P / INFO: Crónicas
Frei Bento: Em mudança acelerada
Pe. Anselmo: Sínodo
para a Amazónia: um mini-Concílio Vaticano II
Pe. Tolentino: John Henry Newman
Pe. Vitor: No lugar do outro
EM
MUDANÇA ACELERADA
Frei Bento Domingues, O.P.
Se a sociedade vive em mudança
acelerada, a hierarquia eclesiástica continua em velocidade reduzida ou, como
se diz, a “passos de caracol”.
1. Poderá a hierarquia da Igreja católica
mudar não apenas de orientação, mas sobretudo a velha prática de adiar soluções
urgentes para um futuro indefinido?
A pergunta é antiga e percorre toda a
história de reformas dentro da Igreja. Eu próprio conheço esse lamento desde a
minha juventude. Quando agora se diz que o Papa Francisco está a alterar
perigosamente o rumo da Igreja, provocando muitas resistências e ameaças de
cisma, há sempre quem acrescente, com algum cepticismo: são maiores as mudanças
no discurso do que na realidade dos factos.
Mais uma vez, está a perder-se um momento de graça divina e de inadiável
necessidade eclesial.
Isto sabe a conversa de velhos: velhos
conservadores e velhos progressistas. Não esqueço, no entanto, que foi de um
velho, minado por doença incurável, que saíram as palavras e os gestos mais
audaciosos no século XX. Foram os do papa João XXIII. Os seus sucessores não
perceberam que a autêntica virtude da prudência abre luz verde à audácia das
decisões ponderadas, superando a linguagem do oportuno e inoportuno. Para trás
não há paz e não é do império da mesmice que se podem esperar soluções
inéditas.
Se olharmos para a fotografia do Sínodo
dos bispos dedicado ao tema
os jovens, a fé e o discernimento
vocacional, 2018, temos a evidência de que não foi um sínodo de jovens.
Foram bispos com idade de pais e avós a tentar entender os jovens sem, talvez,
se darem conta que já não se trata dos jovens que eles tinham conhecido quando
trabalharam – os que trabalharam – com essas idades. A cultura, que só pretende
garantir o futuro repetindo o passado, não entende o espírito cristão: Eis que eu faço novas todas as coisas[1].
Importa perceber que estamos
noutro mundo que é necessário conhecer e assumir, se pretendermos animá-lo de
uma novidade mais profunda que supere esta Era
da mera produção, do consumo e do divertimento.
Tomo, como parábola desta
situação, um fragmento do texto de António Guerreiro, A geração dos filhos sem pais[2].
Também os Bispos se reuniram
numa época em que «entre a geração dos alunos e a dos professores existe um
fosso, um hiato enorme que não é possível disfarçar e tem terríveis
consequências. Esse hiato já seria grande e nefasto em quaisquer
circunstâncias; ele é colossal sob as novas condições de transmissão do saber,
da experiência, dos costumes, dos códigos de comportamento, em que se acelerou
de maneira vertiginosa o tempo da inflexão e interrupção de uma cadeia
hereditária.
O “antigamente” já não é o
tempo dos avós, é o tempo da nossa experiência: quem entrar hoje numa escola
depois de um interregno de dez anos (dantes, considerava-se que as gerações se
sucediam de 30 em 30 anos) entra num mundo diferente daquele que conheceu. Ou
melhor, só não entra num mundo completamente diferente porque os professores
são os mesmos, e quase todos a pensar na reforma. Quem não sentiu já,
regressando à escola ou à universidade por onde passou, a estranheza
inquietante que isso provoca?».
2. Na cerimónia em que o
Bispo José Tolentino Mendonça foi incluído no colégio cardinalício, sendo um
dos membros mais novos, o espectáculo que as televisões ofereceram era o de
termos entrado num mundo em que a respeitabilíssima terceira idade é
prevalecente no governo da Igreja.
No dia seguinte, foi a
abertura do Sínodo sobre a Amazónia. O espectáculo não mudou. A homilia do Papa
Francisco é, no entanto, de antologia: «Se tudo continua igual, se os nossos dias são
pautados pelo “sempre se fez assim”, então o dom desaparece, sufocado pelas
cinzas dos medos e pela preocupação de defender o status quo». Teve o cuidado de lembrar que
Bento XVI já tinha escrito: «a Igreja não pode, de modo algum, limitar-se a uma
pastoral de “manutenção” para aqueles que já conhecem o Evangelho de Cristo. O
ardor missionário é um sinal claro da maturidade de uma comunidade eclesial».
