P / INFO: Crónicas, Igreja
Católica à escuta da Amazónia, “terra que sangra” &, abaixo, Sights and
Sounds of Rome: Encounters with three new Princes of the Church & um
excelente artigo de António Marujo, Tolentino Mendonça cardeal: “Ser cristão é
um risco, ser humano é um grande risco”
Teologia e Literatura:
Frei Bento
O B. I. dos cristãos: Pe.
Anselmo
Escutar o futuro: Pe. Tolentino
A fé “canivete suíço”?: Pe.
Vitor
TEOLOGIA E LITERATURA
Frei Bento Domingues, O.P.
Em Portugal e no Mundo, há muitas referências à dimensão
religiosa e cristã na literatura dos últimos séculos.
1. A fonte de toda a teologia cristã é o
chamado Novo Testamento (NT) que, por sua vez, é uma inovadora interpretação da
Bíblia Hebraica ou, como é usual dizer-se, do Antigo Testamento (AT). Hoje,
encontramos todos os livros da Bíblia de épocas, autores, géneros literários e
línguas diferentes, encadernados num só volume. Podem dar a ilusão de
constituírem apenas um livro, quando a própria palavra Bíblia significa livros.
É preferível, por isso, falar de teologias e não de teologia do AT ou do NT. A
expressão muito usada, como diz a Bíblia,
não pode indicar nada de muito preciso.
Nessa biblioteca, coexistem, na teia
contraditória das experiências humanas narradas, apresentações de Deus cheias
de contrastes irredutíveis. O próprio Jesus diz, aos seus interlocutores
rabínicos: disseram-vos, mas eu digo-vos.
Sustentava muitas vezes o contrário do que vinha nas Sagradas Escrituras.
Para quem tem uma noção de livros divinamente
inspirados, como ditados de Deus,
pode ser levado a pensar que Deus não se levanta todos os dias com a mesma
disposição, pois são-lhe atribuídas afirmações que não batem certo umas com as
outras. A inspiração divina acontece através de múltiplas e complexas mediações
humanas. Quando se afirma que a Bíblia é palavra
de Deus importa não esquecer que se trata de uma metáfora para dizer que
aquela literatura, sem a referência ao Deus
sem nome, seria impossível.
Pelo caminho da sua escrita poética,
narrativa, romanesca, sapiencial, a Bíblia revela a profundidade e a
complexidade que nenhum dilúvio poderá vencer. Como nota o Prof. José Augusto
Ramos, “poderíamos por isso, dizer, sem qualquer intenção de sectarismo, que,
em termos históricos e culturais, a Bíblia hebraica completa é a Bíblia cristã.
Uma antologia literária que começa no Génesis e termina muito bem no Apocalipse[1].
Ao dizer que o terminal das virtudes teologais – fé, esperança e
caridade - é Deus, mistério inabarcável, vemos que as mediações que O referem e
procuram tactear são múltiplas. Não se pode crer sem querer e sem as
interpretar.
Sendo as fontes da teologia cristã uma
antologia literária, surge a pergunta: que aconteceu para que a prática da
teologia eclesiástica se tenha, em geral, divorciado da literatura viva dos
poetas, dos romancistas e dos dramaturgos?
Teologia e literatura deixaram de se
reconhecer mutuamente, são dois universos que não têm uma fronteira comum. Quem
o disse foi um teólogo, P. Duployé, ao defender a célebre tese, La religion de Péguy, na Faculdade de
Letras da Universidade de Estrasburgo[2].
Depois desse acontecimento, foram bastantes os que se apaixonaram,
simultaneamente, pela teologia e pela literatura[3].
J.-P. Jossua O.P. tem trabalhado, há muitos anos, na prática e na construção da
théologie littéraire, aquela que
descobre afinidades entre teologia e literatura. Não são mundos justapostos.
A literatura, no sentido moderno da
palavra, não implica o apagamento de uma tensão com o absoluto. O romance
testemunha, por vezes, questões nascidas de uma dúvida radical acerca da fé
religiosa, mas também existem muitos romances que manifestam a presença de
preocupações e experiências de ordem religiosa no coração da vida quotidiana,
mesmo que o verdadeiro romance encerre sempre um carácter subversivo pela sua
ironia e pluralismo. A teologia podia tirar daí o seu bem, no caso de se abrir
à imaginação, à metáfora, à narração, respeitando a autonomia da literatura e
resistindo à tentação de a instrumentalizar.
2. Manuel António Ribeiro escreveu um
texto sobre as Reconfigurações de Deus na
literatura moderna[4]
que interessa a esta crónica. Afirma que é um dado facilmente verificável que
se esvaneceram, desde há décadas, os escritores com a estatura dos franceses
Mauriac, Péguy, Claudel, Bernanos, nomes que se tornaram referências de vulto,
ao trazerem para a literatura uma tematização aderente ao mistério da
existência humana, visto à luz do discurso teológico do catolicismo. Fora do
espaço gaulês, Graham Greene e T. S. Eliot são outros exemplos representativos
de uma tendência de sinal semelhante. Todavia, há muito que deixaram de ter
grande acolhimento editorial os estudos críticos que enfatizam mais a vertente
“cristã” ou “religiosa” do que a dimensão literária das obras.
Este articulista pensa, que se pode
afirmar que depois da morte de François Mauriac (1970), a literatura entendida
como veículo da “causa cristã” passou a ter uma presença pouco relevante na crítica
literária. Isto não quer dizer que não persistam escritores em cujas criações
transparecem imaginários e pressupostos de conteúdo cristão. Nenhum deles,
porém, é identificado como escritor católico, nem sequer como escritor cristão.
Eles próprios preferiam que se falasse de católicos que são escritores. A razão
por esta preferência é muito simples. Não se deseja fazer da literatura uma
ferramenta ao serviço de uma causa ideológica, seja ela qual for.
Este estudo não esquece que ao lado e
para além dessas cautelas e polémicas nunca deixaram de existir reflexões sobre
o fenómeno literário, assentes na preocupação de discernir a componente
religiosa como interrogação ou iluminação. Lembra, a este
propósito, a grande obra de Charles Moeller, Littérature du XXe siècle et Christianisme (5 vol., 1953-1975).
