21 julho 2019


P / INFO: Crónicas

Frei Bento – A fé cristã num colégio católico
Padre Anselmo – Decálogo para os núncios
Padre Tolentino - A diáspora portuguesa
           Padre Vítor – Primeiro, Maria; depois, Marta

A FÉ CRISTÃ NUM COLÉGIO CATÓLICO
Frei Bento Domingues, O.P.

A procura da excelência no ensino tem de ser o cuidado de todos, seja qual for a sua orientação.

1. Neste texto, não pretendo abordar as questões gerais do ensino, em Portugal. Não é da minha competência. Pediram-me para tratar do que exige a fé cristã de um Colégio Católico.
É suposto estes colégios terem alguma referência ao Secretariado Nacional da Educação Cristã. Isto não impede que as orientações de cada instituição, com as suas tradições e práticas educativas, possam ser bastante diferentes.
As escolas, segundo os habituais rankings, são classificadas, bem ou mal, pelos resultados académicos. Nunca dei conta que a Religião contasse para esse efeito. Falo de religião em sentido genérico sem, para já, apreciar as tendências dentro deste fenómeno social que, no Ocidente e nomeadamente em Portugal, é cada vez mais investigada pela Sociologia[1].
A Igreja Católica, sobretudo em alguns países do Ocidente, vê-se confrontada com a declaração: “espiritual sim, religioso não”. Uma sondagem do ano passado, na Alemanha, referente ao ensino religioso e ético, dava os seguintes resultados: 52% acredita em Deus, mas só 22% se declara religioso. “Crentes” são o dobro. O facto de haver pessoas que se definem “espirituais” e não “religiosas” ainda não é um fenómeno de massas. É uma minoria, entre os 6 e 13%, mas é uma tendência que se vai afirmando sobretudo entre os jovens.
É preciso ter em conta que, quando, no Ocidente, se fala de religião, a maior parte das pessoas pensa no Cristianismo, nas grandes Igrejas com os seus dogmas e os seus ritos. A distinção entre espiritual e religioso exprime a tentativa de preferir formas de religiosidade que não têm uma conotação eclesial. As normas respeitantes à fé, sentidas como obrigatórias, contam apenas para um número cada vez menor de pessoas. Neste contexto, a expressão mais usada é a de mercado ou mosaico das religiões, seja qual for a sua origem[2].
A Religião é considerada tão privada – cada um tem a sua ou não tem nenhuma – que, mesmo nos colégios católicos, não conta para os seus rankings. Nestes existe, no entanto, uma disciplina, com carga horária, chamada Educação Moral e Religiosa Católica.
2. Quando os colégios tinham regime de internato, ouvi dizer muitas vezes a quem viveu nesse quadro: já tenho missas para o resto da vida. Como dizia o célebre Bispo de Viseu, D. António Alves Martins, a religião deve ser como o sal na sopa: nem de mais nem de menos. Um remédio medíocre contra o aborrecimento.
A verdade é que encontrei, ao longo da vida, pessoas que frequentaram colégios e seminários que conservavam más recordações da religião que lhes era imposta. Isto não significa que não houvesse, também, pessoas agradecidas por essa rigidez disciplinar. Essas reacções, por vezes, manifestavam temperamentos: as alunas/os de carácter mais submisso ou mais rebelde.
Excepto aqueles casos, que de educadores só tinham o nome, pois eram doentios com os educandos, sempre ficou uma boa recordação dos mestres que o eram e da qualidade do ensino e, sobretudo, do sentido da justiça[3].
O que me impressiona é que, na escolha dos professores de Educação Moral e Religiosa, não haja, pelo menos, o cuidado que existe com os professores de matemática e de português.
Num colégio católico devia existir – e em muitos casos talvez já exista – uma equipa pastoral que reúna professores de psicologia, de ciências e literatura para evitar o desfasamento entre o crescimento académico e o crescimento da fé e das suas razões. De outro modo, quando os alunos ouvem nas aulas de Religião narrativas bíblicas sobre a criação, por exemplo, e nas de ciências estudam as teorias da evolução, quem fica a perder é a religião, a linguagem do inverosímil. Parece que não se aprendeu nada com os embates entre a religião e as ciências do passado. Galileu e a Inquisição! Esquece-se, porém, que a teoria do Big-Bang é de um padre, professor da Universidade Católica de Lovaina. A tão falada contradição entre religião e ciência só pode ser fruto da ignorância nos dois campos.
A procura da excelência no ensino tem de ser o cuidado de todos, seja qual for a sua orientação. Esta procura não pode abrandar quando se trata do ensino religioso. Convém não esquecer aquilo que S. Tomás dizia: se sei e digo de cor o Credo, estou a confessar a fé católica, mas se não procuro saber como é verdade aquilo que confesso ser verdade, estou certo, mas de cabeça vazia. Isto era da Idade Média! Agora, o ambiente que se respira não é o da Cristandade. O dom da fé ou é cultivado ou desaparece. Importa criar um ambiente em que a fé cristã surja como uma fonte de alegria. Como dizia S. João[4], isto vos escrevemos para que a vossa alegria seja completa.
3. A educação cristã da fé exige a descoberta progressiva de Jesus Cristo como sentido, como beleza, como responsabilidade da vida e para a vida. Para realizar essa descoberta progressiva, a filosofia, as ciências, a estética e a ética devem andar bem casadas. Como os bons casamentos, também conhecerá as suas turbulências amistosas.
A linguagem simbólica da fé cristã não apaga o pensamento nem a investigação. A linguagem simbólica nasce de fontes profundas. Não pode ser usada como um calmante. Ela é um excitante de todas as manifestações da vida verdadeira. Dá sempre muito que sonhar e pensar.
A expressão estética dos símbolos da fé provocou e convocou, ao longo da história, a grande música, a grande poesia, a grande pintura e a grande arquitectura.
As celebrações, as orações e as múltiplas expressões da espiritualidade, de um colégio católico, devem merecer um tal cuidado, uma tal participação, que se tornem apetecidas e interpelantes.
Um colégio católico deve ser um laboratório da descoberta e da experimentação da fé cristã. Esta exige o respeito prático do pluralismo religioso. A educação para a tolerância, para o diálogo, para a descoberta do outro é o melhor clima para esse laboratório.





