06 outubro 2019


P / INFO: Crónicas, Igreja Católica à escuta da Amazónia, “terra que sangra” &, abaixo, Sights and Sounds of Rome: Encounters with three new Princes of the Church & um excelente artigo de António Marujo, Tolentino Mendonça cardeal: “Ser cristão é um risco, ser humano é um grande risco”
Teologia e Literatura: Frei Bento
O B. I. dos cristãos: Pe. Anselmo
 Escutar o futuro: Pe. Tolentino
A fé “canivete suíço”?: Pe. Vitor

TEOLOGIA E LITERATURA
Frei Bento Domingues, O.P.

Em Portugal e no Mundo, há muitas referências à dimensão religiosa e cristã na literatura dos últimos séculos.

1. A fonte de toda a teologia cristã é o chamado Novo Testamento (NT) que, por sua vez, é uma inovadora interpretação da Bíblia Hebraica ou, como é usual dizer-se, do Antigo Testamento (AT). Hoje, encontramos todos os livros da Bíblia de épocas, autores, géneros literários e línguas diferentes, encadernados num só volume. Podem dar a ilusão de constituírem apenas um livro, quando a própria palavra Bíblia significa livros. É preferível, por isso, falar de teologias e não de teologia do AT ou do NT. A expressão muito usada, como diz a Bíblia, não pode indicar nada de muito preciso.
Nessa biblioteca, coexistem, na teia contraditória das experiências humanas narradas, apresentações de Deus cheias de contrastes irredutíveis. O próprio Jesus diz, aos seus interlocutores rabínicos: disseram-vos, mas eu digo-vos. Sustentava muitas vezes o contrário do que vinha nas Sagradas Escrituras.
 Para quem tem uma noção de livros divinamente inspirados, como ditados de Deus, pode ser levado a pensar que Deus não se levanta todos os dias com a mesma disposição, pois são-lhe atribuídas afirmações que não batem certo umas com as outras. A inspiração divina acontece através de múltiplas e complexas mediações humanas. Quando se afirma que a Bíblia é palavra de Deus importa não esquecer que se trata de uma metáfora para dizer que aquela literatura, sem a referência ao Deus sem nome, seria impossível.
 Pelo caminho da sua escrita poética, narrativa, romanesca, sapiencial, a Bíblia revela a profundidade e a complexidade que nenhum dilúvio poderá vencer. Como nota o Prof. José Augusto Ramos, “poderíamos por isso, dizer, sem qualquer intenção de sectarismo, que, em termos históricos e culturais, a Bíblia hebraica completa é a Bíblia cristã. Uma antologia literária que começa no Génesis e termina muito bem no Apocalipse[1].
      Ao dizer que o terminal das virtudes teologais – fé, esperança e caridade - é Deus, mistério inabarcável, vemos que as mediações que O referem e procuram tactear são múltiplas. Não se pode crer sem querer e sem as interpretar.
 Sendo as fontes da teologia cristã uma antologia literária, surge a pergunta: que aconteceu para que a prática da teologia eclesiástica se tenha, em geral, divorciado da literatura viva dos poetas, dos romancistas e dos dramaturgos?
Teologia e literatura deixaram de se reconhecer mutuamente, são dois universos que não têm uma fronteira comum. Quem o disse foi um teólogo, P. Duployé, ao defender a célebre tese, La religion de Péguy, na Faculdade de Letras da Universidade de Estrasburgo[2]. Depois desse acontecimento, foram bastantes os que se apaixonaram, simultaneamente, pela teologia e pela literatura[3]. J.-P. Jossua O.P. tem trabalhado, há muitos anos, na prática e na construção da théologie littéraire, aquela que descobre afinidades entre teologia e literatura. Não são mundos justapostos.
