NÃO NOS PREOCUPEMOS COM OS ANJOS
Frei Bento Domingues, O.P.
Foi para mim um anjo ! São muitas as pessoas, todos conhecem algumas, a
quem apetece dizer esta bendita oração.
1. Não escolhemos as perguntas que nos fazem. Na semana passada, uma
senhora muito idosa perguntou-me aflita: os anjos existem ou não? Toda a vida
rezei ao meu anjo da guarda, mas a minha neta disse-me que, agora, já nem os
padres acreditam nisso.
Deduzi que não era a sua crença
que estava abalada, mas a dificuldade em transmiti-la à nova geração. Não vem
ao caso a conversa que tivemos. O imaginário da luta entre os anjos bons a
quererem salvar as nossas almas e os demónios a fazerem tudo para nos perderem
era a representação religiosa da nossa infância. Lembrei-lhe que, na Eucaristia,
o louvor divino é sempre associado à música dos anjos e dos santos!
Quando
a ansiedade serenou, lembrei-lhe duas histórias que me divertiram. Em 1961, à
saída de Liège, à espera de uma boleia para Colónia, li, no Assimile de alemão,
que um pároco pediu a um pintor que enchesse de anjos as paredes de uma capela
recém-construída. Quando foi ver as pinturas ficou irritado: quando é que se
viram anjos com tamancos? O pintor observou-lhe: e sem tamancos?
Em 1962, era assistente da Juventude
da Igreja de Cristo Rei (Porto) – a primeira associação católica mista de jovens, em Portugal – quando um
rapaz interessado por teologia veio dizer-me que tinha descoberto as razões do mundo
andar tão desorientado. Os Anjos não se reproduzem e os seres humanos são cada
vez mais. Resultado: há muita gente sem anjo da guarda!
Os meus anjos preferidos são as
criaturas da pura beleza de Fra Angélico, mas há dias, numa celebração da
Eucaristia, deparei com uma passagem da Carta aos Hebreus que desloca todas as
preocupações com a angelolatria. Reza
assim: «Uma vez que os filhos dos homens têm o mesmo sangue e a mesma carne,
também Jesus participou igualmente da mesma natureza para destruir, pela sua
morte, aquele que tinha poder sobre a morte, isto é, o diabo, e libertar
aqueles que estavam a vida inteira sujeitos à servidão, pelo temor da morte.
Porque Ele não veio em auxílio dos anjos,
mas dos descendentes de Abraão. Por isso, devia tornar-se semelhante, em tudo, aos seus irmãos, para ser um sumo
sacerdote misericordioso e fiel no serviço de Deus e assim expiar os pecados do
povo. De facto, porque Ele próprio foi provado pelo sofrimento, pode socorrer
aqueles que sofrem de provação»[1].
S. Paulo, na Missa deste Domingo,
lembra-nos que, pela ressurreição, Jesus venceu a morte. É esse o Evangelho que
ele anuncia, fonte de toda a esperança. Não tem explicação para o facto. Usa
analogias para dizer que essa Fé está em consonância com os ritmos da natureza.
É anti niilista. Por isso, exclama: morte,
onde está tua vitória?[2].
O prefácio da impropriamente dita
Missa de defuntos é de uma beleza
extraordinária: a vida não acaba, apenas
se transforma.
2. O medo da morte é absolutamente natural. Há muitos anos que
administro a santa unção e celebro missas ditas de corpo presente e de funeral.
Lamento vários aspectos do ritual e sobretudo as celebrações nas capelas
mortuárias, mas mais ainda os funerais transformados numa competição comercial.
O que me espanta é a recusa de
não se fazer ritual nenhum, sejam de crentes ou descrentes. Se fosse o fim de
tudo, não tinha sentido qualquer celebração. Morreu, acabou. Usamos uma
linguagem simbólica e rituais para evocar o que não podemos descrever. Ninguém
sabe nada do que acontece depois da morte. Esquecemos que sabemos pouco do que
é mais importante antes da morte. A vida! O mais significativo escapa à
linguagem factual e à das ciências. Como disse Nélida Piñon, «tudo o que
preside ao humano provém do mistério. Amor, vida, morte, nada disto se explica.