[1] Cf. Alfredo Teixeira, Coord., Inquérito Identidades religiosas em Portugal, CERC-CESOP (2011); Identidades religiosas na Área Metropolitana de Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019; Alfredo Teixeira, Religião na Sociedade Portuguesa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019.
[2] Cf. Christoph Paul Hartmann, in Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, 13. 07. 2019.
[3] Cf. Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da angústia, Guimarães Editora, 2000; em sentido contrário, Miguel Sousa Tavares, Cebola Crua Com Sal e Broa, 2018.
[4] 1Jo 1, 1-4
in Público, 21.07.2019
https://www.publico.pt/2019/07/21/sociedade/opiniao/fe-crista-colegio-catolico-1880224
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Decálogo para os núncios
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia

1. A Igreja tem dentro dela, inevitavelmente, uma tensão que a conduz a um paradoxo. Esta tensão e este paradoxo foram descritos de modo penetrante, preciso e límpido pelo sociólogo Olivier Robineau, nestes termos: "A Igreja Católica é uma junção paradoxal de dois elementos opostos por natureza: uma convicção - o descentramento segundo o amor - e um chefe supremo dirigindo uma instituição hierárquica e centralizada segundo um direito unificador, o direito canónico. De um lado, a crença no invisível Deus-Amor; do outro, um aparelho político e jurídico à procura de visibilidade. O Deus do descentramento dos corações que caminha ao lado de uma máquina dogmática centralizadora. O discurso que enaltece uma alteridade gratuita coexiste com o controlo social das almas da civilização paroquial - de que a confissão é o arquétipo - colocado sob a autoridade do Papa. Numa palavra, a antropologia católica tenta associar os extremos: a graça abundante e o cálculo estratégico. Isso dá lugar tanto a São Francisco de Assis como a Torquemada."

2. É com este paradoxo que o Papa Francisco tem de conviver, ao mesmo tempo que tem feito o seu melhor para dar o primado ao Evangelho, ao Deus-Amor, para que a Igreja enquanto instituição - e é inevitável um mínimo de organização institucional - não atraiçoe a Boa Nova de Jesus. Ele é cristão, no sentido mais profundo da palavra: discípulo de Jesus, e quer que todos na Igreja se tornem cristãos, a começar pela hierarquia.