A literatura, no sentido moderno da palavra, não implica o apagamento de uma tensão com o absoluto. O romance testemunha, por vezes, questões nascidas de uma dúvida radical acerca da fé religiosa, mas também existem muitos romances que manifestam a presença de preocupações e experiências de ordem religiosa no coração da vida quotidiana, mesmo que o verdadeiro romance encerre sempre um carácter subversivo pela sua ironia e pluralismo. A teologia podia tirar daí o seu bem, no caso de se abrir à imaginação, à metáfora, à narração, respeitando a autonomia da literatura e resistindo à tentação de a instrumentalizar.
2. Manuel António Ribeiro escreveu um texto sobre as Reconfigurações de Deus na literatura moderna[4] que interessa a esta crónica. Afirma que é um dado facilmente verificável que se esvaneceram, desde há décadas, os escritores com a estatura dos franceses Mauriac, Péguy, Claudel, Bernanos, nomes que se tornaram referências de vulto, ao trazerem para a literatura uma tematização aderente ao mistério da existência humana, visto à luz do discurso teológico do catolicismo. Fora do espaço gaulês, Graham Greene e T. S. Eliot são outros exemplos representativos de uma tendência de sinal semelhante. Todavia, há muito que deixaram de ter grande acolhimento editorial os estudos críticos que enfatizam mais a vertente “cristã” ou “religiosa” do que a dimensão literária das obras.
Este articulista pensa, que se pode afirmar que depois da morte de François Mauriac (1970), a literatura entendida como veículo da “causa cristã” passou a ter uma presença pouco relevante na crítica literária. Isto não quer dizer que não persistam escritores em cujas criações transparecem imaginários e pressupostos de conteúdo cristão. Nenhum deles, porém, é identificado como escritor católico, nem sequer como escritor cristão. Eles próprios preferiam que se falasse de católicos que são escritores. A razão por esta preferência é muito simples. Não se deseja fazer da literatura uma ferramenta ao serviço de uma causa ideológica, seja ela qual for.
Este estudo não esquece que ao lado e para além dessas cautelas e polémicas nunca deixaram de existir reflexões sobre o fenómeno literário, assentes na preocupação de discernir a componente religiosa como interrogação ou iluminação. Lembra, a este propósito, a grande obra de Charles Moeller, Littérature du XXe siècle et Christianisme (5 vol., 1953-1975).
3. Já existem muitas referências à dimensão religiosa e cristã na literatura portuguesa dos últimos séculos. Para superar o seu carácter fragmentário seria preciso um plano de investigação e de publicação que, para ser executado com êxito, exige uma ou várias equipes de estudiosos. A seara é vasta e os operários deste empreendimento são poucos e dispersos. Desde, por exemplo, Antero de Quental, Fernando Pessoa, José Régio, até Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luis, Herberto Helder, Lídia Jorge, António Lobo Antunes, etc. existe um mundo literário que tem a ver com o fenómeno religioso e que não deve nem pode ser esquecido pelo mundo dos teólogos.
Seria injusto não lembrar que contamos com alguns casos que uniram ou unem prática literária e prática teológica. Alfredo Teixeira estudou o caso emblemático de Frei José Augusto Mourão[5]. José Tolentino Mendonça é o autor português de escrita de teologia literária mais conhecida e reconhecida. Esperamos que o cardinalato não o retire da sua vocação teológica e literária
in Público, 07.10.2019
https://www.publico.pt/2019/10/06/sociedade/opiniao/teologia-literatura-1888890


