14 julho 2019


P / INFO: Crónicas & A guerra dos Papas
Frei Bento – Pluralismo religioso e originalidade cristã
Padre Anselmo - Confissões do Papa Francisco. 3
Padre Tolentino - O Coração da Vida
Padre Vítor – Cem Palavras

PLURALISMO RELIGIOSO E ORIGINALIDADE CRISTÃ
Frei Bento Domingues, O.P.

Esta coexistência pacífica está a ser activada para alargar e aprofundar a qualidade espiritual das religiões e as suas responsabilidades sociais ou é sinal de crescente indiferença?

1. O panorama dos estudos sobre a religião na sociedade portuguesa continua a enriquecer-se. Segundo um Inquérito recente , o pluralismo religioso, no território português, está a concentrar-se na Área Metropolitana de Lisboa. Nasce a pergunta: este pluralismo é vivido como diálogo que vai alterando e fecundando os comportamentos de cada grupo ou limita-se a garantir que possam coexistir de forma tolerante ou até indiferente?
A liberdade religiosa está legalmente garantida em Portugal. Segundo um Relatório de 2018, não se registaram casos significativos de discriminação por razões religiosas ou abusos de liberdade religiosa que possam ser imputáveis ao Estado ou a outras entidades, nem se perspectivam, num horizonte temporal próximo, tensões sociais, económicas ou políticas que façam prever uma alteração desta situação.
Importa robustecer este clima porque, hoje, tudo é muito frágil. Mas persiste a pergunta: esta coexistência pacífica está a ser activada para alargar e aprofundar a qualidade espiritual das religiões e as suas responsabilidades sociais ou é sinal de crescente indiferença?
Não se pode confundir o diálogo inter-religioso com uma passagem de modelos na qual cada um exibe a sua imagem convencional retocada para ficar bem na fotografia. Sabemos que um confronto é amistoso e crítico quando cada grupo reconhece com verdade: em relação ao passado, nós mudamos muito e vós também.
Com isto não se pretende a abolição das identidades dos diversos movimentos e instituições, desenhadas pela história de fidelidades, inovações e traições, de verdadeiras e falsas reformas . As religiões são construções simbólicas, rituais e organizativas do ser humano, sem garantias de infalibilidade, para configurar o sentido da vida e alimentar a esperança nos bons e nos momentos em que tudo parece perdido.
Como dizia Frei José Augusto Mourão, a era das definições unívocas de religião acabou. Prevalece uma concepção liberal que vai obrigar a que se aceite conviver segundo a ideia de que não há uma saturação do espaço da verdade. O espaço da verdade partilha-se. Há posições, há valores que diferem de religião para religião, de grupo para grupo, de instituição para instituição. Desde que isso não colida com o inegociável, com o indisponível, é possível às pessoas conviverem em paz, sem guerras de religião.
O mito de Babel era a ideia concentracionária de uma única língua, da abolição das diferenças. Era a violência de uma única linguagem. O simbólico derrube da Torre aponta para um valor que nos há-de congregar: se não chegarmos ao diálogo, que cheguemos, no mínimo, à negociação das diferenças.
2. Mesmo sem uma definição unívoca de religião, há quem não goste de abrigar o fenómeno cristão sob esse nome. Eduardo Lourenço, por exemplo, tem observações pertinentes acerca deste ponto: «É mais do que discutível que o cristianismo seja uma mística, embora haja, naturalmente, uma mística cristã. É mesmo mais do que discutível que o cristianismo seja uma religião, no sentido antigo e clássico do termo ciceroniano de religare, embora fosse esse o que, exceptuando o horizonte da teologia negativa, se impôs culturalmente».
Explica porquê: «A religio, segundo Cícero, denota a dependência, o laço que ata o homem a Deus. Mas de algum modo esse laço não ata menos Deus ao homem. O cristianismo está aquém ou além desta mútua interdependência. O nome de “Pai”, dado a Deus, não é uma mera antropologização destinada a nomear o que não tem nem pode ter nome – como se fosse “criado” pela nossa nomeação –, mas a pura metáfora do sentimento de pura gratuidade que é a essência do laço que não nos ata a Deus – e muito menos Deus a nós –, mas nos desata de todo o império da necessidade. Deus não é a nossa “propriedade” nem nós a de Deus».