Assim, tem denunciado as doenças da Cúria, avisa os bispos e cardeais para que não sejam príncipes, anuncia para breve uma nova Constituição para a Cúria, o governo central da Igreja. Também neste contexto, convocou recentemente para o Vaticano os núncios do mundo inteiro. As nunciaturas, embaixadas da Santa Sé junto dos governos e das igrejas locais, são uma herança histórica discutível, mas podem ter um papel decisivamente positivo no mundo para estabelecer pontes a favor da justiça, do desenvolvimento, da paz.

Nesse encontro, com a presença de núncios e delegados apostólicos em 193 países e organizações internacionais, o Papa Francisco, dirigindo-se-lhes directamente, avisou: "Estou contente por encontrar-vos de novo para ver convosco e examinarmos com olhos de pastores a vida da Igreja e reflectirmos sobre a vossa delicada e importante missão." Acrescentou: "Pensei partilhar hoje convosco alguns preceitos simples e elementares; trata-se de uma espécie de decálogo, que, na realidade, é dirigido, através de vós, também aos vossos colaboradores e ainda a todos os bispos, sacerdotes e consagrados que encontrais em todas as partes do mundo."

3. O que aí fica é uma breve síntese desse decálogo.

3. 1. O núncio é um homem de Deus.

Ser um homem de Deus significa "seguir Deus em tudo e para tudo". O homem de Deus "não engana nem defrauda o seu próximo".

3. 2. O núncio é um homem de Igreja.

"Sendo um representante pontifício, o núncio, não se representa a si mesmo, mas a Igreja e em particular o sucessor de Pedro, o Papa." Por isso, "é feio ver um núncio que procura o luxo, as vestimentas e os objectos 'de marca' no meio de pessoas sem o necessário. É um contratestemunho. A maior honra para um homem da Igreja é ser 'servo de todos'". "Ser um homem da Igreja significa defender com coragem a Igreja perante as forças do mal que permanentemente procuram desacreditá-la, difamá-la, caluniá-la."

3. 3. O núncio é um homem de zelo apostólico.

Ele é "o anunciador da boa-nova e, sendo apóstolo do Evangelho, tem a tarefa de iluminar o mundo com a luz de Jesus ressuscitado, levando-o aos confins da Terra". "Quem se encontra com ele deveria sentir-se interpelado de alguma maneira." Não se pode esquecer de que "a indiferença é uma doença quase epidémica que se está a propagar em várias formas, não só entre os fiéis em geral mas também entre os membros dos institutos religiosos".

3. 4. O núncio é um homem de reconciliação.

Parte importante do trabalho de todo o núncio é "ser homem de mediação, de comunhão, de diálogo e de reconciliação. O núncio deve procurar ser imparcial e objectivo, para que todas as partes encontrem nele o árbitro correcto que procura sinceramente defender e proteger só a justiça e a paz, sem se deixar influenciar negativamente. Se um núncio se fechasse na sua nunciatura e evitasse encontrar-se com as pessoas, atraiçoaria a sua missão e, em vez de ser factor de comunhão e reconciliação, converter-se-ia em obstáculo e impedimento. Não deve esquecer nunca que representa o rosto da catolicidade e a universalidade da Igreja nas igrejas locais espalhadas por todo o mundo e perante os governos".

3. 5. O núncio é um homem do Papa.

Não se representa a si mesmo, mas o sucessor de Pedro, o Papa, e "age em seu nome perante a Igreja e os governos". Aqui, Francisco, certamente pensando também no ex-núncio Viganò, concluiu: "Portanto, é irreconciliável ser um representante pontifício e criticar o Papa por trás, ter blogues e unir-se, inclusivamente, a grupos que lhe são hostis, a ele, à Cúria e à Igreja de Roma."

3. 6. O núncio é um homem de iniciativa.

"É necessário ter e desenvolver a capacidade e a agilidade para promover e adoptar um comportamento adequado às necessidades do momento, sem cair nunca na rigidez mental, espiritual e humana ou na flexibilidade hipócrita e de camaleão. Não se trata de ser oportunista", mas de saber passar do ideal à sua implementação concreta, "tendo em conta o bem comum e a lealdade ao mandato".

3. 7. O núncio é um homem de obediência.

Sim, de obediência, mas sabendo que "a obediência é inseparável da liberdade, porque só em liberdade podemos obedecer realmente, e só obedecendo ao Evangelho podemos entrar na plenitude da liberdade".