3. Já existem muitas referências à
dimensão religiosa e cristã na literatura portuguesa dos últimos séculos. Para
superar o seu carácter fragmentário seria preciso um plano de investigação e de
publicação que, para ser executado com êxito, exige uma ou várias equipes de
estudiosos. A seara é vasta e os operários deste empreendimento são poucos e
dispersos. Desde, por exemplo, Antero de Quental, Fernando Pessoa, José Régio,
até Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luis, Herberto Helder, Lídia Jorge,
António Lobo Antunes, etc. existe um mundo literário que tem a ver com o
fenómeno religioso e que não deve nem pode ser esquecido pelo mundo dos
teólogos.
Seria injusto não lembrar que contamos
com alguns casos que uniram ou unem prática literária e prática teológica.
Alfredo Teixeira estudou o caso emblemático de Frei José Augusto Mourão[5].
José Tolentino Mendonça é o autor português de escrita de teologia literária
mais conhecida e reconhecida. Esperamos que o cardinalato não o retire da sua
vocação teológica e literária
in Público, 07.10.2019
https://www.publico.pt/2019/10/06/sociedade/opiniao/teologia-literatura-1888890
[1] Communio XXXI (2014/4), p.400
[2] Cf. M. D. Chenu, La littérature comme « lieu » de la théologie, RSCFT,
Tome LIII, 1969, pp. 70-80.
[3] Cf. Revista Concilium, nº115 (1976/5) dedicado às
relações entre teologia e literatura.
[4] Communio XXXI (2014/4), p.409-414
[5] A errante sonoridade de Deus. Revisitando José Augusto Murão, Communio
XXXI (2014/4) p 415-428
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O B. I. dos cristãos
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
1. No início do século XX, A. Loisy fez uma afirmação
que é decisiva para a compreensão dos problemas dramáticos por que passa a
Igreja: “Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, mas o que veio foi a Igreja”.
Realmente, não se pode dizer que Jesus fundou a Igreja. Jesus é o fundamento da
Igreja, mas não o seu fundador.
Jesus anunciou o Reino de Deus. E o que é o Reino de
Deus? O próprio Jesus, na sua pessoa, na sua palavra, na sua vida, na sua morte
e ressurreição. Ele é o Vivente em Deus para sempre. O que é que anunciou? Que
Deus é Abbá, querido Pai, e também podemos e devemos dizer que é Mãe, Mãe
querida. Como Pai e Mãe, Deus quer o bem, a alegria, a felicidade, a realização
plena de todos os seus filhos e filhas e nem na morte os abandona: na morte,
não se cai no nada, entra-se na plenitude da Vida. Foi essa fé que moveu Jesus,
realizando, por palavras e obras, o Reino de Deus, o Reino da fraternidade, da
paz, da solidariedade e da verdadeira liberdade, para todos, a começar pelos
mais frágeis, abandonados, pobres, aflitos, marginalizados, desprezados,
desvalorizados... Para Deus, todos valem infinitamente.
Muitos acreditaram em Jesus, cada vez mais homens e mulheres,
através dos primeiros discípulos, foram
acreditando nEle e, através dEle, em Deus, no Deus de Jesus. E foram surgindo
comunidades cristãs fraternas no mundo inteiro, realizando o Reino de Deus.
Nelas, o amor era a lei suprema: “vede como se amam”, diziam os pagãos.
Evidentemente, com o tempo, foi-se impondo a
necessidade de uma organização mínima para essas comunidades, a que chamaram
Igrejas, e, depois, para a Igreja toda,
espalhada pelo mundo. Aí, foi-se instalando o perigo maior: a Igreja como
organização foi sucumbindo, concretamente a partir de Constantino, à tentação
de tornar-se uma instituição de poder cada vez mais poderosa, dominadora,
centralizada, imperial. Contrariando a vontade de Jesus que tinha dito: “sois
todos irmãos”, “quem quiser ser o maior torne-se servidor de todos”, seguindo o
meu exemplo: “não vim para ser servido mas para servir”, a Igreja afirmou-se
como hierarquia, com duas classes: clérigos e leigos, os que mandam e os que
obedecem. A situação agravou-se com a reforma gregoriana e a romanização, como
se lê no famoso Dictatus Papae, do Papa Gregório VII (século XI): “A Igreja
romana foi fundada só por Jesus Cristo. Por isso, só o Romano Pontífice é digno
de ser chamado universal. Só ele é digno de usar insígnias imperiais; ele é o
único homem cujos pés todos os príncipes beijam.” Com esta concepção imperial
surgiu também a corte, o fausto, as vestimentas de luxo (ainda hoje os cardeais
são chamados os purpurados) e dignidades e títulos que Jesus não reconheceria:
Eminência, Excelência Reverendíssima, Monsenhor, etc. E as celebrações da
Eucaristia, que deveriam ser celebrações de família e em família, foram em
parte substituídas por Pontificais, nos quais há muito dos rituais das cortes
dos reis... O clericalismo e o carreirismo avançaram em crescendo e foi-se
impondo um hierarcocentrismo, já que, como escreveu o Papa Pio X, fora da
hierarquia, dos clérigos, o resto dos fiéis tem como única missão “aceitar ser
governado e obedecer”.
2. O Concílio Vaticano II foi um dos acontecimentos
mais importantes (para De Gaulle, o mais importante) do século XX, ao recentrar
a Igreja em Jesus e no Evangelho. Mas essa Primavera foi curta, já que
rapidamente veio o Inverno.
Para retomar a Primavera, chegou o Papa Francisco, um
Papa cristão e um líder político-moral global, um dos mais influentes e mais
amados, se não o mais amado. Não se esqueceu dos pobres; anuncia e faz caminhos a favor da justiça, da
fraternidade e da paz, dos “três T”: tecto, terra, trabalho; combate o
capitalismo desenfreado e desregulado, o ídolo que mata; é simples, humano, dá
risadas, beija, consola, vai ao encontro dos desafortunados e entrega-lhes a
esperança; insiste no diálogo ecuménico e inter-religioso; não condenou
teólogos nem tolheu a liberdade de pensar a fé; não tem medo nem sequer da
morte, porque tem fé e sabe que é amado por Deus... Anuncia por palavras e
obras o Reino de Deus, a Boa Nova de Jesus, e quer que a Igreja — a Igreja são
todos os baptizados — faça o mesmo. Por isso, declara que a corte, o clericalismo
e o carreirismo são “a peste” do papado e da Igreja. Uma reforma funda da Cúria
está a caminho, o mesmo acontecendo com o Banco do Vaticano.