3. O filósofo espanhol, José Antonio Marina, escreveu um ensaio desafiado por outro de sinal contrário, o de Bertrand Russell. Não cabe nesta crónica a discussão que merece. Defende que a religião é a experiência que acompanhou, desde o princípio, a irrupção da criatividade do mundo. O despertar da inteligência humana aconteceu quando um animal peludo bípede compreendeu um signo: o visto converteu-se em símbolo do não visto. Foi, porém, com Jesus que este filósofo percebeu que, apesar de todos os horrores na história humana, o amor de pura generosidade, de pura gratuidade (agapé), acabará por vencer. Confessa que é uma posição individual, optimista e megalómana, mas se Jesus tem razão, «vai ser possível o meu grande sonho: transformar, em todos os registos da nossa vida, o esforço em graça, em agapé». Se o ser humano é um animal simbólico – vendo o que não vê, trazendo para perto o que está longe - a sua fé desafia, mas não contradiz, a razão. Tem olhos e coração que a razão desconhece.
O Cristianismo, nas suas múltiplas expressões, nas suas realizações históricas de pura generosidade e de traições sem nome, está ligado a uma realidade histórica incontornável: Jesus de Nazaré. Tendo em conta a sua prática, as suas parábolas, o dom da sua vida pelos mais abandonados e a recusa de todo o poder de dominação, testemunhou que o Deus de quem se fiou em tudo, até no momento mais dramático da sua existência truncada, é abertura universal a todos os seres humanos, de todos os povos, culturas e religiões.
Jesus não tentou fundar uma nova religião. Indicou a Fonte do seu modo novo de viver para os outros, em liberdade e suscitando vidas em processo contínuo de liberação. É nosso contemporâneo.
Nessa Fonte todos podem beber, banhar-se e renascer criaturas novas. Vidas nascidas do puro Amor (Agapé), para que a sua lei seja a graça do Espírito da liberdade, suprema responsabilidade para que todos tenham vida em abundância. Como? Deixou tudo aberto, em todos os âmbitos, à criatividade humana. Com uma condição: que tudo seja feito, com sabedoria, para servir e nunca para dominar. Avisou: o amor do dinheiro é uma idolatria.
in Público, 14. 07.2019
https://www.publico.pt/2019/07/14/sociedade/opiniao/pluralismo-religioso-originalidade-crista-1879345
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Confissões do Papa Francisco. 3                                         
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Termino a longa e bela entrevista do Papa Francisco à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México.  Temas importantes de hoje: a reforma da Igreja, erros cometidos e a confissão, acusação de heresia, o diálogo com o islão, o desejo de ir à China, quanto tempo ainda de pontificado?
2. 15. Francisco e a reforma da Igreja. A jornalista: “Qual é a coisa mais bonita que julga ter feito?” “O mais bonito para mim é, foi e é sempre estar com as pessoas, que queres que te diga? Eu renasço quando vou à praça (Praça de São Pedro), quando vou a uma paróquia. Às prisões..., estar com as pessoas. Sim, sou Papa, sou bispo, fui cardeal..., isto tudo pode cair, mas, por favor, não me tirem o ser padre, cura.”
Erros? “Erros há sempre. Confesso-me todos os 15 dias, o que significa que cometo erros.” A jornalista: “E são confissões longas ou curtas?”. Francisco: “A curiosidade feminina!, ‘the human touch’! “Como reagiu a essa de o acusarem de herege?” “Com sentido de humor, filha”. A jornalista: “Não lhe dá muita importância?” Resposta: “Não, não, rezo por eles porque estão equivocados, por vezes, pobre gente, alguns são manipulados. Vi quem eram os que assinavam... Não, a sério, sentido de humor e eu diria, ternura, ternura paternal. Quer dizer, isso não me fere minimamente. A mim o que me fere é a hipocrisia, a mentira.”