Francisco sublinhou:
«Porque a Igreja está sempre em caminho, sempre em saída; nunca fechada em si
mesma. Jesus veio trazer à terra, não a brisa da tarde, mas o fogo».
Não se trata do fogo
devastador da Amazónia, mas da virtude da prudência. Esta não pode ser
confundida com atitudes de timidez ou de medo que paralisam, mas de audácia. É
a virtude das decisões corajosas que se impõem a quem tem responsabilidades de
governar e não de paralisar. O melhor será ler o texto na íntegra[3].
A corajosa homilia do
Papa, na abertura do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia, situa-se, no entanto,
num mundo de pais e avós.
Se a sociedade vive em mudança
acelerada, a hierarquia eclesiástica continua em velocidade reduzida ou, como
se diz, a “passos de caracol”, sobretudo quando se trata de abordar questões
que exigem soluções urgentes.
Se não nos resignarmos a uma Europa
auto centrada, preocupada apenas com a desaceleração económica mundial que a
vai afectar e donde desertam as interrogações mais profundas, acerca do sentido
da vida pessoal e colectiva, colaboramos num mundo sem alma, sem compaixão,
miseravelmente egoísta.
3. Não me parece que, para já, a religião esteja em
condições de oferecer a energia necessária para levantar essas questões de
fundo, que só podem nascer do reconhecimento da dimensão transcendente da vida
humana.
A situação religiosa dos jovens, na Europa, está
descrita num estudo recente da Universidade inglesa St. Mary, de Londres (2014-2016). É uma situação impressionante em países
de tradição cristã. Em 12 países deste continente, a maioria dos jovens, entre
os 16 e 29 anos, admitem que não são crentes e que nunca ou quase nunca vão à
Igreja ou rezam.
A República Checa é o
país menos religioso da Europa: 91% dos jovens confessa que não tem qualquer
filiação religiosa. A seguir vem a Estónia, a Suécia, os Países Baixos onde a
percentagem dos jovens sem religião está entre os 70% a 80%. Também noutros
países, França, Espanha, se pode observar o declínio da crença religiosa.
Nesta crónica não
podemos enumerar a situação de todos os países. O responsável deste estudo,
Stephen Bullivant, perante este e outros dados, declarou que na Europa a
religião está a morrer.
Como cristão não penso que seja o fim.
É um desafio para a chamada Nova Evangelização. Sei que a situação actual dos
ministérios ordenados da Igreja Católica não está em condições de dinamizar uma
resposta a esse desafio. A ordenação de homens casados e de mulheres é
indispensável, se não repetirem os caminhos que não levam a lado nenhum, mas o
fim de um mundo pode e deve ser para as pessoas de fé e de esperança activa, o
nascimento de um outro.
Ao terminar esta crónica recebi a
notícia da morte da Manuela Silva, uma das mais empenhadas militantes católicas
das causas sociais e da renovação da Igreja em Portugal.
in Público, 13. 10.2019
https://www.publico.pt/2019/10/13/sociedade/opiniao/mudanca-acelerada-1889585
[1]
Apocalipse 21, 5
[2]
Público, Ípsilon, 04.10.2019
[3]
Homilias no site do Vaticano
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Sínodo
para a Amazónia: um mini-Concílio Vaticano II
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Começou em Roma no passado dia 6 e estará activo até
ao próximo dia 27 o Sínodo para a Amazónia. Estão presentes 185 Padres
sinodais, mas participam também membros da Cúria, religiosos e religiosas, auditores
e auditoras, peritos, membros de outras confissões religiosas, convidados..., o
que perfaz, em números E se dirija directamente só a uma zona determinada do
planeta, ainda que extensíssima e tocando nove países (Brasil, Bolívia, Peru,
Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa), a sua
temática -"Amazónia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia
integral" - é universal e vai marcar este pontificado com um antes do Sínodo
e um depois. Penso que estaremos num processo de recuperação da dinâmica do
Concílio Vaticano II, um dos acontecimentos mais importantes, se não o mais
importante, do século XX, para a Igreja e para o mundo. O Papa Francisco
acentua que a sua missão fundamental é criar "processos" no tempo,
irreversíveis, sem possibilidade de voltar atrás, a caminho de objectivos
essenciais, que já vêm do Vaticano II.