Nuclear para a sua revolução são a descentralização e
o caminho sinodal (caminhar juntos e em conjunto) da Igreja local e universal.
Aí está o Sínodo para a Amazónia, um mini-Vaticano II, que abre hoje em Roma e estará activo até 27 deste mês. Dada a sua
importância decisiva, pois será marca determinante deste pontificado,
dedicar-lhe-ei a crónica do próximo Domingo.
É natural que Francisco tenha adversários, opositores
e mesmo inimigos, dentro e fora da Igreja, que o acusam até de heresia. Forçam
as acusações para que ele se demita. Mas ele não tem medo e não resigna. E
também não há razões para temer um cisma. Como disse recentemente numa
entrevista o cardeal alemão Walter Kasper, teólogo eminente, grande amigo e
defensor de Francisco — “Eu estou encantado com este Papa. Penso que ele é o
Papa preciso para este momento da história do mundo” —, “os que agitam o
espantalho do cisma são pequenos grupos que estão abertamente contra o Papa,
mas é preciso saber e ter em conta que são poucos, muito poucos, embora façam
muito ruído”. Acrescentou: “O Papa continua a ter muitíssima força. Tem um
dinamismo interior que o empurra para seguir adiante e não tem medo das
críticas que circulam contra ele, inclusivamente dentro do mundo católico.
Segue o seu caminho e está muito bem, mesmo fisicamente, para um homem de 82
anos. E a prova está em que continua a trabalhar incansavelmente.” E não há o
perigo de voltar atrás?, perguntou o jornalista José Manuel Vidal. Resposta:
“Penso que no próximo conclave não se pode eleger um Papa contrário. As pessoas
não aceitariam. Não é possível a marcha atrás, não é possível. As pessoas não
aceitariam isso, porque querem um Papa normal, humano e não um Papa imperial.”
Neste contexto, deve-se sublinhar a importância da
criação, ontem, de novos cardeais, incluindo o português José Tolentino Calaça
de Mendonça. Com essa criação, Francisco assegura a sua sucessão. De facto, a
partir de ontem, a maioria dos cardeais eleitores foram nomeados por ele
próprio: há agora 128, 67 criados por
ele, 42 por Bento XVI e 19 por João Paulo II. Só que é decisivo, digo eu, que
não se deixem levar por lóbis (o Papa também não gosta de lóbis) e sigam o
bilhete de identidade dos cristãos, descrito por Francisco na igreja de
Rakovski, Bulgária, num diálogo com crianças que tinham acabado de receber a
Primeira Comunhão. Disse então: “o nosso documento de identidade” é este: “Deus
é nosso Pai, Jesus é nosso Irmão, a Igreja é nossa família, nós somos irmãos, a
nossa lei é o amor. E o nosso apelido é cristãos:”
in DN 06.10.2019
https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/o-b-i-dos-cristaos-11374391.html
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QUE
COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ
TOLENTINO MENDONÇA
ESCUTAR O FUTURO
A
ECOLOGIA NÃO TEM DONO: ELA DEVE SER A ATITUDE NORMAL DE TODOS OS LOCATÁRIOS DO
PLANETA
Em
2015, por ocasião do Ano Santo da Misericórdia, o Papa Francisco fez um gesto
inédito e que carregava consigo a visão do que pode ser o presente e o futuro
do cristianismo. Oficialmente, esse ano jubilar teria início a 8 de dezembro,
com a abertura da Porta Santa na Basílica de São Pedro, em Roma. Mas o Papa
decidiu simbolicamente antecipá-lo, abrindo uma semana antes, numa geografia
periférica e improvável, a primeira Porta Santa. Fê-lo em Bangui, a capital da
República Centro-Africana, dizendo então: “Hoje Bangui torna-se a capital
espiritual do mundo.” Francisco escolheu como protagonista uma região pobre,
ferida pela guerra, alheia ao radar das grandes atenções, para dizer ao mundo
que “todos precisamos de pedir paz, misericórdia e reconciliação”. Com o sínodo
para a Amazónia, que tem o seu arranque este domingo no Vaticano, ocorreu um
facto semelhante. O quilómetro zero do sínodo, e que lançou todo o seu percurso
de preparação, foi Puerto Maldonado, a fronteira de ingresso na Amazónia
peruana, que o Papa visitou no final de janeiro de 2018. Ele quis
propositadamente sentar-se no meio dos chefes e dos anciãos dos diferentes
povos indígenas para ver de perto o reflexo daquela terra. E repetiu-lhes
várias vezes: “Precisamos de vos escutar.” De facto, os 7,8 milhões de
quilómetros quadrados da superfície amazónica são partilhados, em termos de
soberania, por nove países (Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela,
Suriname, Guiana e Guiana Francesa), mas albergam 390 povos, falantes de 240
línguas. “Um rosto plural, duma variedade infinita e de uma enorme riqueza
biológica, cultural e espiritual”, como o definiu o Papa. Por isso,
dirigindo-se aos representantes das populações nativas, pediu-lhes: “Nós, que
não habitamos nestas terras, precisamos da vossa sabedoria e dos vossos
conhecimentos para podermos penetrar — sem o destruir — no tesouro que encerra
esta região, ouvindo ressoar as palavras do Senhor a Moisés: ‘Tira as tuas
sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa’ (Ex 3, 5).”