O mistério é puro encanto. (…). O que me define talvez seja a teologia do
mistério, sim. O mistério roça em Deus, no pecado, em tudo. Não sabemos o que
é, sei que somos filhos dele. Deus está sempre presente na minha vida, mas sem
questionamentos. Não batalhamos. Deus foi um senhor maravilhoso, gentil, que
não me incomodou, porque desde cedo descobri, como Dostoiévski, o peso da
consciência. (…). Estive atenta, enquanto pude, aos mistérios da fé. Sorri e
chorei diante das adversidades. Amei e fui amada. Deixei que Deus pousasse no
meu regaço. Resta-me agora dizer Amém»[3].
3. Precisamos de anjos e de muitos. Acerca das referências do Novo
Testamento (NT) recomendo o exegeta Xavier Léon-Dufour[4]. Não são essas
referências, essenciais, que importa convocar para esta crónica. Os anjos são
mensageiros de boas notícias, mensageiros de esperança.
Foi para mim um anjo! São muitas as pessoas, todos conhecem
algumas, a quem apetece dizer esta bendita oração. Muitas famílias têm doentes
em casa, que só elas conhecem. Mas nos hospitais, nos lares de idosos, nas
cadeias, debaixo das pontes, sem abrigo, sem amigos, imigrantes, mutilados da
guerra existem mundos que precisam de quem lhes acuda. De facto, existe também
um mundo dos que visitam, atendem, sorriem, ajudam, socorrem pela única razão
que essas pessoas precisam. Não fazem propaganda, não aparecem nos meios de
comunicação nem nas redes sociais. Não são condecorados. São os anjos da música
silenciosa da pura gratuidade.
Essas pessoas, com ou sem
referências aos textos NT, seguem a ordem de Jesus: não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita[5]. A nossa vocação humana e divina é a de sermos anjos uns dos outros,
mas sem esquecer o aviso do Mestre.
A publicidade, mesmo a do bem, pode não ser um apelo à generosidade de
todos, mas apenas um grande negócio da vaidade e do lucro. Uma coisa é o método de envolver cada vez mais pessoas
na prática gratuita da generosidade criativa, outra é a táctica hipócrita da
autopromoção em nome da virtude.
Não é por acaso que a Bíblia fala
de anjos bons e anjos maus.
in Público, 10.02.19.
https://www.publico.pt/2019/02/10/sociedade/opiniao/nao-preocupemos-anjos-1860940#gs.5PO5La5G
[1] Hb 2, 14-18
[2] Cor 1Cor 15,1-11
[3] Nélida Piñon, A vida e a literatura, in JL, págs. 14-18
[4] Cf. Dictionnaire
du Nouveau Testament, Seuil, 1975, entrada Anje
[5] Mt.6, 3-4
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Encontros para a História
Anselmo Borges
1. “Deus, o Todo-Poderoso, não precisa
de ser defendido por ninguém e não quer que o seu nome seja usado para matar e
aterrorizar as pessoas”.
Quando li este passo no “Documento
sobre a Fraternidade Humana” a favor da paz mundial e da convivência humana,
assinado no início desta semana em Abu Dhabi, pelo Papa Francisco e pelo Grande
Imã de Al Azhar, Ahmed al-Tayeb, lembrei-me da mesma afirmação que há anos ouvi
ao então Bispo de Nampula e que transcrevi na abertura do livro que coordenei,
“D. Manuel Vieira Pinto. Cristianismo: Política e Mística”: “Porque é que Você, que é Bispo, quando vem
falar comigo, nunca me fala de Deus e da religião, mas do povo, da defesa dos
seus direitos e da sua dignidade?”, perguntou o Presidente Samora Machel a D.