2. Destaco quatro desses pontos fundamentais, a
debater no Sínodo e que influenciarão a Igreja universal.
2. 1. Logo na terminologia. O Papa quer uma Igreja
sinodal, isto é, na qual, como diz o étimo da palavra sínodo, se faça o caminho
juntos. Repete constantemente: "a Igreja somos nós todos". Se é
assim, o que é de todos deve ser partilhado por todos. Na véspera da abertura
do Sínodo, aquando da imposição do barrete cardinalício aos novos cardeais,
lembrou-lhes que não são príncipes, e pediu-lhes "lealdade" e
"compaixão", também no sentido etimológico da palavra: partilhar as
alegrias, as tristezas e as angústias de todos, a começar pelos
"descartados", com os quais devem ser samaritanos, e que evitem ser
"funcionários". Um desses novos cardeais, Cristóbal López, arcebispo
de Rabat, sabe que assim deve ser, ao afirmar: "Os cristãos são todos
iguais, o ser bispo ou cardeal não nos torna superiores a ninguém". Na
Igreja, não pode haver duas classes: os clérigos e os leigos, pois toda a
Igreja é uma Igreja de iguais, ministerial.
2. 2. Francisco propugna por uma "ecologia
integral". Disse-o na sua encíclica Laudato Si, que fica para a História.
É a mesma lógica economicista que está na base da depredação da mãe Natureza, a
nossa casa comum, e da injustiça social, do escândalo da pobreza e da exclusão
de multidões de homens e mulheres. Quando é que se entenderá que o grito dos
descartados e o grito da mãe Terra devastada são o mesmo grito e que os pecados
ecológicos são pecados contra Deus e contra a Humanidade?
Quando se olha para a situação da região panamazónica,
percebe-se a urgência de mudar de rumo. Aliás, um conjunto de cientistas de
vários países, que inclui o Prémio Nobel Carlos Nobre, acaba de entregar ao
Sínodo e dar a conhecer um documento, "Um quadro científico para salvar a
Amazónia" (assinam 44 especialistas), no qual se lê que "hoje a
Amazónia e os seus habitantes estão ameaçados de extinção, representando a sua
agonia uma ameaça dramática para o bem-estar humano, da nossa geração e das
gerações futuras." Constatando que a Amazónia "possui uma imensa
riqueza natural, cultural e singular diversidade", sendo "o maior
repositório de biodiversidade do mundo", apelam "aos governos, às
empresas, à sociedade civil e aos povos de boa-fé de todas as partes do mundo
para se unirem num esforço comum pelo bem da Humanidade e da Terra hoje e no
futuro."
Aí está um desses problemas que exigem o esforço de
toda a comunidade internacional e uma nova ordem mundial, no quadro de uma
Governança global, já que todos são afectados, sem excepção.
2. 3. Uma Igreja com rosto amazónico.
Muitas vezes me interrogo sobre qual seria a nossa
compreensão de Jesus e do Evangelho, se, logo no princípio, a evangelização, em
vez de partir de Jerusalém para Atenas e Roma, isto é, para a cultura
helenista, tivesse derivado para a China ou para a Índia, por exemplo. A
linguagem e a conceptualidade que utilizamos seriam diferentes; por exemplo, o
Credo tem muitos conceitos gregos, de tal modo que quando se diz sobre Jesus
Cristo: "gerado, não criado, consubstancial ao Pai", quem entende
hoje esta linguagem?
Que é que isto quer dizer? O Evangelho é o mesmo, mas,
uma vez que a nossa identidade é dada numa determinada cultura, sempre aberta,
a mensagem de Jesus e a fé devem inculturar-se, atender às diferentes culturas,
para que possam ser compreendidas e vividas. Juan Carlos Scannone, um dos teólogos
de referência e antigo professor do Papa Francisco, acaba de afirmar, contexto
do Sínodo: "A fé faz-se cultura e, portanto, não é a mesma coisa ser
cristão na Amazónia ou na Espanha, Argentina, Índia ou África. Quando se
adoptam formas culturais, há ao mesmo tempo um movimento de encarnação, de
purificação e de transformação. Penso que esse momento de inculturação é muito
importante, sobretudo nesses povos originários da Amazónia, que são muito
diferentes. E, por outro lado, também a sinodalidade, entendida como uma grande
orquestra na qual cada um toca um instrumento diferente mas a partir da
unidade. A Igreja manifesta-se como uma comunhão e um caminhar juntos." As
Igreja locais são uma porção da Igreja universal e, com a sua identidade cultural,
histórica, litúrgico-celebrativa, canónica, enriquecem-na. Há um só Povo de
Deus, numa pluralidade de rostos.
