão, quando, de facto, ele
era conivente. Já tinha tido tempo para erradicar essa abominação eclesiástica
e veio, afinal, a encobri-la, enchendo a boca contra o carreirismo de
seminaristas, padres, bispos e cardeais. Como quem diz: anda a querer reformar
a sociedade, a política, a economia que mata, a Igreja a todos os níveis,
quando o mais urgente é reformá-lo a ele. Ou se demite ou deve ser demitido,
pois é um herético e anda a levar a Igreja para a catástrofe.
Foi tal o entusiasmo com a sua eleição, com os seus
insólitos gestos e atitudes, que muitos julgaram que o caminho aberto era
irreversível. Esse acolhimento, que parecia universal, distraiu muitos dos seus
seguidores: acreditavam, de forma ingénua, que as reformas propostas tinham
apenas a oposição dos instalados na cúria romana e nas cúrias episcopais.
Puro engano. Falava-se de alguns movimentos e organizações
que não viam com bons olhos os atrevimentos de Bergoglio, mas como a idade era
muita e a saúde era pouca, a natureza encargar-se-ia de resolver o problema.
Falava-se sempre do próximo Papa. Este já tinha os dias contados. Os dias e os
anos passaram e ele, apesar de tudo, resistia e estava sempre a anunciar e a
lançar coisas novas.
Por outro lado, os que tinham muita pressa e julgavam que o
Papa devia fazer as reformas todas por decreto, sem estar a olhar aos seus
deveres de respeito para com os direitos de todas as pessoas, tornaram-se
aliados funcionais daqueles que se organizavam para vencer as reformas de
Bergoglio.
2. Em Portugal,
mas não só, era estranha a atitude de distância de padres e bispos em relação
ao Papa caluniado. Era o cisma do silêncio, de surdos e mudos. De repente, a
partir do comunicado exemplar do bispo de Aveiro, António Manuel Moiteiro Ramos, incentivando toda a diocese a um apoio
explícito ao Papa Francisco, assim como várias cartas de leigos à própria
Conferência Episcopal, esta sentiu que não podia continuar alheia à calúnia.
Tarde, mas lá cumpriu o seu dever.
Ao dizer isto,
ainda não saí do mundo clerical: Papa, cardeais, bispos e padres. Santo
Agostinho[1],
no início de um sermão sobre os pastores, já tinha tocado na raiz do
clericalismo que envenenou as relações no seio da Igreja, ao dizer: «somos
cristãos e somos bispos. Somos cristãos para nosso proveito, somos bispos para
vosso proveito. Pelo facto de sermos cristãos, devemos pensar na nossa
salvação; pelo facto de sermos bispos, devemos preocupar-nos com a vossa. (…)
devemos dar contas a Deus pela nossa própria vida, como cristãos; mas, além
disso, devemos dar contas a Deus do exercício do nosso ministério, como
pastores.» Inverteu a pirâmide. Antes de ser bispo, é um cristão, mas aqui
começam também os equívocos. Cristão parece pouca coisa e padre e bispo, uma
promoção na carreira. O importante é chegar a padre e, melhor, chegar a bispo
e, se for bispo de Roma, é o Papa de toda a Igreja. Chegou ao topo da carreira.
Pura asneira! Ser cristão, isto é, seguidor de Jesus, é a aspiração maior de
quem fizer a descoberta do Nazareno. No Baptismo, pela graça do Espírito Santo,
o ser humano torna-se membro de um povo sacerdotal, porque participa no
sacerdócio de Jesus Cristo. Quando lhe chamam o sacerdócio comum dos fiéis
querem dar a ideia de que é um sacerdócio banal, comum a todos. O Novo
Testamento (NT) só conhece este sacerdócio. A graça do Espírito Santo significada
e acolhida no Baptismo é o que há de mais essencial na lei nova do Evangelho,
como lembrou Tomás de Aquino.
Tudo o resto, todas
as mediações, sacramentais ou não, são ajudas para o desenvolvimento dessa vida
cristã. Nunca será demais repetir. Os padres e os bispos não mandam na Igreja,
servem a Igreja. Estão ao serviço das comunidades para que estas percorram na
sociedade o caminho aberto por Jesus, que não veio para ser servido, mas para
dar a vida. Como sublinha Santo Agostinho, essa é a sua glória. O clericalismo
vê tudo ao contrário: o clero é considerado, erradamente, como o mais
fundamental na Igreja.
3. Contra esta perspectiva surge uma objecção de peso: se é para servir,
não quero ser padre nem bispo e cai por terra a pastoral das, falsamente, chamadas
vocações sacerdotais. Não é uma
dificuldade desconhecida nas relações entre Jesus e os seus discípulos. Diz S.
Marcos que os discípulos não entendiam nada do que o Mestre lhes exigia. Um
dia, resolveu tirar a limpo a discussão que ocupava as vocações que arranjara.
Perguntou-lhes: o que discutíeis no caminho? Ficaram em silêncio, porque pelo
caminho tinham vindo a discutir qual deles era o mais importante. Tiago e João
romperam o silêncio: queremos que nos concedas o primeiro e o segundo lugares
do grupo. Este sincero atrevimento obrigou o Mestre a uma reunião de
emergência, pois os outros dez ficaram indignados por não terem tido a coragem
de se anteciparem. Reacção de Jesus: posso perder todas estas vocações, mas não
vou alimentar um equívoco. Quem de entre
vós quiser ser o primeiro, que seja o servo de todos e fica o problema
resolvido. Aconselho a leitura directa e íntegra dos capítulos nove e dez deste
evangelista[2].
É normal que certas
pessoas, grupos e movimentos desejem que o Papa se cale. Ele não parece
disposto a fazer-lhes a vontade. Veremos porquê.
Frei Bento
Domingues, O.P.
in Público 16.09.2018
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