Manuel Vieira Pinto. “Porque um deus que precisasse da minha defesa seria um
deus que não é Deus. Deus não precisa que O defendam. O Homem sim.”, respondeu
D. Manuel.
Este é um princípio decisivo para quem
queira estar na religião/religiões com dignidade: Deus não precisa que O
defendam; as pessoas sim. Porque é isso que Deus quer, o seu único interesse
são as pessoas. Já Santo Ireneu o disse: “Gloria Dei homo vivens”: a glória de
Deus é o homem vivo, realizado, pleno, feliz. Quantas vezes a pretensa defesa
de Deus e da sua glória levou à humilhação, ao espezinhamento, à brutalidade
sobre outros homens, a guerras, a terrorismos... Em nome de Deus!
2. De 3 a 5 deste mês de Fevereiro,
quando se celebram os 800 anos do encontro entre Francisco de Assis e o sultão
Al-Malik, o Papa Francisco, recebido com as maiores honras de Estado pelo
príncipe herdeiro de Abu Dhabi, esteve nos Emiratos Árabes Unidos para uma visita
que também fica para a História. Dois acontecimentos fundamentais ocuparam as
48 horas da visita: promover e fortalecer o diálogo inter-religioso,
especialmente com os muçulmanos, e uma Missa para os católicos, que serão uns
900.000 no país.
2. 1. É nos Emiratos Árabes Unidos, que
o Secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, definiu como “uma
ponte entre Oriente e Ocidente bem como uma terra multicultural, multiétnica e
multirreligiosa”, que tem a sua sede o Conselho Muçulmano de Anciãos ou
Conselho de Sábios Muçulmanos, um grupo internacional que visa combater o
fanatismo religioso e que é presidido pelo Grande Imã da Mesquita e
Universidade islâmica do Cairo Al Azhar. Foi a seu convite que se realizou o
encontro inter-religioso sob a designação de “Fraternidade Humana”.
Francisco, que já na vídeo-mensagem
enviada ao povo dos Emiratos advogara o “respeito pela diversidade”, foi
contundente no seu discurso programático durante o encontro inter-religioso:
“Ou construímos o futuro juntos ou não haverá futuro”. Onde se fundamenta a
fraternidade? Claro: no Deus criador, que “quer que vivamos como irmãos e
irmãs, habitando na casa comum da criação que Ele nos deu”; portanto, “temos
todos a mesma dignidade” e “ninguém pode ser senhor ou escravo dos outros”. A
fraternidade implica igualdade e diferença e, assim, ao mesmo tempo que elogiou
“a coragem da alteridade” lembrou o pressuposto da “identidade própria”:
identidade e alteridade co-implicam-se, exigindo o reconhecimento do outro como
igual e diferente, com direitos fundamentais, entre os quais, o da liberdade
religiosa, que “se não limita só à liberdade de culto, pois vê no outro um verdadeiro irmão, um
filho da minha própria humanidade que Deus deixa livre e que, portanto, nenhuma
instituição humana pode forçar, nem sequer em seu nome”. “A coragem da
alteridade é a alma do diálogo”, que tem também a sua base na oração: “feita
com o coração, a oração é regeneradora de fraternidade”; com elas —oração e
fraternidade —, construiremos o futuro juntos.
O símbolo da viagem papal era a pomba
com o ramo de oliveira, símbolo bíblico da paz. Por isso, disse que, sendo a
tarefa das religiões construir pontes, elas precisam, como a pomba, de duas
asas para voar: a educação e a justiça. A educação, para “formar identidades
abertas”, em ordem a afastar o ódio, dialogar e “defender os direitos dos
outros com o mesmo vigor com que se defende os seus”. A outra asa é a justiça,
justiça universal. “Que as religiões sejam a voz dos últimos, que não são
estatísticas mas irmãos, e estejam do lado dos pobres.”