A jornalista: “E com a sua reforma tem a sensação de que estamos...” Resposta: “A reforma não é minha. Foram os cardeais que a pediram. Isto é assim, tal qual. As pessoas têm vontade de reformar. O esquema de corte tem de desaparecer. Foram os cardeais que o pediram. Bem, a maioria, graças a Deus.” A jornalista, referindo o caso de Maciel, fundador da Legião de Cristo, observou que o Papa João Paulo II tinha “obstaculizado essas reformas...”. Resposta: “Por vezes, enganaram João Paulo II.” No caso de Maciel e dos Legionários, “Bento XVI foi corajoso. E João Paulo II também. Quanto a João Paulo II, é preciso entender certas atitudes, porque vinha de um mundo fechado, a cortina de ferro, ainda estava vigente o comunismo lá... E havia uma mentalidade defensiva. Temos que compreender bem, ninguém pode duvidar da santidade desse homem e da sua boa vontade. Foi um grande.”
2. 16. Geopolítica e islão. Pergunta a jornalista: “Qual é a sua estratégia face ao islão? Sente-o como uma prioridade neste momento?” Francisco: “Penso que sim. De facto, vou aos bairros em Roma, às paróquias e vêm, dizendo: ‘sou muçulmano’, ‘sou muçulmana’. Vêm saudar-me ou estão com o véu. Ou seja, o islão entrou na Europa outra vez, sejamos realistas, o islão é uma realidade que não podemos ignorar.” Também na África, há bispos que contam que há muçulmanos que vão rezar ao altar de Nossa Senhora. “Creio que somos irmãos, vimos todos de Abraão e nesse aspecto sigo as linhas do Concílio: estender as mãos aos judeus, aos islâmicos, estender as mãos o mais possível.”
Francisco reconhece a evidência de que “o islão está de modo muito forte ferido por grupos extremistas, por grupos intransigentes, fundamentalistas. Também nós, os cristãos, temos grupos fundamentalistas, pequenos grupos fundamentalistas, que obviamente não são guerrilheiros. Conclusão: é preciso ajudar os muçulmanos com a proximidade para que mostrem o melhor que têm, e esse melhor não é precisamente o terrorismo.” Está aí “o grande tema dos mártires cristãos...”, observa a jornalista. E Francisco: “Sim, e bastam pequenos grupos para causar desastres”.
Neste contexto da cristianofobia e da paz, chega a notícia do convite oficial para que o Papa visite o Iraque, o que poderá acontecer já em 2020: “Tenho a honra de convidar oficialmente Sua Santidade a visitar o Iraque, berço da civilização e lugar de nascimento de Abraão”, escreveu o presidente iraquiano, Barham Salih, numa missiva ao Papa. É sabido que aí, ao longo dos últimos anos, o número de cristãos passou de 1.5 milhões para uns 500 mil.
Ainda neste domínio, é necessário relembrar o que Francisco também tem sublinhado em ordem a este diálogo e à paz. Em primeiro lugar, também o islão tem de aprender o que custou à Igreja Católica, mas aprendeu: a leitura dos textos sagrados, no caso dos muçulmanos, do Alcorão, não pode ser literal, mas histórico-crítica. Por outro lado, é essencial salvaguardar a laicidade do Estado, isto é, a separação da religião e da política; por outras palavras: o Estado deve ser laico, não pode ter uma religião oficial; o Estado tem de ser confessionalmente neutro, para garantir a liberdade de todos. Sem a laicidade, não se supera a chamada capitis diminutio, isto é, a diminuição de cidadania dos cidadãos que não seguem a religião oficial. Dois princípios fundamentais.
E, evidentemente, Ahmed al Taleb, o Grande Imã da Mesquita e Universidade Al Azhar, no Cairo, com quem o Papa Francisco assinou, em Abu Dhabi, a histórica Declaração “A Fraternidade Humana”, a que aqui fiz longa referência, não pode continuar a aprovar que se bata na mulher “sem lhe partir um osso”: “Não deve partir-lhe um osso nem provocar danos num órgão ou membro do seu corpo nem tocar-lhe com a mão na cara nem provocar-lhe feridas nem causar danos psicológicos.”