O cuidado do
ecossistema é fundamental para promover a dignidade de cada indivíduo e o bem
da sociedade, e não há progresso autêntico sem a garantia de um vínculo entre o
campo social e o ambiental
O que é
o sínodo da Amazónia? Trata-se de uma sessão especial do sínodo dos bispos, com
uma concentração deliberada numa área geográfica, a Pan-Amazónica, e com um
manifesto objetivo pastoral que o Papa deixou expresso desde o seu primeiro
anúncio: “A finalidade principal é encontrar novos caminhos para a
evangelização daquela porção do povo de Deus, sobretudo dos indígenas, muitas
vezes esquecidos e sem perspetiva de um futuro sereno.” Mas, como é natural,
uma reflexão sobre a crise que abala aquela região torna-se relevante para a
Igreja no seu conjunto e diz respeito a toda a humanidade. Nesse sentido, a
Amazónia é certamente um caso específico, mas também um símbolo de tantas
outras realidades e constitui uma oportunidade para relançar a consciência do
cuidado urgente pela casa comum. Na frase que serve de mote a este sínodo surge
a mobilizadora expressão que o Papa Francisco cunhara já nesse extraordinário
texto de futuro que é a encíclica “Laudato Si”. A expressão é: “para uma
ecologia integral”. Tal corresponde a uma verdadeira mudança de paradigma, pois
numa ecologia integral tudo surge interligado. O cuidado do ecossistema é
fundamental para promover a dignidade de cada indivíduo e o bem da sociedade, e
não há progresso autêntico sem a garantia de um vínculo entre o campo social e
o ambiental. De facto, a ecologia não tem dono: ela deve ser a atitude normal
de todos os locatários do planeta. E pela razão óbvia que Francisco escreve: “A
defesa da terra não tem outra finalidade senão a defesa da vida.”
in Semanário Expresso, 04.10.2019 p 157
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2449/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/escutar-o-futuro
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À
PROCURA DA PALAVRA
P.
Vítor Gonçalves
DOMINGO
XXVII COMUM Ano C
“Se tivésseis fé como um grão de mostarda,
diríeis a esta amoreira: ‘Arranca-te daí e vai
plantar-te no mar’,
e ela obedecer-vos-ia.”
Lc 17,
6
A fé “canivete suíço”?
Quantas vezes gostaríamos que a fé fosse como uma
espécie “canivete suíço”, instrumento para obter prodígios, como nos habitámos
a ver na série MacGyver? Não será um pouco a tentação de medir a fé pela
eficácia com que se realizam coisas extraordinárias e visíveis? Como se
obrigássemos Deus a satisfazer os nossos desejos e caprichos!
Jesus apresenta a fé como uma semente pequenina, grão
de mostarda, a mais pequena das sementes. Que é capaz de crescer
admiravelmente, enraizar na vida e virar do avesso as escolhas e os caminhos. E
reconhece-a presente no coração de pessoas inesperadas e improváveis, como o
centurião ou a mulher cananeia. Que lhe pedem vida para outros, um servo e uma
filha, que muito amam. Como também no cego que pede visão e na mulher que toca
no seu manto, anunciando-lhes que a fé os salvou.
A imagem da amoreira desenraizada e plantada no mar
aponta para as obras maravilhosas da fé. É claro que importa não interpretar
mal as imagens utilizadas por Jesus. As raízes mais profundas e importantes,
como as da indiferença, dos ódios e rancores, são as que precisamos arrancar do
íntimo de cada um e da sociedade. Alargam-se abismos e crescem montanhas entre
pessoas. Preconceito, desprezo, desconhecimento ou medo são alguns nomes destes
abismos e montanhas. Não é obra maravilhosa desenraizar o mal que impede
proximidade, abertura e comunhão? Não são admiráveis as pontes e os caminhos de
perdão e diálogo que a fé, ajudada pela esperança e pela caridade, realizam?
Quem não conhece e vive com muitas dessas raízes? E vive mal ou infeliz!
A fé cristã, não é uma simples crença em verdades, mas
adesão radical à pessoa e ao projecto transformador do Mestre. Uma adesão que
empenha a vida toda. Os seus frutos são extraordinários, o que não significa
“dobrar e manipular” a ordem natural das coisas, ou manifestar-se na
“espectacularidade” de sinais “impossíveis”. Deus ama o que é simples e
verdadeiro, não precisa “armar espectáculo” para convencer ninguém. Basta-lhe o
nascer do sol ou uma lágrima na face de uma criança!
A fé que ganha corpo na alegria de servir é verdadeiro
“canivete suíço” para transformar o mundo. Não a fé “contabilista” de méritos
que espera recompensas eternas. Não a fé “utilitarista” que procura mandar na
vida e “orientar” Deus aos meus desejos. Não a fé “privada” que se abala com as
derrotas do clube. Mas a fé, relação viva e desacomodada com o Senhor da Vida,
que traz a alegria da generosidade e a paz de fazer o maior bem possível.
in Voz da Verdade, 06.10.2019
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Igreja Católica à escuta da
Amazónia, “terra que sangra”
A capacidade de intervenção do
catolicismo no mundo contemporâneo joga-se também em vários fios de navalha que
o Sínodo traduz e que irá debater a partir deste domingo, depois da abertura
solene com a missa desta manhã de domingo, em São Pedro do Vaticano.
Uma escuta que implica reconhecer a Amazónia como
“novo sujeito”, que deve escutar os povos indígenas e o grito dos povos
indígenas em favor da “Mãe Terra”, que “tem sangue e está sangrando”, vítima de
multinacionais e visões políticas que “cortaram as veias” da região amazónica.
Esta é a visão do documento de trabalho do Sínodo dos
Bispos católicos sobre a Amazónia, convocado há dois anos pelo Papa Francisco,
que neste domingo se inicia com uma missa solene, no Vaticano. Um acontecimento
que é uma oportunidade histórica de a Igreja Católica se confrontar com sombras
do seu passado, diagnosticar muito do seu presente e perspectivar caminhos de
futuro. E fazer tudo isto em relação à sua configuração e acção, no diálogo com
os povos indígenas, e na defesa económica, social e cultural das mesmas
comunidades, ameaçadas por poderes políticos, financeiros e industriais
poderosíssimos.
A capacidade de intervenção do catolicismo no mundo
contemporâneo joga-se também em vários fios de navalha que o Sínodo traduz e
que irá debater a partir deste domingo, depois da abertura solene com a missa
desta manhã de domingo, em São Pedro do Vaticano.