Francisco elogiou o país que o acolheu
como exemplo de inclusão, que quereria ver reproduzido “em toda a amada e
nevrálgica região do Médio Oriente”, para a qual pediu “oportunidades concretas
de encontro”: “uma sociedade onde pessoas de diferentes religiões tenham o
mesmo direito de cidadania”. Suplicou a “desmilitarização do coração”, porque
“a guerra só sabe criar miséria e as armas nada mais do que a morte”. Citou o
Iémen, a Síria, o Iraque, a Líbia. Concluiu, convidando à não rendição perante
“os dilúvios da violência e da desertificação do altruísmo”. “Deus está com o
homem que procura a paz. E do Céu abençoa cada passo que, neste caminho, se
realiza na Terra.”
Foi também neste encontro que foi
publicado o “Documento sobre a Fraternidade Humana”, já referido. Uma
Declaração verdadeiramente histórica, elaborada ao longo de um ano de diálogos
e debates entre Al Azhar e o Vaticano até alcançar a sua redacção final. “Em
nome de Deus, Al Azhar al-Sharif, com os muçulmanos de Oriente e Ocidente, e a
Igreja Católica, com os católicos de Oriente e Ocidente, declaram assumir a
cultura do diálogo como caminho, a colaboração comum como conduta, o
conhecimento recíproco como método e critério”. “Pedimos a nós mesmos e aos
líderes do mundo, aos artífices da política internacional e da economia
mundial, que nos comprometamos seriamente para difundir a cultura da
tolerância, da convivência e da paz, intervir o mais depressa possível para
parar o derramamento de sangue inocente e pôr fim às guerras, aos conflitos, à
degradação ambiental e à decadência cultural e moral que o mundo vive
actualmente.” De facto, “entre as causas mais importantes da crise do mundo
actual estão uma consciência humana anestesiada e um afastamento dos valores
religiosos, a que se junta o predomínio do individualismo e das filosofias
materialistas”. Para a explicação das raízes do terrorismo niilista, o
Documento insiste na “deterioração da ética, que afecta a acção internacional,
e na debilitação dos valores espirituais e do sentido da responsabilidade”,
elementos que favorecem a frustração e o desespero, “levando muitos a cair na
voragem do extremismo ateu e agnóstico ou no fundamentalismo religioso, no
extremismo e no fundamentalismo cego”.
De modo mais concreto, declara-se
veementemente que “as religiões por si nunca incitam à guerra, à violência ou
derramamento de sangue. Estas desgraças são fruto do desvio dos ensinamentos
religiosos, da utilização política das religiões e também das interpretações de
grupos religiosos que abusaram do sentimento religioso nos corações dos homens
para levá-los a realizar algo que não tem nada a ver com a verdade da religião,
mas com alcançar fins políticos e económicos mundanos e míopes.” Exige-se,
portanto, uma leitura histórico-crítica dos textos sagrados. As outras
condições em ordem à paz entre as religiões e os povos são o respeito pelos
direitos humanos, entre os quais sobressai o da liberdade religiosa e a
cidadania plena: “A liberdade é um direito de toda a pessoa: todos gozam da
liberdade de crença, de pensamento, de expressão e de acção. O pluralismo e a
diversidade de religião, cor, sexo, raça e língua são expressão de uma sábia
vontade divina.” “O conceito de cidadania plena baseia-se na igualdade de
direitos e deveres sob cuja protecção todos desfrutam da justiça. Por isso, é
necessário comprometermo-nos em estabelecer na nossa sociedade o conceito de
cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório da palavra minorias, que
arrasta consigo as sementes de sentir-se isolado e inferior, prepara o terreno
para a hostilidade e a discórdia e retira os direitos religiosos e civis de
alguns cidadãos, ao discriminá-los.”
Al Azhar e a Igreja Católica consideram
de tal importância esta Declaração que “exigem que este Documento seja objecto
de investigação e reflexão em todas as escolas, universidades e institutos de
educação e formação”, esperando que se transforme num “símbolo do abraço entre
Oriente e Ocidente, entre o Norte e o Sul.”