3. 8. O núncio é um homem de oração.

"O Senhor é o bem que não defrauda, o único que não defrauda. E isto requer um desapego de si mesmo que só se pode conseguir com uma relação constante com Ele e a unificação da vida à volta de Jesus Cristo."

3. 9. O núncio é um homem de caridade activa.

É necessário sublinhar permanentemente que "a oração, o caminho do discipulado de Cristo e a conversão encontram na caridade actuante a prova da sua autenticidade evangélica. E desta forma de vida deriva a alegria e a serenidade mental, porque, nos outros, se toca com a mão a carne de Cristo".

A caridade também é gratuita. Por isso, Francisco, aqui, adverte para "o perigo permanente das regalias. A Bíblia define como iníquo o homem que 'aceita presentes por debaixo da mesa para desviar o curso da justiça'. A caridade activa deve levar-nos a ser prudentes na hora de aceitar os presentes que nos oferecem para ofuscar a nossa objectividade e, nalguns casos, desgraçadamente, para comprar a nossa liberdade. Que nenhum presente nos escravize! Recusai os presentes demasiado caros e frequentemente inúteis ou enviai-os para obras de caridade e nunca esqueçais que receber um presente caro nunca justifica o seu uso."

3. 10. O núncio é homem de humildade.

Francisco concluiu, apelando para a virtude da humildade: "Jesus manso e humilde de coração, faz o meu coração parecido com o teu."

in DN, 21 Julho 2019
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

A diáspora portuguesa
A diáspora acontece no encontro de duas perguntas: “de onde vens?” e “onde estás agora?”

Diáspora é, para todos os efeitos, uma palavra nova, pois só na transição do milénio começámos a vê-la aplicada para descrever o fenómeno secular da emigração portuguesa e cartografar a sua complexa morfologia histórica e humana. A verdade é que quando as palavras de sempre nos parecem insuficientes, e se torna perentória a necessidade de encontrar outra gramática, isso corresponde a um movimento epocal, que tanto pode ser de curta como de longa duração — é certo —, mas que precisamos de compreender, se quisermos ser fiéis àquilo que, a cada momento, somos. A história das palavras conta a nossa história, mais do que supomos. Naquela sua invulgar agudeza sobre a natureza humana, a escritora Agustina Bessa-Luís escreveu: “As palavras não significam nada se não forem recebidas como um eco da vontade de quem as ouve.” A palavra não é apenas, portanto, um repositório dos sentidos estabelecidos, mas é um pertinente espelho das mutações em curso, mutações que podem ser individuadas na vontade ou na necessidade atual da nossa auscultação. Temos talvez de começar por isso, por interrogar a nossa necessidade de palavras novas, e perguntar de onde provém essa necessidade e o que é que ela significa.

Se a categoria de “diáspora” se tende hoje a universalizar muito deve à publicação da obra do sociólogo Robin Cohen, intitulada “Global Diasporas” (1997), que procurou mostrar como a condição de diáspora (que começou por ser identificada com o destino de Israel e apenas com ele) é afinal compartilhada por muitas culturas. Basta para isso que uma determinada comunidade viva fora do seu território de origem, mas continue vinculado a ele, através da língua, da identidade, das tradições religiosas ou outras, e das práticas culturais.

A diáspora acontece no encontro de duas perguntas: “de onde vens?” e “onde estás agora?”. A condição que o emigrante testemunha é a deste habitar “entre”, entre cá e lá, nem completamente cá, nem completamente lá, numa elaboração interior que carrega consigo a impossibilidade de ser uma coisa só. A diáspora inaugura efetivos espaços de negociação entre as culturas, iluminando de outra forma aquilo que, de forma simplista, pareciam processos rápidos de deslocação ou de assimilação. E traz um contributo essencial: mostra como a identidade de um país não é simplesmente uma ontologia predeterminada, congelada no tempo e no espaço, mas na fidelidade à sua história, é também um processo de atualização e de reconfiguração.