[1] Communio XXXI (2014/4), p.400
[2] Cf. M. D. Chenu, La littérature comme « lieu » de la théologie, RSCFT, Tome LIII, 1969, pp. 70-80.
[3] Cf. Revista Concilium, nº115 (1976/5) dedicado às relações entre teologia e literatura.
[4] Communio XXXI (2014/4), p.409-414
[5] A errante sonoridade de Deus. Revisitando José Augusto Murão, Communio XXXI (2014/4) p 415-428

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O B. I. dos cristãos
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

1. No início do século XX, A. Loisy fez uma afirmação que é decisiva para a compreensão dos problemas dramáticos por que passa a Igreja: “Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, mas o que veio foi a Igreja”. Realmente, não se pode dizer que Jesus fundou a Igreja. Jesus é o fundamento da Igreja, mas não o seu fundador.
Jesus anunciou o Reino de Deus. E o que é o Reino de Deus? O próprio Jesus, na sua pessoa, na sua palavra, na sua vida, na sua morte e ressurreição. Ele é o Vivente em Deus para sempre. O que é que anunciou? Que Deus é Abbá, querido Pai, e também podemos e devemos dizer que é Mãe, Mãe querida. Como Pai e Mãe, Deus quer o bem, a alegria, a felicidade, a realização plena de todos os seus filhos e filhas e nem na morte os abandona: na morte, não se cai no nada, entra-se na plenitude da Vida. Foi essa fé que moveu Jesus, realizando, por palavras e obras, o Reino de Deus, o Reino da fraternidade, da paz, da solidariedade e da verdadeira liberdade, para todos, a começar pelos mais frágeis, abandonados, pobres, aflitos, marginalizados, desprezados, desvalorizados... Para Deus, todos valem infinitamente.
Muitos acreditaram em Jesus, cada vez mais homens e mulheres, através dos primeiros discípulos,  foram acreditando nEle e, através dEle, em Deus, no Deus de Jesus. E foram surgindo comunidades cristãs fraternas no mundo inteiro, realizando o Reino de Deus. Nelas, o amor era a lei suprema: “vede como se amam”, diziam os pagãos.
Evidentemente, com o tempo, foi-se impondo a necessidade de uma organização mínima para essas comunidades, a que chamaram Igrejas, e, depois, para  a Igreja toda, espalhada pelo mundo. Aí, foi-se instalando o perigo maior: a Igreja como organização foi sucumbindo, concretamente a partir de Constantino, à tentação de tornar-se uma instituição de poder cada vez mais poderosa, dominadora, centralizada, imperial. Contrariando a vontade de Jesus que tinha dito: “sois todos irmãos”, “quem quiser ser o maior torne-se servidor de todos”, seguindo o meu exemplo: “não vim para ser servido mas para servir”, a Igreja afirmou-se como hierarquia, com duas classes: clérigos e leigos, os que mandam e os que obedecem. A situação agravou-se com a reforma gregoriana e a romanização, como se lê no famoso Dictatus Papae, do Papa Gregório VII (século XI): “A Igreja romana foi fundada só por Jesus Cristo. Por isso, só o Romano Pontífice é digno de ser chamado universal. Só ele é digno de usar insígnias imperiais; ele é o único homem cujos pés todos os príncipes beijam.” Com esta concepção imperial surgiu também a corte, o fausto, as vestimentas de luxo (ainda hoje os cardeais são chamados os purpurados) e dignidades e títulos que Jesus não reconheceria: Eminência, Excelência Reverendíssima, Monsenhor, etc. E as celebrações da Eucaristia, que deveriam ser celebrações de família e em família, foram em parte substituídas por Pontificais, nos quais há muito dos rituais das cortes dos reis... O clericalismo e o carreirismo avançaram em crescendo e foi-se impondo um hierarcocentrismo, já que, como escreveu o Papa Pio X, fora da hierarquia, dos clérigos, o resto dos fiéis tem como única missão “aceitar ser governado e obedecer”.
2. O Concílio Vaticano II foi um dos acontecimentos mais importantes (para De Gaulle, o mais importante) do século XX, ao recentrar a Igreja em Jesus e no Evangelho. Mas essa Primavera foi curta, já que rapidamente veio o Inverno.
