1. Comecemos pelo mais elementar, pois custa-me ver a milenar
herança cristã esquecida ou ignorada. É muito provável que a intervenção
pública de Jesus de Nazaré se tenha exercido, em contexto judaico, entre os
anos 28 e 33 da nossa era. Foi, porém, em Antioquia que, pela primeira vez, os seus
seguidores começaram a ser chamados cristãos,
isto é, discípulos de Cristo, o Messias esperado. Devido à mesma significação,
foi aportuguesada tanto a palavra da tradução grega da Bíblia como a de origem hebraica.
A expressão Jesus Cristo exprime a condição
humana e divina do Nazareno. Por cristianismo
entende-se o movimento dos seguidores de Cristo, através dos séculos, embora
com uma história muito plural e cheia de tensões, desde o começo[i].
Por ter sido recusada uma ruptura
total com o judaísmo, como alguns cristãos propunham, usamos, na Liturgia, passagens
do Antigo e do Novo Testamento (NT). Hoje, ao reunir numa celebração de
Domingo, textos desses dois mundos, não se consegue satisfazer nenhum deles e torna
complicada uma homilia que tem de ser breve. Com tantas referências a explicar
e a interpretar é a deriva moralista que acaba por ganhar. Os responsáveis
dessa selecção confundem uma comunidade paroquial com um mosteiro de biblistas,
embora a iniciação à leitura inteligente dos textos sagrados seja uma das suas
necessidades básicas. A celebração do culto
divino é virtude, não de anjos, mas de seres humanos de formações muito
diversas. Enquanto comunitárias, as celebrações precisam de obedecer a um rito
para marcar o seu ritmo e combater o ritualismo. Os Evangelhos atribuem ao
próprio Jesus, o grande orante, críticas severas às formas imbecis de rezar.
Segundo S. Mateus, Jesus pede sobriedade
para não imitarmos os gentios que julgam que é pelo muito palavreado que vão
convencer a divindade. Deus não anda mal informado acerca da nossa história[ii]. S. Lucas pode dar a
ideia de que é pela muita insistência que Deus acabará por ceder aos nossos
pedidos. No entanto, a sua parábola admirável acaba por destruir as expectativas
criadas pelos nossos desejos mais imediatos e urgentes. A oração garante que o Pai dos céus dará o Espírito Santo aos que
o pedirem[iii].
A oração não se destina a mudar a vontade de Deus que nunca pode ser melhor,
mas a alterar as nossas atitudes.
Sobre o culto divino, encontramos
no quarto Evangelho um diálogo insólito entre Jesus, judeu, e uma samaritana,
mulher de moral pouco recomendável e apóstata. É um bom prólogo para todas as
iniciações à liturgia cristã.
A samaritana pergunta ao galileu onde é que se
deve adorar: no Templo de Jerusalém ou no do monte Garizim? Resposta de Jesus: acredita em mim, mulher, chegou a hora em
que, nem neste monte nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. (…) Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em
espírito e verdade[iv].
Jesus não procura a destruição das
expressões religiosas, mas a sua radical transformação. Viveu num judaísmo de
sinagogas onde sempre criou problemas, conheceu bem as grandes celebrações de
Jerusalém e o comércio do Templo que o indignava. Para ele, é incompatível o
culto a Deus e a opressão do ser humano. A religião ou é libertadora ou é uma
degradação. Não suportava que, no sagrado dia de Sábado, os burros tivessem
mais sorte do que as pessoas doentes.
Quando os textos do NT são
escritos, já estavam em curso polémicas viragens cristãs do culto. Os apelos à
interioridade e à relação entre culto e transformação da vida iriam centrar-se
em Cristo que enfrentou a morte e a venceu e nas celebrações do Baptismo e da
Eucaristia, fonte e alimento da vida nova.
2. No passado Domingo, com a festa de Cristo Rei, os padres, nas
missas, tiveram de repetir que um Ano Litúrgico chegava ao fim e começava outro
com o Advento. No fim da missa, perguntaram-me: o que é isso de ano litúrgico? Deixei
a questão para a próxima celebração, mas recomendei uma leitura essencial[v], pois o ano civil e a marcação cristã do tempo não coincidem. Chamamos ano litúrgico à programação anual
das celebrações da fé cristã.
Seria possível viver sem marcar o tempo, mesmo sem saber muito bem o que é
essa realidade fugaz? Hoje, temos tudo resolvido no relógio, no telemóvel, no
computador, etc.. Nem sequer nos apercebemos dos esforços que, desde a
Antiguidade, os povos tiveram para organizar a contagem dos dias, das noites,
das semanas, dos meses e do ano. É normal que o Sol, a Lua, as estrelas e os
seus ciclos servissem como primeiras referências, para organizar a vida nas
suas diversas expressões agrícolas e religiosas.
A palavra calendário vem do latim calo. Os romanos orientavam-se por meses
lunares. O primeiro dia da lua nova era chamado dia das calendas. O Pontífice chamava
o povo, ao Capitólio, para o informar das celebrações
religiosas daquele mês.
Há grande diversidade de calendários. O gregoriano foi promulgado pelo
Papa Gregório XIII, em 1582, em substituição do juliano fixado
por Júlio César em 46 a.C.. Por
convenção e por razões práticas, o calendário gregoriano, de origem europeia, não suprimiu os outros, mas é
utilizado oficialmente pela maioria dos países.
3. Importa não esquecer que o culto cristão
está sempre marcado pela história e pela natureza, perante as pouco acauteladas
ameaças de secas, fomes e inundações, catástrofes. É cósmico.
Por outro lado, as celebrações sacramentais, ainda não dispensam o
azeite, o pão, a água e o vinho, muitas vezes reduzidos a amostras
insignificantes, como se fossem indiferentes ao recheio da Casa Comum a salvaguardar.
A simbólica da Criação implica a vitória sobre o caos, sempre ameaçada. Com
a publicação da encíclica Laudato Si,
o Papa Francisco tentou estabelecer uma ponte entre a Ecologia e a Liturgia,
para que o uso das descobertas científicas, das novas tecnologias, o exercício
das actividades económicas, financeiras e políticas se inscrevam no destino
universal de todos os bens.
in Público 02.
12. 2018
[i] Acerca do ambiente em que
nasceu e se desenvolveu o cristianismo, cf. Simon Claude Mimouni, Le Judaïsme ancien et les origines du
Christianisme, Bayard 2017, apreciação crítica da vasta literatura sobre o
tema.
[ii] Mt 6, 3-15; 7, 7-11.
[iii]
Lc 11, 1-13
[iv]
Jo 4, 10-26; Em Lc 17, 20-21, é dentro de nós que está o reino de Deus.
[v]
José Manuel Bernal, Para viver o ano
litúrgico, 2001
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