1. No meio desta tragédia da
pedofilia do clero, que coloca a Igreja Católica numa crise sem precedentes, e
quando se pode erguer a suspeita de que ela é um antro de anormais e pedófilos,
parece-me justo esclarecer que, no mundo dos pedófilos, a percentagem dos
padres é mínima.
Sinceramente, esta
constatação não é para mim de modo algum motivo de consolação. Pelo contrário.
De facto, este dado só vem confirmar que o número de crianças que sofreram e
que sofrem é muitíssimo mais vasto do que aquilo que se poderia imaginar.
Depois, os abusos de menores
e adultos fragilizados por parte do clero têm uma agravante terrível: as
pessoas confiavam, diria que de modo incondicional, nos padres e na Igreja, e
foi essa confiança que foi traída. Uma traição que envergonha os católicos. E a
agravar ainda mais a situação: responsáveis, incluindo bispos e cardeais e a
Cúria Romana, ocultaram e encobriram estes horrores, porque pensaram que o mais
importante era defender e salvaguardar a honra e o prestígio da Igreja enquanto
instituição. Evitar a todo o custo o escândalo era a palavra de ordem. Deste
modo, o Evangelho foi ferido de modo brutal no seu núcleo, que é colocar a
pessoa e a sua dignidade no centro, sobretudo quando se trata de vítimas
inocentes. Uma catástrofe moral.
Sobre as crianças, há duas
palavras essenciais de Jesus no Evangelho, que é necessário continuamente
relembrar. A primeira: "Deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o
Reino de Deus. Quem quiser entrar no Reino de Deus deve ser como elas."
Elas são simples e não discriminam... A outra palavra de Jesus é terrível:
"Ai de quem escandalizar uma criança, ai de quem fizer mal a uma criança.
Era melhor atar-lhe a mó de um moinho ao pescoço e lançá-lo ao mar."
2. Causas para este colapso
moral são muitas. Mas o Papa Francisco apresenta como principal o clericalismo
e, consequentemente, o carreirismo, que ele, desde o princípio, diz que
constituem "a peste da Igreja", sempre em conexão com a Cúria Romana,
a corte, de que ele diz que é "a lepra do papado". Neste contexto,
Francisco associa "abusos sexuais, de poder e consciência". Disse, há
uns meses, ao episcopado chileno: "Há uma ferida aberta, dolorosa, e até
agora foi tratada com um remédio que, longe de curar, parece tê-la aprofundado
mais na sua espessura e dor. Os problemas que hoje se vivem dentro da
comunidade eclesial não se solucionam apenas abordando os casos concretos e
removendo pessoas. Constituiria grave omissão da nossa parte não aprofundar nas
raízes. Essa psicologia de elite ou elitista acaba por gerar dinâmicas de
divisão, separação, círculos fechados, que desembocam em espiritualidades
narcisistas e autoritárias nas quais, em vez de evangelizar, o importante é
sentir-se especial, diferente dos outros, pondo assim em evidência que nem
Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. Messianismos, elitismos,
clericalismos, são todos sinónimos de perversão no ser eclesial."
No seu comentário, Ramón
Alario caracteriza estas palavras como "duras, corajosas,
clarividentes", pois mostram que é preciso ir à raiz deste tsunami da
pederastia do clero e atacá-la enquanto "problema estrutural",
portanto, para lá da responsabilidade das pessoas concretas. Evidentemente, o
celibato imposto tem de ser considerado, mas como parte de uma estrutura
clerical muito mais ampla e um dos seus pilares. Alguns dos elementos que fazem
parte desta estrutura: "concentração do poder nas mãos da clerezia",
poder hierarquizado e assente na contraposição clérigos/leigos; um poder
patriarcal e machista, que exclui as mulheres; a carreira e ascensão no poder
fazem-se mediante dois mecanismos complementares: "a obediência e/ou a
hipocrisia"; "uma concepção e prática dualista e maniqueia"
concretamente em relação à sexualidade; "sobrevalorização do
celibatário", considerado mais perfeito do que o casado, porque mais
próximo de Deus; o celibato obrigatório é "uma imposição legal" para
poder pertencer a esta classe superior; o clero está à frente de
"comunidades reduzidas a lugares de culto e serviço religioso à volta do
padre, sem voz nem voto nas decisões de base: convertidas em grupos menores de
idade...".