Dou exemplos. Pensando na ecologia, não terão esses
povos uma lição a dar-nos na sua relação contemplativa e familiar com a
Natureza, que não pode ser reduzida a um reservatório de energias e possíveis
negócios a explorar? Quanto à celebração litúrgica, concretizando quanto à
Eucaristia, pergunto: "Se o pão de trigo e o vinho de uva não são
elementos essenciais dessas culturas, como o são na cultura mediterrânica, a
celebração da Eucaristia não deverá também adaptar-se?"
Já na abertura do Sínodo, mas isto é menos importante
e quase folclórico, Francisco queixou-se: "Deu-me muita pena ouvir aqui
dentro um comentário a dar piadas de mau gosto sobre esse senhor piedoso que na
Missa levou, com penas na cabeça, as oferendas ao altar. Digam-me: qual é a
diferença entre levar penas na cabeça e o tricórnio que usam alguns
funcionários dos nossos Dicastérios?", e arrancou um aplauso dos presentes
na sala. Aqui, entre parêntesis, permito-me um comentário: penso sinceramente
que, nos tempos que correm, já é altura de acabar com tanta pompa aquando da
criação de cardeais, e, sinceramente, olhando para o barrete e vestimentas
cardinalícias, ouvi muita gente, sobretudo jovens, a reclamar algum decoro,
para se não cair no ridículo. Já não se trata só de uma questão de
simplicidade...
2. 4. Ordenação de homens casados e os ministérios das
mulheres. No Instrumentum Laboris (instrumento de trabalho) para o Sínodo, contempla-se
a possibilidade de ordenar como padres homens casados, preferencialmente
indígenas, respeitados e indicados pela comunidade, e também identificar o tipo
de ministério oficial que pode ser conferido à mulher. Apesar da indignação dos
rigoristas e ultraconservadores, o tema está a ser debatido no Sínodo e estou
convencido de que essa possibilidade se vai tornar realidade, primeiro para a
Amazónia e, lentamente, estender-se-á a toda a Igreja.
Afinal, não foi isso que aconteceu na Igreja durante o
primeiro milénio? A lei do celibato obrigatório só começou a impor-se no século
XI. Mesmo depois do Concílio de Trento, no século XVI, a lei não se estendeu às
Igrejas católicas orientais e, actualmente, os pastores protestantes que se
convertem ao catolicismo continuam com as suas famílias. Há uma pergunta
essencial: porventura não é a Eucaristia o centro da Igreja? Sendo assim, o que
deve estar em primeiro lugar: a manutenção da lei do celibato ou a
possibilidade da celebração eucarística? No Novo Testamento, por exemplo, na
Primeira Carta a Timóteo, lê-se: "É necessário que o bispo seja
irrepreensível, marido de uma só mulher, ponderado, de bons costumes,
hospitaleiro, capaz de ensinar, que não seja dado ao vinho, que governe bem a
própria casa, mantendo os filhos submissos, com toda a dignidade. Pois, se
alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará ele da Igreja de
Deus?"
Na presente situação, opor-se a esta possibilidade é
um suicídio.
E quanto às mulheres? Estão 35 a participar
activamente no Sínodo e reclamam poder votar o documento final. Poderá a Igreja
continuar a discriminá-las? Não é verdade que Jesus tinha discípulos e
discípulas? Não foi a Maria Madalena que Jesus se manifestou após a sua morte
para que fosse anunciar aos outros que está vivo, que Ele é o Vivente, a ponto
de São Tomás de Aquino, entre outros, lhe chamar a "Apóstola dos
Apóstolos"? No princípio, não houve mulheres cristãs que presidiram à
Eucaristia? Que razões se opõem à sua ordenação? Só para dar um exemplo, cito o
maior teólogo católico do século XX, Karl Rahner, que tive o privilégio de ter
tido como professor: "Sou católico romano e, se a Igreja me disser que não
ordena mulheres, aceito-o por fidelidade. Mas, se me der cinco razões e todas
elas são falsas face à exegese e à teologia, tenho que protestar. Penso que o
Magistério que apela para essas razões falsas não acredita no que diz ou não
sabe ou mente ou estas coisas todas juntas. Além disso, a Igreja é infalível em
questões de fé e moral, e o tema da ordenação das mulheres não é de fé, nem de
costumes, mas de administração". O Cardeal José Policarpo também teve
problemas porque afirmou o mesmo: que teologicamente nada se opõe à ordenação
de mulheres. Aliás, digo eu, há uma razão de fundo: é uma questão de direitos humanos
e Deus não pode ir contra os direitos humanos.