3. Como
já referido, há nos Emiratos cerca de 900.000 cristãos, sendo a quase
totalidade constituída por imigrantes (filipinos, indianos, paquistaneses, do
Sri Lanka, Bangladesh e outras nacionalidades), que vieram para trabalhar.
Assim, outro acontecimento histórico foi a celebração da Missa no estádio
Zayed, na qual participaram, dentro e fora do estádio, 150.000 pessoas de 45
nacionalidades, incluindo 5.000 muçulmanos. Vários bispos concelebraram, entre
eles os Patriarcas do Oriente, nomeadamente o do Líbano e o do Iraque — este,
cardeal L. R. Sako, lembrou que “houve um tempo em que éramos 20% da população,
mas o número desceu repentinamente e hoje somos à volta de 2%”, esperando que
esta visita do Papa ajude também a situação dos cristãos iraquianos.
Foram horas de indescritível entusiasmo
e de recolhimento e profunda oração. O Evangelho foi o das Bem-aventuranças. E
ficaram estas palavras da homilia papal: “Não é fácil viver longe de casa. Mas
o Senhor está perto e caminha ao nosso lado.” “Olhemos para Jesus: não deixou
nada escrito, não construiu nada imponente. E, quando nos disse como devemos
viver, não nos pediu que ergamos grandes obras ou que nos destaquemos pela
realização de façanhas extraordinárias. Pediu-nos que levemos a cabo uma só
obra de arte, ao alcance de todos: a obra de arte da nossa vida”. No final da
celebração, saudou cordialmente todos os participantes: “fiéis caldeus, coptas,
greco-católicos, greco-melquitas, latinos, maronitas, sírio-católicos,
siro-malabares, siro-malankares”. E, como sempre: “Não vos esqueçais de rezar
por mim”.
4. Há quem acuse Francisco de se deixar
manipular pelo mundo islâmico. Será assim? É claro que a Igreja Católica não
está no mesmo nível que Al Azhar nem o Papa no mesmo nível que o Grande Imã. O
diálogo não pode ser unidireccional. É verdade que, apesar de toda a
cordialidade indesmentível da recepção, mesmo os Emiratos Árabes Unidos são um
Estado no qual o islão é religião oficial; ora, sem laicidade, não se evitará a
“capitis diminutio”, isto é, a não cidadania plena dos cidadãos que não têm
aquela religião. E também é verdade que se denuncia mais a islamofobia do que a
cristianofobia, embora o cristianismo seja hoje a religião mais perseguida...
Mas o que é facto é que foi a primeira
vez que um Papa visitou um país da Península Arábica, berço do islão, e que
celebrou a primeira Missa pública na história da Península. Francisco ousou
denunciar os horrores da guerra do Iémen na qual os Emiratos também estão implicados e fez apelos aos
líderes políticos islâmicos a favor do respeito pelos direitos fundamentais de
todos e, nomeadamente, o da liberdade religiosa. E é indizível a alegria dos
cristãos que puderam encontrá-lo. E deu-se mais um passo para a paz e para a
tolerância entre as pessoas.
Pequeno? Mas um passo, que todos os
beneficiários agradecerão e que Deus abençoa.
Padre e Professor de Filosofia
in DN, 09.02.2019
www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/encontros-para-a-historia-10559617.html
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QUE
COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO
MENDONÇA
O QUE É ESCUTAR?
