Devo
este título e alguma inspiração para esta crónica a J. M. Rodríguez Olaizola,
no seu livro Bailar con la soledad,
já aqui citado na semana passada. Quais são as três feridas?
1. A
do amor. O que é que todos procuramos? A felicidade, e elemento constitutivo da
felicidade é o amor, um amor sólido, estável e fiel. Mas isso hoje está como se
sabe: na sociedade líquida, também o amor é líquido, para ir a Z. Bauman. Só
para dar o exemplo do amor conjugal: Portugal é o país da Europa com mais
divórcios, 70 por cento dos casamentos terminam em divórcio. Aí está G.
Lipovetsky, em Da leveza: “Publicidade,
proliferação de formas de empregar o tempo livre, animações, jogos, modas: todo
o nosso mundo quotidiano vibra com cantos à distracção, aos prazeres do corpo e
dos sentidos, à ligeireza de viver. Com o culto do bem-estar, da diversão, da
felicidade aqui e agora, triunfa um ideal de vida ligeiro, hedonista e lúdico”.
Então,
a contradição é esta: num tempo de incerteza, do zapping, do provisório, do usar e deitar fora até nas relações
humanas, o amor sólido e fiel, inabalável, deveria ser a pedra angular da vida,
e é isso que se procura idealmente, mas, ao mesmo tempo, pretende-se viver numa
união sem compromisso, na abertura ao consumo do “poliamor”, numa liberdade à
deriva, incapaz de sacrificar-se pelo que mais vale. E lá está outra vez Z.
Bauman, em Amor líquido: “Automóveis,
computadores ou telefones celulares em bom estado e que funcionam relativamente
bem vão engrossar o monte de resíduos, com pouco ou nenhum escrúpulo, no
momento em que ‘versões novas e melhoradas’ aparecem no mercado. Há alguma
razão para que as relações de casal sejam uma excepção à regra?”.
Mas a
liberdade sem vínculos e sem enraizamento é um fantasma. Byung-Chul Han, no seu
livro admirável, O aroma do tempo,
mostra-o, inclusive a partir do étimo, no alemão: a raiz indogermânica fri, donde derivam frei (livre), Friede
(paz) e Freund (amigo), significa amar. “Assim, originariamente,
‘livre’ significava ‘pertencente aos amigos ou aos amantes’. Sentimo-nos livres
numa relação de amor e amizade. O compromisso, e não a ausência dele, é que nos faz livres”.
Na
falta de um amor comprometido e estável, é-se invadido pela desconfiança em
relação a si próprio (o que é que eu valho e para quem e o que é que eu sou?) e
pelo medo e a insegurança face ao futuro instável. E pela solidão, como bem viu
o Sínodo sobre a Família: “Uma das maiores pobrezas da cultura actual é a
solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das
relações”.
2. Na
sociedade líquida, a morte é tabu, tabu que, retroactivamente, impulsiona a sociedade
líquida, num reforço mútuo. Da morte, que viria desarranjar a lógica da euforia do consumo, do hedonismo
e da leveza do viver, pura e simplesmente não se fala. Então, o essencial — o
metafísico, a ética, a existência enquanto texto com sentido — cai
inevitavelmente no esquecimento. De facto, sem a consciência do limite que a
morte impõe, ficam apenas instantes que se dissolvem na fugacidade vazia do
tempo. Afinal, é com a consciência da morte que se é convocado para o que
verdadeiramente vale, como bem viu M. Heidegger: face à morte, aparece em todo
o seu vigor a distinção entre a existência autêntica e a existência
inautêntica, entre o que verdadeiramente vale e o que realmente não vale e a
urgência de construir uma existência com significado para lá da voragem do
tempo. Confessava-me recentemente um colega e amigo, que sofreu um AVC:
“Anselmo, desde então tudo ficou com outra perspectiva, num outro horizonte, e
tanta coisa por que me batia denodadamente passou a um plano secundário e há
outras prioridades e outra força e intensidade no viver do essencial.” Sem
perder a alegria funda do fulgor do milagre de existir. O pensamento sadio da
morte atira-nos para a urgência de viver agora, a cada momento, na intensidade,
sem adiar, porque é aqui e agora que se vive.
De
repente, a sabedoria. Que confirmo também com uma experiência que no Natal de
2015 se quis fazer sobre percepções, prioridades e valores e de que Rodríguez
Olaizola se faz eco. Foi-se perguntando a um conjunto de jovens madrilenos, um
a um, que presentes pensavam dar nesse Natal a uma pessoa muito significativa
(em princípio, seriam os pais). E as respostas surgiram alegres, com alguma
originalidade. Depois de exporem as suas intenções, eram confrontados com outra
pergunta: e se soubesses que é o último Natal que vais celebrar com essa
pessoa?, se soubesses que ela vai morrer? Aí, de repente, ficaram perplexos, as
palavras começaram a falhar e foram surgindo respostas com outro cuidado,
emoção, intensidade. A perspectiva agora
era outra e o horizonte do fim “enchia de profundidade o presente. E os
presentes escolhidos nesse novo cenário ficaram carregados de sentido,
significado e ternura”.
3.
Face à morte, ergue-se, inevitavelmente, lá do mais fundo de nós, a pergunta
pelo sentido, o sentido último. Porque, como disse recentemente, numa
entrevista ao Expresso, conduzida por Luciana Leiderfarb, o famoso patologista
Sobrinho Simões, depois de ter sofrido um AVC e perceber que, na existência,
está na fase da descida, a sua grande experiência foi que “as explicações
biológicas fazem sentido para muita coisa, mas não para explicar quem sou”. E a
pergunta, in-finita, é: Para quê? “Para quê”.
Essa
pergunta leva necessariamente consigo a pergunta por Deus. Mas hoje essa
pergunta está obnubilada e a mim, mais do que o ateísmo, o que me preocupa é a
indiferença, implicada, também ela, na sociedade líquida.
Aqui,
encontramos Nietzsche. Matámos Deus ou constatamos que Deus morreu. Há um
júbilo perante o “acto mais grandioso da História”, que foi essa morte. Mas, ao
mesmo tempo, Nietzsche apercebe-se de que esse júbilo é atravessado por
perguntas terríveis e trágicas: “Quem nos deu a esponja para apagar todo o
horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao
sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os
sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos
para trás, para os lados, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima
e um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não
estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio?
Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?”
4.
Deus desapareceu do nosso mundo? Não; Ele está presente pela sua ausência
insuportável, que leva à total desorientação, como anunciam estas perguntas
proféticas de Nietzsche. Num tempo em que, como se lê num verso do poeta galego
Ramón Cabanillas, parece que avançamos “com o cadáver da esperança às costas”.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
in DN 29.09.2018
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