Depois, pode dar isto,
segundo aquela diatribe dura e melancólica de Nietzsche contra os padres,
prevenindo contra a infelicidade, que traz consigo sempre mais infelicidade:
"Até entre eles há heróis. Muitos deles sofreram demasiado: por isso,
querem fazer sofrer os outros." Nietzsche, que proclamou a morte de Deus,
também deixou escrito, na mesma obra, Assim Falava Zaratustra: "Eu só
acreditaria num deus que soubesse dançar."
3. Francisco quer renovar a
Igreja, refontalizá-la, levando-a às origens, com o Evangelho de Jesus.
Tolerância zero para a pedofilia. Transparência nas contas do Banco do
Vaticano. Reforma profunda da Cúria. Uma Igreja fraterna, pobre, em saída para
as periferias geográficas e existenciais. Uma Igreja viva, que não é museu. Sem
clericalismo, capaz de se aproximar dos divorciados recasados, dos
homossexuais, que são católicos como os outros (o problema não é ser
homossexual, o problema é "o lóbi gay", diz). Francisco também está
próximo dos mais desfavorecidos e critica o capitalismo desenfreado, escreveu
uma encíclica, a Laudato Sí, apelando à necessidade de salvaguardar a Terra,
criação de Deus e nossa casa comum, e também à necessidade de humanitariedade para
com os migrantes e refugiados...
Evidentemente, os rigoristas
fariseus e os lóbis económicos não gostam e atacam-no ferozmente, acusando-o
inclusivamente de heresia.
Recentemente, o arcebispo
Carlo Maria Viganò, num golpe cobarde e vil, pretendeu acusá-lo de cumplicidade
e encobridor. Francisco, naquela sabedoria só dele, disse aos jornalistas que
fossem profissionais e cumprissem o seu dever de investigação, e eles cumpriram
e a imprensa internacional desmascarou o ex-núncio Viganó e os seus apaniguados,
envolvidos em mentiras e contradições. E a Igreja universal, que queriam ver
desunida, tem vindo massivamente a manifestar o seu apoio incondicional a
Francisco. Também a Conferência Episcopal Portuguesa o fez. Para lá dos
eclesiásticos, é longa a lista de políticos (incluindo Trump) e figuras
públicas que vieram em defesa de Francisco.
Quem já anunciava que dentro
de semanas ou meses teríamos a renúncia de Francisco e um Papa conservador a
suceder-lhe devia saber que ele já preveniu que não sai a pontapé. Como tenho
vindo a repetir, estou convicto de que Francisco, nesse encontro admirável de
franciscano e jesuíta, não se demite nem se deprime. E não se ficará só com
pedidos de perdão e exigência de justiça, incluindo a justiça civil. Até porque
é preciso ir mais longe e fundo. Pode vir aí um Sínodo - Francisco está
continuamente a falar da sinodalidade da Igreja, que quer dizer necessidade de
caminhar juntos e em comum -, um Sínodo enquanto reunião universal de toda a
Igreja, com representação de bispos, mas também de padres, de religiosos e de
religiosas, da Cúria, de leigos e de leigas, portanto, eles e elas, na devida
proporção, sob a presidência do Papa. Para debater esta e muitas outras
questões. A que se deve esta tragédia? Como caminhar para estruturas mais
democráticas na Igreja? Que novo tipo de padre? Ordenar homens casados? Pôr fim
à lei do celibato? Qual o papel das mulheres na Igreja? É legítimo continuar a
discriminá-las, contra a vontade de Jesus? O que é que as impede de poderem
presidir à celebração da Eucaristia? Que moral sexual? O que é que a Igreja
pensa de si mesma, da sua identidade e missão? Como é que deve ir ao encontro
da Humanidade actual, com os seus novos problemas, questões de bioética,
questões que têm que ver com o trans-humanismo e o pós-humanismo, a justiça
social, os direitos humanos, o diálogo ecuménico e inter-religioso, a paz num
mundo globalizado...
Anselmo Borges
Padre e professor de
Filosofia
in DN 08.09.2018
www.dn.pt/edicao-do-dia/08-set-2018/interior/os-inimigos-do-papa-francisco-9815728.html?target=conteudo_fechado
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