in DN,
13.10.2019
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QUE COISA SÃO
AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO
MENDONÇA
JOHN
HENRY NEWMAN
CRIADO
CARDEAL POR VONTADE DO PAPA LEÃO XIII, O MOTE DO SEU ESCUDO CARDINALÍCIO ERA
“COR AD COR LOQUITUR”, “O CORAÇÃO FALA AO CORAÇÃO”
Este fim de semana muito se vai falar de John Henry
Newman (1801-1890). O Papa Francisco canoniza no domingo um dos intelectuais
europeus de referência do século XIX e a quem a nossa contemporaneidade deve
porventura mais do que ainda reconhece. A sua voz contradistingue-se, com
claridade, num período histórico atribulado, mas particularmente rico no plano
das ideias e do seu debate: basta dizer que partilhou o século de Comte, de
Marx, de John Stuart Mill, de Herbert Spencer, de Nietzsche e, em parte, de
Freud. Newman mergulha apaixonadamente na construção cultural do seu tempo,
mostrando que o contributo dos crentes se joga também aí, e de forma decisiva.
Fá-lo, por exemplo, ajudando a pensar, a partir de dentro, o que é uma
universidade, não como fragmentado lugar de saberes especializados mas como
laboratório de consciência crítica que ensina a pensar globalmente, com rigor e
humildade. Uma universidade, na visão de Newman, não se pode contentar em
preparar economistas, engenheiros ou médicos. A sua finalidade prática é, antes
de tudo, formar pessoas capazes de elevar o tom de toda a sociedade.
Mas será no campo da hermenêutica da experiência
religiosa e na defesa da legitimidade racional do ato de fé que o mestre
oxfordiano mais se empenhará. Como ele dirá, “o ato ou processo de fé é
certamente um exercício da razão”. E, investindo nesse sentido, constrói um
legado impressionante de reflexão sobre o humano e sobre a natureza e
modalidades daquilo a que chamamos conhecimento. Quando confrontamos o seu
discurso com o do empirismo racionalista que então triunfava, percebemos a sua
grandeza, pois cartografa a existência de forma bem mais atenta, original e
polifónica. Newman recusava-se a aceitar a redução do homem a máquina de
raciocínios, como se a única gramática possível fosse a lógica. Complementa,
por isso, o exercício raciocinante com o exercício de relação continuamente
operado pelo homem, “um animal que vê, sente, contempla e atua”. Quando saiu na
coleção ‘Teofanias’, da Assírio, a belíssima tradução portuguesa que Artur
Morão fez do “Ensaio a Favor de Uma Gramática do Assentimento”, lembro-me do
interesse que gerou não só entre teólogos mas também em filósofos, em teóricos
da literatura, em arquitetos, em juristas. O que o oratoriano, nascido em
Londres, demonstra é que um grande livro de teologia é sempre um texto de
cultura, capaz de ressoar para lá do seu tempo.
Um grande livro
de teologia é sempre um texto de cultura, capaz de ressoar para lá do seu tempo
Newman é justamente considerado um dos precursores do
Concílio Vaticano II. A sua marca é bem nítida pelo menos em três
temáticas-chave. A primeira delas é a da valorização do laicado. Praticamente
transcreve-se o pensamento de Newman quando se refere o papel dos fiéis leigos
em matéria de fé (Lumen Gentium 12). Outra é a do primado da consciência. Para
o autor do célebre manifesto “Carta ao Duque de Norfolk”, a consciência é a
capacidade que o homem tem de reconhecer a verdade e ao mesmo tempo o dever de
encaminhar-se para ela. É isso que o Concílio Vaticano II assumirá na Gaudium
et Spes, recordando que “a consciência é o centro mais secreto e o santuário do
homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade
do seu ser” (n. 16). Uma última mas não menos importante inspiração de Newman é
a do ecumenismo. Um testemunho disso é o facto de um poema seu se ter tornado
um dos hinos espirituais mais repetidos nas diversas Igrejas cristãs: “Sê tu a
conduzir-me, luz gentil/ Sê tu a guiar-me na escuridão que me cerca;/ a noite
avança e a minha casa é distante/ Sê tu a conduzir-me, luz gentil.”