ANTES
DE SEREM SENTIDO, E PARA CHEGAREM A SER SENTIDO, TODAS AS PALAVRAS DITAS
TIVERAM DE SER SOM
Num dos escritos de Jean-Luc Nancy,
aquele filósofo recorda-nos uma coisa em que não pensamos: como a sonoridade
tem, afinal, um papel decisivo não apenas na comunicação, mas também na
semântica das palavras. É uma verdade: antes de serem sentido, e para chegarem
a ser sentido, todas as palavras ditas tiveram de ser som. Um exemplo que Nancy
avança é o do próprio termo francês para palavra, mot. Mot deriva do latino
muttum, que significa grunhido, e que está também na origem de “murmúrio”, esse
efeito sonoro que assinala a passagem de um sopro entre os lábios. No termo mot
podemos, por isso, escutar aquele mesmo “mu” que surge duplicado no termo
murmúrio, como que a dizer-nos que a nossa linguagem oral é indissociável da
intimidade extrema de uma voz e que tudo o que temos para escutar está nesse
sopro, nesse jogar fragilíssimo de vida. Mesmo na etimologia do nosso termo
português “palavra” podemos anotar esse vestígio. “Palavra” provém do termo
latino parabola, contudo a sua sonoridade não está distante de labrum/labra,
que significa lábios. Em todas as palavras que proferimos a marca dessa
primordial passagem continua a persistir, portanto.
Sendo assim, o que é escutar? O que é
gerir a torrente de palavras que captamos a cada momento? Certamente passa por
ativar os códigos de decifração de sentido. Mas não devemos esquecer que as
palavras não se descobrem apenas no que designamos por sentido. Não as
compreenderemos verdadeiramente se formos indiferentes ao seu som, se não
aproximarmos o ouvido desse estremecimento que cada ser humano gera movendo os
lábios, desse infinitesimal sopro que emite o tremido (fortuito, vacilante,
vibrante) e as suas modulações, pois dessa maneira as palavras narram a
resiliência, o sofrimento, a reparação, a alegria e o segredo daqueles que as
pronunciam.
Precisamos de desenvolver uma
sensibilidade ao acontecimento do dizer em si, essa espécie de respiração sem
mais, onde a vida se colhe numa nudez e numa intensidade originais
Nancy defende que a nossa razão de
falantes é, no fundo, dar a razão do mundo. Mas — não nos iludamos — é no
precário da voz que a razão que damos do mundo ressoa; é na fricção que a voz
desenvolve contra si mesma que essa razão se mostra; é nesse audível quase
inaudível que essa razão se descola; é no murmúrio, no sussurro, no suspiro, no
vagido, no gemido que ela se torna acessível. Claro que é importante o que
dizemos. Mas precisamos também de desenvolver uma sensibilidade ao
acontecimento do dizer em si, essa espécie de respiração sem mais, onde a vida
se colhe numa nudez e numa intensidade originais.
A psicanalista Françoise Dolto
recorria, por exemplo, a um método curioso no acompanhamento que fazia de
crianças: não se limitava a propor-lhes desenhos ou jogos, como é o habitual,
mas praticava, interessada, a escuta e a interlocução com a linguagem infantil.
Porque dizia: quando fica simplesmente chalreando, numa emissão sonora toda
particular, a criança imagina/deseja a presença de outra pessoa. E imita o que
lhe parece ser a linguagem dos adultos, repetindo-a de uma forma tão modificada
que a semântica se torna abstrata: só o som permanece. O que se pode registar é
a vibração. Mas, com isso, não deixa de exprimir-se e de esperar uma resposta
para aquilo que emitiu... Muitas vezes os adultos ignoram que a criança está em
busca de um intercâmbio. Os balbucios e fonemas são um modo de prolongar a
presença dos outros. Servem à criança não só para comunicar, mas para
comunicar-se. Mais tarde, muito mais tarde, no nosso percurso de falantes,
continua a ser assim, mesmo quando nos sentimos a naufragar num mar de palavras
suspensas e numa comunicação que nos parece inevitavelmente inacabada.
in Semanário Expresso, 09.02.2019
http://leitor.expresso.pt/semanario/SEMANARIO2415/html/revista-e/que-coisas-sao-as-nuvens-1/O-que-e-escutar-
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À
PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor
Gonçalves
DOMINGO V
COMUM Ano C
“Jesus
subiu para um barco, que era de Simão,
e
pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra.”
Lc 5, 3
Em que barca vamos?
O mar da Galileia é um grande lago.