Ainda no quadro da geoestratégia, Francisco confessa que o seu sonho é a China: “o meu sonho é a China. Gosto muito dos chineses.” Apesar das críticas, já que a perseguição não acabou, saúda o acordo com a China, para superar a dualidade da Igreja unida a Roma e a patriótica. “Agora, os católicos fruem o estar juntos. Com toda a política exterior dos pequenos passos, alguns sentem-se fora, isso é verdade, mas é a minoria. De facto, celebraram a Páscoa todos juntos, todos juntos e em todas as igrejas, este ano não houve problemas.” “Leva-nos à China?”, perguntou a jornalista. “Ficaria encantado. Para si vai ser a viagem número...”.
2. 17. Quanto mais tempo ainda como Papa? A jornalista: “Lembra-se de que há quatro anos me dizia: ‘é que eu tenho a sensação de que o meu pontificado vai ser breve, dois, três, quatro anos...’, e já estamos, felizmente, no sexto.” Francisco: “E eu tenho a mesma sensação.” A jornalista: “Já passaram seis anos, já não é tão curto.” Francisco: “Mas também não pensemos em 20.” A jornalista: “Bom, em 20 talvez não, porque tem 82. Mas nos 100 anos...”. Resposta: “Está bem.”
A jornalista: “Recordo que também me disse que o que mais estranhava era como Papa não poder sair às escondidas para comer uma pizza, lembra-se? Já conseguiu fazer isso?” Francisco: “Não. Em Roma do que mais tenho saudades é de sair para comer uma pizza... Não, não o fiz. É uma coisa a que tenho de renunciar. Porque em Buenos Aires ia. A mim a rua diz-me muito, aprendo muito na rua.”
3. E a gente fica com a sensação de que Francisco, no meio de todas as crises por que passam a Igreja e o nosso mundo, é uma bênção para a Igreja e para o mundo. E compreendemos também o diálogo, no seu breve encontro com o Padre Ángel, o profeta dos pobres, presidente da ONG “Mensageiros pela Paz”, no Panamá, aquando do encontro da juventude: “Como estás?”, perguntou-lhe o Papa. Resposta: “Vou bem, apesar dos problemas. E tu, Francisco?” E Francisco: “Sobre os meus problemas, nem te falo.”
in DN, 15.07.2019
www.dn.pt/edicao-do-dia/14-jul-2019/interior/confissoes-do-papa-francisco-3-11107478.html
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
O CORAÇÃO DA VIDA
VIVEMOS MUITO À SUPERFÍCIE, A ESBRACEJAR, A CORRER DE UM SÍTIO PARA OUTRO, E FAZEMOS DISSO UM HÁBITO
Diz-se que os saberes são aquilo que nos permite ganhar a vida. Mas não podemos esquecer que a sabedoria é aquilo que nos permite verdadeiramente vivê-la. Cada um de nós transporta um conjunto de competências — fruto de múltiplas aprendizagens — que nos dão acesso a um ofício, a um labor, a uma função. Os saberes pertencem a esse plano. A sabedoria, por seu lado, é aquilo que nos faz tocar o coração da vida, os seus porquês entusiasmados, sejam de dor ou delícia, e os seus sem porquês a perder de vista. A nossa tendência, demasiadas vezes, é afunilar a realidade ao trabalho da sua conquista imediata. A luta pela sobrevivência literalmente nos esgota e deixámos por fazer a viagem mais profunda, essa que sem palavras justifica o nosso estar aqui. O místico Silesius escreveu que “a rosa é sem porquê”, desafiando-nos à aventura profunda do viver. E, de facto, precisamos desse viver que não depende da contingência que nos rodeia, nem da exclusiva confirmação que o utilitário ou o funcional possam trazer.
A verdade é que vivemos muito à superfície, a esbracejar, a correr de um sítio para outro, e fazemos disso um hábito. Vivemos dando respostas às solicitações que constantemente nos são feitas, às imagens que se atropelam numa sonâmbula sucessão. Na voragem destas sequências, cada instante emerge como um ponto desconexo que num relâmpago se esvazia e não como testemunho de uma iminência maior que perdura. E é assim que raramente mergulhamos no coração da vida. Raramente pensamos numa vida que nos pertença, e que seja mais do que um tique, mais do que a cega forma rotineira de aparecermos a nós próprios e aos outros. Não tenhamos dúvidas: precisamos de mais do que isso. Precisamos de uma existência que nos expresse, que decline o silêncio, o mistério, a imensidão, o aberto do próprio ser, e não a vidinha sempre à pele, condicionada, diminuída e cheia de retrações.