Um “ecologismo
pagão e panteísta”?
No documento que os 185 bispos participantes debaterão
nos primeiros dias, escreve-se que o sínodo é “uma grande oportunidade” para a
Igreja descobrir “a presença encarnada e activa de Deus” nas manifestações da
criação, na espiritualidade indígena, nas organizações populares e na proposta
de uma economia produtiva, sustentável e solidária que respeite a natureza.
Este parágrafo (33) do Instrumentum laboris – a
designação latina do documento – resume bem algumas das grandes questões com
que o catolicismo se vê confrontado: a Igreja tem de assumir um rosto indígena,
como se insiste em diversas ocasiões ao longo do texto. Quer dizer, o
protagonismo da sua missão deve ser dado em primeiro lugar aos autóctones, sem
desfigurar a mensagem, mas convertendo estruturas, mentalidades e modos de agir
da instituição, aproximando-os das populações locais. O anúncio do evangelho
deve ser feito pelos povos amazónicos, a partir de dentro, e não apenas por
missionários que chegam de fora, insiste também o texto.
Não por acaso, o Papa presidiu sexta-feira a uma
pequena cerimónia nos jardins do Vaticano, de plantação de uma árvore que,
vinda de Assis, assinalou o dia de São Francisco e como que pré-inaugurou a
assembleia sinodal e na qual os indígenas presentes cantaram e rezaram nas suas
línguas. Logo várias publicações conhecidas pela sua oposição ao pontificado de
Francisco denunciaram o que consideram uma confusão entre o “amor da criação” e
o “ecologismo pagão e panteísta”.
Não é esta uma questão de somenos: há sectores
católicos que continuam a considerar qualquer aproximação nas linguagens ou
modos de fazer como uma abdicação de princípios “inegociáveis”.
Mulheres e
ordenação de homens casados
Neste campo, entram as duas questões mais mediáticas
do Instrumentum laboris: a eventual ordenação de homens casados e a atribuição
de maiores responsabilidades às mulheres no interior da estrutura eclesial –
ambas integram um vasto conjunto de propostas no parágrafo 129.
A possibilidade de ordenar homens casados, oriundos
das próprias comunidades, é uma medida defendida por muitos grupos católicos;
mas também tem havido quem chama a atenção para o facto de, em muitas
comunidades, não haver um sentido de casamento como o que a Igreja defende – o
que tornaria a medida não muito eficaz.
Já quanto ao papel das mulheres, o documento diz que
“elas pedem para recuperar o espaço que Jesus reservou às mulheres”. Uma ideia
que segue a estratégia de Francisco: habituar as pessoas a ver mulheres em
lugares de responsabilidade de modo a que se seja natural que, um dia, a
comunidade católica aceite como natural o alargamento do ministério de
presbítero (sacerdotal) às mulheres.
A Mãe Terra que
sangra
A Amazónia é, neste momento (e desde há muito, como
denunciam grupos cristãos e civis) uma “terra que sangra”. O documento (147
parágrafos em meia centena de páginas, que pode ser lido no sítio do Vaticano
na Internet) é prolixo a denunciar crimes humanos, ambientais, ecológicos,
económicos e políticos de que a Amazónia está a ser vítima – sempre sustentado
em números e factos.
Surgem assim como naturais as propostas do
Instrumentum laboris: reconhecimento de um passado eclesiástico muitas vezes
conivente com estruturas opressoras, e assunção da ideia de que o território e
as pessoas da Amazónia são um “lugar teológico” –traduzido da linguagem
católica, são os primeiros protagonistas da salvação que o cristianismo propõe.
Ser uma voz profética, de contra-poder contra as
injustiças e a dinâmica destruidora, em defesa de uma ecologia integral, que
implica as pessoas e o ecossistema e apresentando uma proposta de esperança –
numa curtíssima síntese, esta é a visão do documento. Dia 27, no final do
Sínodo, se verá como assumirá a Igreja este rosto amazónico.
in Público 06.10.2019
https://www.publico.pt/2019/10/06/sociedade/analise/igreja-catolica-escuta-amazonia-terra-sangra-1889014
Já escreveu
na sua agenda
Sábado
19 de Outubro às 15.30
Conferência
do Prof. Luca Badini do Wijngaards Institute for Catholic Reform
às
15.30 no Convento de S. Domingos
Sights and Sounds of Rome:
Encounters with three new Princes of the Church
John L.
Allen Jr.
EDITOR
News Analysis
ROME - It’s
an over-used metaphor, but right now ecclesiastical Rome has the feel of Super
Bowl week. There’s a consistory for the creation of new cardinals today, the
opening of the much-anticipated Synod of Bishops on the Amazon Sunday, and the
canonization of John Henry Newman one week later - not to mention a welter of
counter-synods and protests among Pope Francis’s most determined critics.
Herewith, a
sampling of sights and sounds from an extraordinary Roman period. I’ll be
providing a daily digest as the month rolls on.
New Cardinals
The Vatican
has been making several of the new cardinals in today’s consistory available to
the press over the last couple of days, which gave me the opportunity Friday to
spend some time with three new Princes of the Church: Sigitas Tamkevicius of
Lithuania, Jean-Claude Hollerich of Luxembourg and Fridolin Ambongo Besungu of the Democratic
Republic of Congo.
Each man was
impressive in his own way.
Hollerich,
for example, is a remarkably gifted polyglot, serving up fluent answers to
questions from reporters in French, English, Italian and even Japanese,
reflecting his twenty years in Japan teaching at the Jesuit-founded Sophia
University.
Only 61
years old, Hollerich also revealed himself to have a lively sense of humor. I
noted that he’s one of three Jesuits in this consistory out of 13 total new red
hats, and asked how he sees the Jesuit influence on Pope Francis.
“Very small,
to tell you the truth,” he laughed.
“I rather
see the influence of this pope on the Jesuits,” he said. “The Jesuits are a
bunch of people who are very committed to Christ, but also very individualistic
from time to time. I think this pope is succeeding at bringing the Jesuits back
to their first mission, which is to serve the Church.”