Também tem tempestades e ainda se pesca nele como no tempo de Jesus. Quem
visita Israel não se cansa de recordar o encanto do passeio no lago e de quando
param os motores e só se ouve a brisa e se sente a ondulação a balouçar o
barco. É impossível não recordar aqueles dias de Jesus com os primeiros
discípulos que eram pescadores. Foi ali, numa barca que se encheu de peixes em
pleno dia, que foram inventados novos pescadores e uma surpreendente pesca.
A beira do lago e uma barca como
púlpito foram lugares escolhidos por Jesus para ensinar. Mais do que a sinagoga
e os ambientes e lugares sagrados, a palavra de Deus veio ao quotidiano, em dia
comum, ao que antes se dizia profano, onde estava quem queria ouvir. Veio para
todos, à realidade humana, pessoas boas e menos boas, sem critérios de
exclusividade. Da beira do mar ao mar largo onde pede se se lancem de novo as
redes, descobre-se o desejo que Jesus tem de chegar a todos, aproximando-se de
periferias e encurtando distâncias. Não se pescava em pleno dia, mas este pescador
tem uma palavra maior que hábitos e tradições, e é sempre hora para salvar,
para trazer à vida quem se afoga em mares de indiferença e desespero. A melhor
rede para a arte de pescar que Jesus inaugurou é a sua Palavra; que liberta e
salva, transforma e realiza plenamente, compromete e faz presente o reino já
aqui.
Símbolo da Igreja, a barca de Pedro e
dos primeiros discípulos, pode ser tristemente comparada a outros tipos de
navios. Ela não é um “navio de cruzeiros”, cidade flutuante de passeio pelo mundo
para privilegiados, com tudo incluído e vista para o mar, escalas turísticas
para comprar “souvenirs” e tirar “selfies”, sem mergulhar na vida real de
terras e povos, e muita animação constante. Não é “navio de guerra”, com
guarnições sempre alerta para a defesa ou o ataque, de armas apontadas aos
inimigos, vários, pois há tantos que não são nem pensam como nós, dispostas a
morrer para garantir tradições ancestrais. Também não é “barquinho de recreio”
para passeios domingueiros, à vela e a motor mas sem se afastar muito da costa,
com amigos e membros do clube náutico, com quem se vê a paisagem e se discutem
possíveis transformações em terra que raramente se põem em prática.
A barca de Pedro é um instrumento de
trabalho, que tem vela para acolher o vento do Espírito e remos para quando são
precisos os braços dos pescadores. Não faz pesca à linha mas vai ao encontro de
todos e a todos oferece vida nova e em abundância. Nela todos são
corresponsáveis, confiantes de que a sua fragilidade e os seus pecados não são
obstáculo ao amor de Deus. Não teme avançar mar adentro. É escola onde se
aprende a alegria do reino, que tem a força e a surpresa das sementes, e
concretiza em terra a comunhão e serviço que as tempestades proporcionam. Tem a
sua confiança em Jesus, que até ensina a caminhar sobre as águas, e nunca falta
com a Palavra e o pão e os peixes na beira do mar. Afinal, em que barca vamos?
in Voz da Verdade
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=7935&cont_=ver2
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If religious
freedom’s a process, why not name the elephant in the room?
John L. Allen
Jr.Feb 6, 2019 EDITOR
ROME - One way
to measure the real nature of struggles over religious freedom in the Islamic
world is by the kind of person who would show up in the United Arab Emirates
over the last three days, joining Pope Francis and the Grand Imam of Al-Azhar
in Egypt for a massive interreligious paean to peace, love and tolerance.
There were more
than 700 religious leaders on hand, and Tahir Mahmood Ashrafi, a well-known
Muslim cleric from Pakistan, is a good example of the kind of crowd the event
drew.
Ashrafi is
known as a “liberal” cleric in his native country, the kind of religious leader
who condemns extremism and stands for tolerance and acceptance and who’s been
awarded a presidential honor for the defense of peace and human rights. So real
are those commitments that there was recently a push in the Pakistan Ulema
Council, the main body of Islamic clerics in the country, to expel him and
replace him with someone more traditional.