A sabedoria é aquilo que nos faz tocar o coração da vida, os seus porquês entusiasmados, sejam de dor ou delícia, e os seus sem porquês a perder de vista
Acontece-nos isto: olhamos para um jardim, gostamos, não gostamos, intervimos, cortamos, cerceamos e, de repente, temos um jardim geométrico, deslumbrado por formas perfeitas. Contudo, é bom saber que o nosso desejo deste artifício é uma enganadora ilusão, porque a vida é informe, ainda em bruto, ainda inicial. Por isso, ela é viva. Creio que temos de construir os nossos canteiros bem ordenados, mas temos de desejar ardentemente que também as flores de que não conhecemos o nome venham florir à nossa porta. Porque elas nos dão o endereço da existência em cascata, na sua pura torrente, na sua originalidade e verdade.
Uma das formas fundamentais da sabedoria é a descoberta que cada um de nós vai fazendo numa vida adulta, a ciclo e a contraciclo, a tempo e fora do tempo, de que somos inacabados. Não por acaso os mestres espirituais ensinam que um dos maiores obstáculos na vida interior é a perfeição, ou melhor, a ideia da perfeição. Porque, no fundo, ela nos atira para fora da própria vida, e nos mantém como que aprisionados à miragem de uma existência que não é a nossa. Mais importante do que a completude é nos sabermos nas mãos do oleiro. São duas experiências a associar: a do inacabamento e a de habitarmos continuamente um processo de (re)criação. Por exemplo: os dias da nossa vida, em que parece que já não há nada para acontecer, são, mesmo se de uma forma que porventura ignoramos, um tempo de criação. Grande tarefa esta de levarmos a sério a própria vida. Porque o abraço ao que somos é a única possibilidade de um abraço que nos salve. A possibilidade do abraço de Deus.
in Semanário Expresso, 13.07.2019 p164
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2437/html/revista-e-1/que-coisas-sao-as-nuvens/o-coracao-da-vida
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XV COMUM Ano C
“Passou junto dele e, ao vê-lo,
encheu-se de compaixão.” Lc 10, 33
Cem palavras
Com pouco mais palavras (contando artigos e partículas gramaticais) chegou até nós a parábola que Jesus contou para responder à pergunta: “quem é o meu próximo”! E ficamos “sem palavras” diante dum relato onde cabe a vida toda, e podemos “entrar na pele” de todos os personagens. A história, que não seria notícia de capa de nenhum jornal, nem “post” das redes sociais (pois o samaritano não tiraria nenhuma “selfie”!), ressoa no íntimo de quem a lê ou escuta.
Quem somos nós neste relato? Um homem no caminho que desce de Jerusalém a Jericó: 1100 metros de desnível. Figura de todos os homens e mulheres, que sobem e descem tantos caminhos, anónimo e tão igual a todos nós, sem saber o imprevisto que o espera. Bandidos, profissionais do mal, especialistas no roubo violento e na fuga, indiferentes à sorte dos frágeis e desprotegidos, de consciência adormecida para as consequências dos seus actos, cobardes que atacam pela força da maioria, tão diferentes do que cada um de nós pode ser?! Um sacerdote, homem de Deus, íntimo do sagrado, purificado pelo culto, de olhar cego pelos rituais da pureza, passa adiante: a dureza de coração é maior do que a compaixão, e connosco tal não aconteceria! Um levita, um funcionário zeloso do templo, habituado às coisas de Deus e esquecido do amor dos outros, vê e segue adiante: a pressa ou a falsa humildade de achar que nada se pode fazer distinguem-no de nós! Um samaritano, raça desprezada pelos judeus, que tinha programa a cumprir, salva a honra de todos nós, e é o herói improvável por uma abundante compaixão. E ainda um estalajadeiro, que também podia ser um de nós, capazes de cuidar a pedido (e ainda mais com pagamento antecipado)!