Considered
one of Francis’s most reliable allies among the European bishops, Hollerich was
ready to pounce with a very “Franciscan” reply when asked what’s the biggest
change now that he’s a cardinal.
“The first
thing I have to change is myself,” he said.
“When you
listen to the teaching of the pope, he calls us to a personal conversion, and
that’s as true for cardinals and bishops as for lay women and men,” Hollerich
said. “We have to undergo a conversion to Christ in order that our proclamation
of the Gospel can be really heard by people.”
He joked
that despite the Gospel story of the shepherd who leaves 99 sheep behind in
order to go after the one who’s lost, in contemporary Europe it’s more there
are 99 lost sheep and only one who’s still in the church.
“We have to
go see which pastures these people are on,” Hollerich said. “What’s attracting
them? Where do they see life? Every human being is striving for happiness, for
meaning, in their lives, so we have to find people where they are.”
In the case
of Tamkevicius, who’s over 80 and therefore among the “honorary” cardinals who
can’t vote in the next conclave, it’s his personal story that’s most inspiring.
He spent almost a decade in Soviet forced labor camps, not only because he was
a Catholic priest but because of his unyielding defense of human rights.
Tamkevicius
said Friday that what sustained him during those years in prison was prayer,
especially saying Mass, which he had to do in secret because religious
expressions were officially prohibited. How much the Mass meant can be glimpsed
from his attitude to the kinds of work his jailers forced him to do, telling us
he had various jobs at one time or another - cook, iron worker, dishwasher, and
several others.
When I
jokingly asked his favorite, his response was telling: “I liked washing dishes
best, because there in the kitchen it was fairly easy to sneak away and say
Mass.”
As footnote,
I was curious as to how Tamkevicius managed to find wine for the liturgy. He
explained that in the camps they would give prisoners a meal ticket, and
generally in their food he’d find both bread and dried grapes. He’d pocket some
of both, using the grapes to make a crude wine.
Obviously,
giving the red hat to such a man is a way for Francis to honor both his
personal suffering and that of the church he represents. Tamkevicius, however,
was matter-of-fact about his own sacrifice.
“If a
believer isn’t ready to suffer for his faith,” he said simply, “then he’s not
much of a believer.”
Of the three
new cardinals Friday, I confess I was most looking forward to meeting Ambongo,
since he’s a Capuchin and I was educated by the order out on the high plains of
Western Kansas. He becomes the second Capuchin cardinal in the world, after
Sean O’Malley of Boston - though unlike O’Malley, he wears around clerical
blacks rather than the trademark Capuchin brown robe.
In Congo,
where the Catholic Church is the most trusted force in civil society,
ecclesiastics also have to be skilled politicians. As Ambongo put it, “The
Church is the one voice and one hope of our people.”
As proof of
the point, his predecessor as the Archbishop of Kinshasa, Cardinal Laurent
Monsengwo, was briefly the de facto head of state in the 1990s after the death
of Mobutu Sese Seko, in a moment when the country was making a transition from
authoritarianism to something approaching democracy. Monsengwo not only served
as president of a transitional “High Council of the Republic,” but also as
transitional speaker of the national parliament in 1994.
Ambongo
certainly seems to have a knack for politics, especially the fine art of
deflection. For example, asked a question about the viri probati, or married
priests, a topic expected to come up in the Amazon synod, he launched into a
soliloquy about the Amazon as the lung of the world and how many of the issues
of deforestation and exploitation it faces also apply to the Congo Basin.
It was
rousing, even if utterly unrelated to what he’d actually been asked.
That’s not
to say, however, Ambongo is afraid of taking a stand. Far from it - like
Tamkevicius he also did time in jail, in his case under President
Laurent-Désiré Kabila at a time when Ambongo was the chair of a
church-sponsored Justice and Peace Commission, denouncing corruption and human
rights abuses.
The
59-year-old Ambongo spoke movingly of what it means to be a pastor in a place
like Congo, ranked by the UN as the second-poorest country in the world.
He
described, for instance, traveling by helicopter to visit one of the epicenters
of the 2018 Ebola outbreak that had been abandoned by virtually everyone else,
including the state. Upon arriving he discovered that the local pastor was
himself infected, so Ambongo got as close to him as health workers would allow
and then prayed over him. In the end, the priest recovered.
“Some people
said it was a miracle,” Ambongo said, “but to me the miracle was that the
Church never deserted the people … we’ve always stayed close, no matter what.”
Ambongo also
spoke of how his vocation was born in a sense of admiration for a Belgian
Catholic missionary who’d come to work in his part of the Congo. Watching him
move heaven and earth to help his people, Ambongo said, he was inspired to join
the Capuchins to try to be like that priest.
I asked if
the fact of being a Capuchin has had an influence on his style of being a
bishop.
“Without a
doubt,” he said. “If I’m the kind of pastor I am today, that everyone knows,
it’s because of my Capuchin formation. Everything I do today … the struggle for
justice, for peace, for human dignity, these are things that have come to me
from my formation as a Capuchin.”
Ambongo said
he believes that despite being a Jesuit, the current pope is leading the Church
in the style of St. Francis - “which means we’ll get along,” he quipped.
It remains
to be seen what these new Princes of the Church may do with their newfound,
exalted status, and what impact it may have either on the Church or their parts
of the world. Based on Friday’s exchanges, however, it would seem that whatever
they do, it will be interesting to watch.
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Allen on Twitter: @JohnLAllenJr
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in CRUX Oct 5, 2019
https://cruxnow.com/news-analysis/2019/10/05/sights-and-sounds-of-rome-encounters-with-three-new-princes-of-the-church/
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Tolentino
Mendonça cardeal: “Ser cristão é um risco, ser humano é um grande risco”
Com o
consistório deste sábado, Francisco indica claramente várias direcções que
pretende para a reforma do catolicismo: o acolhimento dos migrantes e
refugiados, o diálogo com o islão e a diversidade cultural, a abertura da
Igreja à ideia da diversidade. Tolentino Mendonça diz que está pronto para ser
cardeal
António
Marujo no Vaticano 5 de Outubro de 2019
Um
colégio de cardeais cada vez menos europeu e italiano, cada vez mais do Sul do
mundo e onde cresce o número de membros preocupados com questões que saem das
fronteiras da Igreja. Cardeais que se empenham em questões como o diálogo com o
islão, os migrantes e refugiados, os pobres e as pessoas marginalizadas ou a
dimensão de escuta e de diálogo cultural com artistas e pensadores – incluindo
aqui o português José Tolentino Mendonça, que este sábado será formalmente
investido pelo Papa, com outros 12 bispos, na função de
cardeal, que corresponde à de conselheiro do líder da Igreja Católica.