Newman foi criado cardeal por expressa vontade do Papa
Leão XIII, em 1879, e escolheu como mote do seu escudo cardinalício as palavras
“Cor ad Cor loquitur”, “o coração fala ao coração”.
in Semanário Expresso, 11.10.2019 p.158
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2450/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/john-henry-newman-1
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XXVIII COMUM Ano C
“Não se encontrou quem voltasse
para dar glória a Deus senão este estrangeiro?”
Lc 17, 18
No lugar do outro
Ou então, “na pele do outro”, que ficaria melhor ao
falar da cura dos leprosos. Mas vai assim devido às palavras de Arthur Fleck, o
comediante falhado do filme de Todd Phillips, magistralmente interpretado por
Joaquin Phoenix, que se transforma no vilão que dá nome ao filme: Joker. Diz
ele a dado momento numa entrevista televisiva: “o maior problema é que ninguém
se põe no lugar do outro. Dizem que sim, mas não o fazem!” No meio da violência
e tensão psicológica de uma pessoa e de uma sociedade perturbada, fica a ecoar
este grito.
É com o grito suplicante de dez leprosos a implorar a
compaixão de Jesus que começa o evangelho deste domingo. À distância, fora da
povoação, sem se aproximarem, como determinava a lei, os leprosos, dez, número
que indica totalidade, pedem ao Mestre a sua graça. Eles estão na periferia da
vida, da sociedade, da salvação. Podem equiparar-se a “mortos em vida”, como
outros em Israel: os pobres, os cegos, os que não tinham filhos. Mas eles ainda
mais: não podiam tocar nem ser tocados por ninguém. Nenhuma rejeição dos homens
e de Deus era maior. Viviam apenas uma solidariedade: aquela capaz de unir
desgraçados e sofredores, ricos e pobres, judeus e samaritanos. A doença que
nos despoja de títulos e separações, de julgamentos e exclusões, e reconduz-nos
à comum e frágil humanidade.
É curioso como estes desgraçados não procuram
salvar-se individualmente. Não estão centrados cada um em si, nem nos seus
méritos. Entraram na pele uns dos outros e isso derrubou muros e egoísmos. É em
grupo que Jesus os manda ir ter com os sacerdotes, os únicos que podiam atestar
uma cura. E é no caminho que se sentem curados. Sempre o caminho a marcar a
vida dos que acreditam em Cristo: só há milagres “em movimento” pois o amor de
Deus não se instala. Sem saber quando, também nós, leprosos de mil outras
lepras, vivemos a esperança da cura que nos faz mais irmãos e mais filhos.
Um deles regressa e lança-se aos pés de Jesus. Mais do
que um gesto de agradecimento, Lucas diz-nos que vinha a gritar “glorificando a
Deus”. É bom agradecer, abre-nos ao dom, mas pode ficar só aí. Cai-se na
tentação de “pagar o favor”. A outro e até a Deus. É de outra ordem a atitude
do samaritano, herói inesperado que transforma a vida ao encontrar a glória de
Deus. Dizia S. Ireneu: “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a
contemplação de Deus.” Uma graça que se paga perde o seu efeito multiplicador.
Só a vida que se transforma em graça, que assume colocar-se “no lugar do outro”
e responder à sua maior necessidade, que faz reviver quem estava morto é que
salva. Nove ficaram curados, mas só um escutou: “A tua fé te salvou”!
Jesus entra na humanidade e coloca-se no nosso lugar,
“entra na nossa pele”. E quando somos capazes de fazer o mesmo, os caminhos
humanos tornam-se lugares de milagres. Tão simples e tão fundamentais! Não
começa aí a missão que este mês de outubro tanto nos propõe?
in Voz da Verdade, 13.10.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8442&cont_=ver2
Agora
que escreveu na sua agenda, já avisou tod@s @s seus/suas Amig@s?
Sábado
19 de Outubro às 15.30
Conferência
do Prof. Luca Badini do Wijngaards Institute for Catholic Reform
às
15.30 no Convento de S. Domingos
Contamos
consigo!
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