Do saber ao fazer vai um pequeno grande passo. Em 11 gestos, 11 verbos, o samaritano revela a compaixão em acto. Não é quem muito sabe que faz avançar a história; nem quem muito diz. Mas quem muito ama. O segredo não é saber quem é nosso próximo, mas de quem é que nos aproximamos. A nossa religiosidade vai ao encontro da vida, das pessoas na sua realidade, ou passa de largo, enredada em discussões vazias e guerrinhas de poder? A criatividade do amor abre futuros, provoca outros a fazer melhor, não se limita a constatar o mal ou a desistir antes de tentar.
O Samaritano é Jesus; e não nos pede Ele que sejamos nós também? Na atenção a um e a todos, aqui e agora, nos pequenos e nos grandes problemas da humanidade. Como continuam actuais estas palavras da Gaudium et Spes: “a profunda e rápida transformação da vida exige com grande urgência que ninguém, por despreocupação ou por inércia, se conforme com uma ética meramente individualista. Os deveres da justiça e da caridade cumprem-se cada vez mais contribuindo para o bem comum de acordo com a capacidade própria e a necessidade do próximo, promovendo e ajudando as instituições, públicas ou privadas, que se dedicam a melhorar as condições de vida dos homens” (n.30). Ficamos “sem palavras”, não é verdade? Passemos então aos actos!
in Voz da Verdade, 14.07.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8305&cont_=ver2
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A guerra dos papas
Manuel Alte da Veiga
Falo da guerra não dos papas entre si (que também as houve e bem violentas) mas entre os “adeptos” deste ou daquele, nas imensas bancadas onde toda a gente se pode refugiar e donde aprecia, a modos de júri conflituoso, o grande desfile dos sucessores de São Pedro.
Comecei a dar-me conta desta “guerra” aquando da eleição de João XXIII, em 1958. Muita gente viu nesse papa uma catástrofe religiosa, um verdadeiro atentado contra a “eterna verdade” que sustentava a “cidade eterna”. E tratava-se de pessoas profundamente religiosas! Porém, não estariam preparadas para pensar que nenhum dos muitos caminhos para procurar a verdade se pode arrogar ser o único verdadeiro. Como se cada um de nós não tivesse que trabalhar e sofrer para se manter fiel à procura da verdade!
Como escreveu o padre jesuíta Miguel de Almeida, cada Papa tem o seu próprio carisma e estilo de intervenção, embora pareçam ocupar um lugar acima do resto dos mortais.
Numa pequena tertúlia sobre questões religiosas, aconteceu-me elogiar particularmente algumas características do então recém-eleito Papa Francisco. Tive então a experiência de como pode surgir uma “guerra dos papas”…
Os Papas da minha vida
Estudei os seus principais escritos. Aqui, com base nalgumas notas antigas, pretendo ser fiel aos sentimentos que mais me marcaram, úteis para discussão mas demasiado usados para “fazer guerra”.

Pio XII (1939-1958) foi o Papa da minha adolescência. Hierático, quase um ser sobrenatural, divino, imagem da perenidade e solidez da “única” “Igreja de Cristo”, à qual podemos confiar (descansadamente, para alguns) a nossa “salvação”. Imperturbável: no bombardeamento de Roma, na II Guerra Mundial, acalmava, com um gesto comedido, a multidão que “manchava de sangue o branco imaculado da veste pontifícia”. Asceta e sábio, a sua opinião era sagrada.

João XXIII (1958-1963). De repente, um papa “bonacheirão”, bondoso, sorridente e afável, divertido até. Apostava nas relações humanas positivas, construtivas e geradoras de alegria. Profundo conhecedor (e activista) dos problemas sociais e tragédias humanas do seu tempo. Consciente de que as várias confissões cristãs não andavam atentas aos “sinais dos tempos”, apresentando um “reino de Deus” estagnado e legalista. Abriu caminho a uma nova linguagem, a uma comunicação mais honesta, realista, amiga, humilde – e portanto espantosamente sonora. Foi o Vaticano II. Enfrentou contendas e duras oposições, mas os cristãos sentiram de novo que valia a pena e era saudável ser cristão.