“A
cultura é um palco particular para essa dimensão do encontro, da hospitalidade
do outro, da escuta”, disse ontem à tarde o arcebispo José Tolentino Mendonça,
53 anos, a um grupo de jornalistas portugueses. “Uma coisa que a cultura me
ensinou é que a coisa mais importante que podemos fazer é escutar e é na escuta
profunda uns dos outros que nos podemos verdadeiramente encontrar”, declarou, a
propósito da sua capacidade
de fazer pontes com outros sectores.
Garantindo
que continua a escrever poesia – João Paulo II era Papa e escreveu poemas,
lembrou –, o autor de A Noite Abre Meus Olhos disse que a
poesia “é também uma chave importante para escutar Deus”. E acrescentou: “O
maior dom que a poesia me deu é a necessidade profunda da escuta.”
Questionado
sobre se ser cardeal o incomoda, Tolentino Mendonça respondeu: “Ser cristão é
um risco, ser humano é um grande risco.” E referindo outro grande poeta,
acrescentou: “Guimarães Rosa, esse autor amado da nossa língua, dizia ‘viver é
perigoso’. E nós sabemos que é assim. As coisas grandes da vida são assim e
todos nós vivemos, nos nossos caminhos diferentes, coisas muito perigosas: um
grande amor, um filho, um encontro, um trabalho que nos apaixona.”
A diversidade é “genética” no cristianismo
Sobre
o momento actual da Igreja, com as críticas de diferentes sectores ao caminho
de reforma trilhado pelo Papa Francisco, Tolentino Mendonça considera que a
diversidade dentro da Igreja é uma marca “genética”: “Não é um problema, a
diversidade é uma riqueza. Se olharmos para a história do cristianismo, ela é
feita de santos tão diferentes, de congregações religiosas, de carismas...”,
disse. As diferentes sensibilidades nunca foram de deitar fora, acrescentou.
Pelo contrário, são um “enriquecimento muito importante” e a Igreja é uma
experiência que se encontra “não na fusão, mas numa diferença convergente”,
sendo o papel do Papa o de “agregador”.
A beleza
num livro de aforismos de Tolentino Mendonça
Um novo
livro do novo cardeal português foi ontem posto à venda. Uma Beleza Que
nos Pertence é uma colecção de aforismos e citações, retirados dos
seus outros livros de ensaio e crónicas, “acerca do sentido da vida, a beleza
das coisas, a presença de Deus, as dúvidas e as incertezas espirituais dos
nossos dias”, segundo a nota de imprensa da editora Quetzal.
Organizado
por grandes temas, o livro recolhe centenas de excertos da obra ensaística e
das crónicas do bibliotecário da Santa Sé. “O grande risco é o de nos deixarmos
mergulhados numa vida inautêntica, uma vida que não é vida, feita de imagens e
de aparências. O que passa a contar, no fundo, é a ilusão que se projecta e que
é preciso salvar a todo o custo”, diz uma das citações.
“Hoje
muita gente parece mais interessada em salvar as aparências do que em salvar-se
a si própria. Num vazio sempre mais amplo, a imitação acaba por obscurecer o
original. E assistimos ao triunfo da sociedade do espectáculo, gerida por uma
ética provisória e funcional, que não chega a tocar o homem.”
Além da
obra sobre a Bíblia e da poesia, Tolentino Mendonça tem publicados vários
livros com pequenas crónicas ou meditações.
Referindo-se
ainda ás palavras do Papa no regresso da sua recente viagem a África (incluindo
Moçambique), quando disse não ter medo de um cisma, o bibliotecário da Santa Sé
afirmou: “O que o Papa disse na viagem foi ‘não tenho medo’. A mensagem não é
‘vem aí um cisma’. A mensagem é ‘eu não tenho medo’”. Socorrendo-se da sua
investigação na área dos estudos bíblicos, acrescentou que a diversidade está
presente “desde os primeiros textos das origens cristãs, é alguma coisa muito
permanente”, exemplificando com o facto de haver quatro relatos diferentes
acerca da vida de Jesus, referindo-se aos quatro evangelhos canónicos.
O
Papa Francisco tem uma voz que chega longe, disse Tolentino Mendonça. Ele “tem
uma autoridade muito para lá das fronteiras do mundo católico, muito na linha
de uma curiosidade com os outros, de encontrar-se com o coração desarmado e de
escutar até ao fim a pessoa”.
Por
isso, colocado perante a possibilidade de um
dia ser ele próprio a vestir de branco, o novo cardeal
disse que entrar num conclave “é tão perigoso como sair dele”. “O importante é
convergir, para o espírito de comunhão da Igreja, interpretar os sinais dos
tempos e [deixar] que o Espírito Santo fale. Mas não falemos de conclave. Vida
longa ao Papa Francisco”, disse, para insistir: “Vida longa ao Papa Francisco e
a todos os papas que virão.”
Nascido
no Machico (Madeira), José Tolentino Mendonça foi para o seminário aos 11 anos.
Depois de ordenado padre doutorou-se em estudos bíblicos, área em que já
publicou vários ensaios – nomeadamente A Construção de Jesus e Leitura
Infinita. Ao mesmo tempo, é reconhecido como uma das vozes mais originais
da poesia portuguesa contemporânea e vários dos seus livros de poemas foram
premiados.