Certainly,
Ashrafi said all the right things in Abu Dhabi in terms of the event’s official
talking points.
“All religious
leaders today are saying that religion doesn’t have anything to do with
extremism and terrorism,” he said.
“I think the
UAE has achieved a great victory, because today a message is going from the UAE
to the whole world that we are Muslims, Christians, Jews and other religious
people, united for brotherhood of human beings against those using the name of
religion for his personal cause and personal needs,” he said.
All that is
encouraging, offering a classic example of the “other face” of Islam.
Yet even such
an enlightened cleric as Ashrafi defended his nation’s notorious blasphemy
laws, which envisions death sentences for perceived outrages against religious
figures, texts and beliefs - and what’s most telling is why.
“Because of the
blasphemy laws, thousands of people have been saved,” Ashrafi insisted. “If the
law weren’t there, I tell you, it’s possible that I speak blasphemy you’ll kill
me, or if you do it I’ll kill you.”
He cited the
well-known 2012 case of a Christian girl named Rishma, who was 14 years old at
the time and who suffers from a mental disability. She was arrested under the
blasphemy laws after reports that she had burned pages from a Koran, and
theoretically faced execution. After the case was reviewed, and in light of her
condition, she was released.
“With the law,
there can be negotiations,” Ashrafi said. “She was released because of the
blasphemy law.”
That, in a
nutshell, is the problem: A respected and clearly moderate Islamic cleric - the
kind of guy, after all, happy to be seen with a pope - nevertheless is saying
that in one of the world’s flagship Muslim nations, religious sensitivities are
so extreme that if the civil law didn’t punish perceived acts of blasphemy,
vigilante violence would be ungovernable.
Pakistan is
hardly the only example of a place where enlightened religious leadership
struggles to gain traction on the ground.
From where
Francis was in Abu Dhabi over the last three days, for instance, it’s only
about an hour by car to Saudi Arabia, where the Koran is officially the national
constitution, apostasy is punishable by death and honor killings aren’t
uncommon when a family member converts from Islam to another faith.
Public
expressions of non-Islamic belief aren’t tolerated, and the Kingdom’s Muttawa,
the religious secret police, sometimes harass and detain Christians even for
gathering for worship in private homes.
In the UAE
itself the same pattern exists, albeit generally in more benign form. Last
year, the UAE ranked 45th among the world’s top 50 nations in terms of a lack
of religious freedom according to Open Doors, a Protestant watchdog group that
tracks anti-Christian persecution around the world.
Granted,
Francis used the occasion to lay down a couple of markers on religious freedom,
insisting that it’s more than freedom to worship but involves the right to be
public about the faith one professes.
“I would like
to emphasize religious freedom,” he said Monday. “Without freedom, we are no
longer children [of God] but slaves.”
Some observers
see the joint declaration Francis signed with Sheikh Ahmed al-Tayeb of Al-Azhar
as an important text that could have important consequences, perhaps especially
in Egyptian schools most influenced by Al-Azhar.
“We resolutely
declare that religions must never incite war, hateful attitudes, hostility and
extremism, nor must they incite violence or the shedding of blood,” it reads.
Still, that
sort of rhetoric has been heard before. What we didn’t hear in the UAE was a
specific papal challenge to the impediments in many Islamic societies to
realizing that vision, with blasphemy laws being one clear example.
Perhaps the
reality is that nothing a pope could say or do would have much impact on the
social realities described by leaders such as Pakistan’s Ashrafi. However, we
won’t know until it’s tried. Francis said on the plane coming back to Rome that
achieving full religious freedom is a “process” - and, perhaps, a slightly more
robust papal capacity to name the elephant in the room with his Muslim hosts
could be part of that process.
in Crux, Feb 6,
2019
https://cruxnow.com/news-analysis/2019/02/06/if-religious-freedoms-a-process-why-not-name-the-elephant-in-the-room/
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