A condição que o emigrante testemunha é a deste habitar “entre”, entre cá e lá, nem completamente cá nem completamente lá

Lembro-me, por exemplo, de ter visitado há uns anos o Clube madeirense de New Bedford e ter conversado com um homem da minha idade, um lusodescendente da terceira geração. Ele não falava português, nem havia estado alguma vez na Madeira, terra dos seus e dos meus avós. Mas tinha uma camisola com o emblema da Confraria do Santíssimo Sacramento; falou-me longamente das festividades tradicionais da Madeira que se celebram em New Bedford; brindamos com Vinho da Madeira. Foi um encontro para mim comovente e impressivo, falar com este homem, ou ver em seguida em Fall River, em tamanho real, uma réplica das Portas da Cidade de Ponta Delgada. Mas claramente esse encontro foi parcial. A ideia de diáspora obriga-nos a ir mais longe e a olhar para os emigrantes não apenas como embaixadores da cultura portuguesa, mas como coprotagonistas e cocriadores culturais, que nos revelam de Portugal não apenas aquilo que já sabemos. É certamente importante reconhecer a persistência de traços vernaculares de uma história, do imaginário e da tradição comuns. Contudo, torna-se necessário introduzir antenas capazes de captar o que é diferente ou já é diferente, o que é dialetal, transfronteiriço e inovador. Temos de escutar melhor a diáspora, se quisermos compreender e potenciar o país que somos.
in Semanário Expresso, 20.07.2019, p. 157
leitor.expresso.pt/semanario/semanario2438/html/revista-e/que-coisas-sao-as-nuvens/a-diaspora-portuguesa

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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XVI COMUM Ano C
“Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas,
quando uma só é necessária.”
Lc 10,41-42

Primeiro, Maria; depois, Marta

Demasiadas vezes se olhou para o relato de Jesus em casa de Marta e Maria como uma exaltação da vida contemplativa sobre a vida activa. Maria seria a figura de todos os consagrados, privilegiados na proximidade de Deus, e Marta, a representante de todos os que trabalham, e se preocupam com as coisas do dia a dia. Sairia assim desvalorizado o trabalho humano e exaltado um misticismo desencarnado!
Jesus é apresentado em numerosas situações (e em especial por S. Lucas) à mesa, nas casas mais improváveis. Com justos e fariseus, com publicanos e pecadores. Hoje, na casa de duas irmãs. O que ainda é mais extraordinário pelo papel secundário dado então às mulheres! No acolhimento e na intimidade da casa, a presença de Jesus é o centro de qualquer encontro. Por isso, a atarefada Marta não é censurada pelo trabalho mas pela agitação, a preocupação, o espírito de funcionária cheia de “etiqueta de boas maneiras” que secundariza o convidado. O seu agir é funcional e ao serviço da tradição, preocupada, certamente, em oferecer coisas ao convidado em vez de companhia. Maria, ao contrário, sentada aos pés de Jesus, como verdadeira discípula, escuta a sua palavra. Até apetece chamá-la “sonsa”, mas será que havia assim tanto a fazer para que Marta não tivesse a mesma atitude? Tão inquieta com o que queria oferecer a Jesus, não acolheu o que Ele lhes queria oferecer. A “boa parte” (que é também “bela”) que Maria escolheu não foi a preguiça ou o desinteresse, mas o alimento da palavra que Jesus vinha trazer.
Há tempo para tudo. E o importante é saber escolher. Quando Jesus vem à casa da nossa vida, a casa torna-se d’Ele, e nós somos os hóspedes, sentados como Maria a seus pés. Do acolhimento de Jesus à acção: é este o movimento do verdadeiro serviço. Pois a actividade febril, o activismo e o excesso de trabalho, que não se alimentam da Palavra que é Cristo, correm o risco de se tornarem preocupação, problema, conflito e confusão, protagonismo excessivo de nós mesmos. Escutar a Palavra é condição para estabelecer prioridades, organizar e delegar trabalhos, reunir competências, e actuar em comunhão. Não em nome da eficácia ou da tradição, ma sem nome d’Aquele que dá sentido a todas as coisas. É de todos os tempos o que dizia um velho rabino acerca de um colega: “Anda tão ocupado com as coisas de Deus, que até se esquece de que Ele existe!”
Habitam em nós Marta e Maria. São o serviço e a escuta de Jesus. Acolher o céu para melhor cuidar da terra, é deixarmo-nos assim guiar pela presença de Jesus, que conta com as nossas mãos para fazer novas todas as coisas. Não é “uma ou outra”, nem “uma contra a outra”, mas primeiro, Maria, e depois, Marta! E não será então que todo o trabalho se torna criação e colaboração feliz com Deus?
in Voz da Verdade, 21.07.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8330&cont_=ver2






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