Em
2018, foi convidado a orientar os exercícios espirituais da Quaresma para o
Papa e a Cúria Romana, o que deu origem ao livro Elogio da Sede, outra obra
marcante da sua produção. Agora, pouco mais de um ano depois da sua nomeação
como arcebispo e bibliotecário da Santa Sé, o Papa anunciou que o nomearia
cardeal, o que o surpreendeu, aceitando “uma missão para a qual antes não [foi]
escutado”. Por isso, sente-se com “uma humildade muito grande e um
desprendimento no sentido de dizer ‘sou chamado, estou aqui com o que sou’,
venho arregaçar as mangas e servir”. “A pergunta que repito no meu coração é
neste momento mesmo dirigida a Deus: ‘O que é que queres de mim, o que é que
queres que eu faça?”, acrescentou.
As direcções de uma reforma
Quando,
a partir das 16h deste sábado, em Roma (menos uma hora em Lisboa), o Papa
entregar aos 13 novos cardeais as insígnias representativas da sua função
(barrete, anel e bula), estará a dar vários sinais. Desde logo, as escolhas do
Papa destes nomes reflectem a preocupação de Francisco em ter conselheiros
oriundos de todo o mundo: o Colégio Cardinalício passará a contar com 225
cardeais (incluindo os 124 que podem votar num futuro conclave de eleição de um
papa, caso ele se realizasse daqui a poucos dias), oriundos de 90 países
representados. Nunca a universalidade do catolicismo (uma redundância, já que
dizer “católico” significa “universal”) foi tão verdadeira neste organismo de
consulta do Papa.
Com
esta nomeação (uma palavra que, com Francisco, não é casual – ver caixa),
passará a haver 66 cardeais escolhidos por Bergoglio, além de 42 nomeados por
Bento XVI e 16 por João Paulo II. O que não quer dizer tudo, mas significa
muito, para um próximo conclave.
Noutro
âmbito, o Papa quer significar que considera muito importantes o diálogo
cultural, como no caso de Tolentino Mendonça, e áreas como o diálogo
inter-religioso e o apoio a migrantes e refugiados ou a pessoas pobres e
marginalizadas. No caso do diálogo inter-religioso, isso traduz-se com as
escolhas dos actual e antigo presidentes do Conselho Pontifício para o Diálogo
Inter-religioso, Miguel Ángel Guixot, missionário comboniano, e Michael Louis
Fitzgerald, que foi núncio no Egipto; e ainda do salesiano espanhol Cristóbal
Romero, arcebispo de Rabat (Marrocos), reconhecido pelo seu papel de
aproximação ao islão numa sociedade esmagadoramente muçulmana, e que também tem
feito grandes esforços para o acolhimento de migrantes e refugiados da África
subsariana.
No
apoio aos refugiados, também se destaca o até ontem padre checo Michael Czerny,
jesuíta checo e responsável da secção dos Migrantes e Refugiados no Dicastério
para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. A cruz de Czerny, que ontem
á tarde foi ordenado bispo, é de madeira oriunda de um barco usado por
migrantes para atravessar o Mediterrâneo, rumo a Lampedusa, recordou a
Ecclesia.
A
linguagem que traduz a reforma de Francisco
Não é
por acaso que Francisco fala da nomeação de cardeais, numa Igreja em que,
durante séculos, o Papa os “criava”. Trata-se de uma nomeação, disse ele ao
anunciar os diferentes nomes para os diferentes consistórios. Uma piada
eclesiástica dizia que nesse momento o líder da Igreja se assemelhava ao Deus
criador – quando se limitava a fazer uma nomeação e a entregar os três símbolos
da função: anel, barrete e bula.
Tão
pouco é casual que o Papa não fale da “elevação” de alguém a cardeal, outra
palavra muito usada por estes dias, ou que insista na ideia de que o serviço e
não o poder é a ideia essencial do cargo, aliás repetindo já ideias fortes de
Bento XVI nos últimos tempos do seu pontificado.
A pompa
com que os cardeais eram (e ainda são) tratados, as regras protocolares que
subsistem em muitas cerimónias do Vaticano, com uma rígida hierarquia e
insistindo mais na formalidade, nos ritos, em regras estritas de vestuário e
nos títulos mostram que a reforma de Francisco, que muitos crentes desejam
acelerar, ainda levará muito tempo. Até porque outros insistem na importância
desses factores, considerando-os fundamentais e fazendo deles alguns dos
principais argumentos da sua oposição a Francisco.
A
par do apoio a refugiados, o guatemalteco Alvaro Leonel Imeri dedica muita da
sua acção aos mais pobres e excluídos. Também os arcebispos do Luxemburgo,
Jean-Claude Höllerich, que esteve muitos anos no Japão, e de Bolonha, Matteo
Zuppi (mediador do primeiro acordo de paz de Moçambique) se incluem no lote dos
que actuam nessas áreas consideradas prioritárias pelo Papa.
Das
periferias geográficas vêm o cubano Juan García Rodríguez (Havana), o congolês
Fridolin Ambongo Besungu (Kinshasa), e o indonésio Ignatius Hardjoatmodjo
(Jacarta), líder católico no maior país muçulmano do mundo.
Com
o consistório deste sábado, Francisco indica claramente várias direcções que
pretende para a reforma do catolicismo.
Uma
azinheira de Assis, no Vaticano, pela Amazónia
Uma
azinheira plantada em terra de vários lugares do mundo, nos jardins do
Vaticano, numa cerimónia presidida pelo Papa e com a presença de uma delegação
de indígenas da Amazónia, que rezou e cantou nas suas línguas, assinalou
simbolicamente o início do Sínodo dos Bispos, que neste domingo começa em Roma.
Ao mesmo tempo, homenageou as pessoas mortas em defesa da floresta amazónica.
Oriunda
de Assis, a cidade de São Francisco – patrono dos ecologistas e inspirador quer
do nome do Papa quer da encíclica Laudato Si’, dedicada ao ambiente –, a
azinheira assinalou a importância que o Papa atribui à realização do Sínodo e à
situação social, económica e ecológica da região amazónica.
Francisco
quis registar ainda o dia consagrado pela Igreja Católica a Francisco de Assis
e encerrar o “Tempo da Criação”, iniciativa conjunta de várias igrejas cristãs
durante as últimas semanas, destinada a sensibilizar para as questões
ambientais e da “casa comum”.
*jornalista do
7Margens/especial para o PÚBLICO
in Público, 05.10.2019
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