Paulo VI (1963-1978) uniu autoridade pontifícia à inteligência e experiência de dirigir uma diocese fulcral (Milão). Provoca dissensões entre os padres conciliares ou conselheiros. “Converte” alguns e opõe-se drasticamente a outros. Encíclicas “fortes”, bem pensadas e estruturadas. Mas escolheu a posição contrária à da maioria dos peritos, ao publicar a retrógrada Humanae Vitae. Sob alguns aspectos, misturava Pio XII com João XXIII, mas longe do carisma de “estar com os outros”, característico de João.

João Paulo I (26 de Agosto-28 de Setembro 1978) prestou homenagem às qualidades positivas de João e Paulo. O “papa do sorriso”, perante as máscaras que se escondem nos recantos sombrios do Vaticano. Deixou alguns escritos que nos tocam profundamente. A sua morte reavivou o fim violento de alguns papas e alertou toda a gente para que até no mais alto nível humano, há quem se sirva de Jesus Cristo para satisfazer a ganância do poder.

João Paulo II (1978-2005) trouxe aquele ar muito fresco de quem vem de longe – da Polónia, onde pratica desportos de Inverno e onde aprendeu o seu gesto teatral. Um homem que sofreu, nos amigos chegados e na própria pele, a crueldade física e psicológica da perseguição comunista. Um homem que tudo fez para projectar a “sua” Igreja Católica como mensageira da salvação em Jesus Cristo. Com a firmeza (discutível) de verdadeiro líder. A forte imagem que criou fora da Igreja tanto provocou adeptos fervorosos como descontentamento pela sua “política interna”. E acabou por favorecer grupos (não só de leigos), que se apegavam e se serviam demasiado do poder ideológico e económico do Vaticano.

Bento XVI (2005-2013) não me podia agradar, pois conhecia a sua posição de inquisidor, inflexível e “perseguidor” de eminentes teólogos e homens da Igreja, que parecessem pôr em perigo ou desvalorizar o depositum fidei(o que já se notava em João Paulo II). De grande inteligência e cultura, mas criando desinteligências com alguns dos seus “ditos”. Partilho a opinião de muitos, ao dizer que o seu feito mais positivo e mediático foi a resignação. É sempre um louvor à virtude da humildade e funcionou como um toque de alarme. Mas continuou a ser fraco perante os que ateavam nele o fogo da oposição. Encíclicas notáveis, sobretudo as primeiras.

Francisco libertou a linguagem humana. Mostrou que o sentimento e racionalidade das palavras do nosso mundo favorecem o encontro sincero com Deus. Sabe escutar: como um médico, pai e amigo… e só assim dará uma resposta “com sentimento e racionalidade”, muitas vezes bastando apresentar-se com o silêncio de um ombro amigo.
Dá exemplo de como é necessário, para a realização da pessoa, libertar-se das opressões da pobreza e sobretudo da riqueza, dinheiro e poder. Mostra como simples acções são “revolucionárias”, quando de acordo com o impulso de cada vez melhor instaurar o Bem. Procura sem medo a verdade: sem medo de “adversários” e sem medo dos “poderosos” (ou que agem como se fossem).
Na longa entrevista com Dominique Wolton, quase que define a sua missão como “ir ao encontro dos outros”. Sacerdotes, religiosas e religiosos devem exercer a função “educadora” (= libertadora) de pai e mãe, com o prazer de quem se realiza ao fazer surgir pessoas adultas, capazes de promover no mundo o que é bom, vivendo assim uma sã sexualidade.
Centrado na pessoa humana e não nas leis (muitas vezes anti-humanas), promovendo uma Igreja anti-corrupção, tem sido muito atacado, como seria de esperar. Pela mesma razão, e porque é avesso a autoritarismos, é muito apreciado e bem-vindo. Evidentemente, se não pudéssemos ver-lhe defeitos e erros, é porque usaria as tais máscaras do Vaticano sombrio.
Manuel Alte da Veiga é professor universitário aposentado
in 7Margens. 13.07.2019
https://setemargens.com/a-guerra-dos-papas/?utm_term=7Margens+-+Hoje+-+A+guerra+dos+papas&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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