Para retomar a Primavera, chegou o Papa Francisco, um Papa cristão e um líder político-moral global, um dos mais influentes e mais amados, se não o mais amado. Não se esqueceu dos pobres; anuncia  e faz caminhos a favor da justiça, da fraternidade e da paz, dos “três T”: tecto, terra, trabalho; combate o capitalismo desenfreado e desregulado, o ídolo que mata; é simples, humano, dá risadas, beija, consola, vai ao encontro dos desafortunados e entrega-lhes a esperança; insiste no diálogo ecuménico e inter-religioso; não condenou teólogos nem tolheu a liberdade de pensar a fé; não tem medo nem sequer da morte, porque tem fé e sabe que é amado por Deus... Anuncia por palavras e obras o Reino de Deus, a Boa Nova de Jesus, e quer que a Igreja — a Igreja são todos os baptizados — faça o mesmo. Por isso, declara que a corte, o clericalismo e o carreirismo são “a peste” do papado e da Igreja. Uma reforma funda da Cúria está a caminho, o mesmo acontecendo com o Banco do Vaticano.
Nuclear para a sua revolução são a descentralização e o caminho sinodal (caminhar juntos e em conjunto) da Igreja local e universal. Aí está o Sínodo para a Amazónia, um mini-Vaticano II,  que abre hoje em Roma e estará  activo até 27 deste mês. Dada a sua importância decisiva, pois será marca determinante deste pontificado, dedicar-lhe-ei a crónica do próximo Domingo.
É natural que Francisco tenha adversários, opositores e mesmo inimigos, dentro e fora da Igreja, que o acusam até de heresia. Forçam as acusações para que ele se demita. Mas ele não tem medo e não resigna. E também não há razões para temer um cisma. Como disse recentemente numa entrevista o cardeal alemão Walter Kasper, teólogo eminente, grande amigo e defensor de Francisco — “Eu estou encantado com este Papa. Penso que ele é o Papa preciso para este momento da história do mundo” —, “os que agitam o espantalho do cisma são pequenos grupos que estão abertamente contra o Papa, mas é preciso saber e ter em conta que são poucos, muito poucos, embora façam muito ruído”. Acrescentou: “O Papa continua a ter muitíssima força. Tem um dinamismo interior que o empurra para seguir adiante e não tem medo das críticas que circulam contra ele, inclusivamente dentro do mundo católico. Segue o seu caminho e está muito bem, mesmo fisicamente, para um homem de 82 anos. E a prova está em que continua a trabalhar incansavelmente.” E não há o perigo de voltar atrás?, perguntou o jornalista José Manuel Vidal. Resposta: “Penso que no próximo conclave não se pode eleger um Papa contrário. As pessoas não aceitariam. Não é possível a marcha atrás, não é possível. As pessoas não aceitariam isso, porque querem um Papa normal, humano e não um Papa imperial.”       
Neste contexto, deve-se sublinhar a importância da criação, ontem, de novos cardeais, incluindo o português José Tolentino Calaça de Mendonça. Com essa criação, Francisco assegura a sua sucessão. De facto, a partir de ontem, a maioria dos cardeais eleitores foram nomeados por ele próprio: há agora 128,  67 criados por ele, 42 por Bento XVI e 19 por João Paulo II. Só que é decisivo, digo eu, que não se deixem levar por lóbis (o Papa também não gosta de lóbis) e sigam o bilhete de identidade dos cristãos, descrito por Francisco na igreja de Rakovski, Bulgária, num diálogo com crianças que tinham acabado de receber a Primeira Comunhão. Disse então: “o nosso documento de identidade” é este: “Deus é nosso Pai, Jesus é nosso Irmão, a Igreja é nossa família, nós somos irmãos, a nossa lei é o amor. E o nosso apelido é cristãos:”
in DN 06.10.2019
https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/o-b-i-dos-cristaos-11374391.html
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
ESCUTAR O FUTURO
A ECOLOGIA NÃO TEM DONO: ELA DEVE SER A ATITUDE NORMAL DE TODOS OS LOCATÁRIOS DO PLANETA
Em 2015, por ocasião do Ano Santo da Misericórdia, o Papa Francisco fez um gesto inédito e que carregava consigo a visão do que pode ser o presente e o futuro do cristianismo. Oficialmente, esse ano jubilar teria início a 8 de dezembro, com a abertura da Porta Santa na Basílica de São Pedro, em Roma. Mas o Papa decidiu simbolicamente antecipá-lo, abrindo uma semana antes, numa geografia periférica e improvável, a primeira Porta Santa. Fê-lo em Bangui, a capital da República Centro-Africana, dizendo então: “Hoje Bangui torna-se a capital espiritual do mundo.” Francisco escolheu como protagonista uma região pobre, ferida pela guerra, alheia ao radar das grandes atenções, para dizer ao mundo que “todos precisamos de pedir paz, misericórdia e reconciliação”. Com o sínodo para a Amazónia, que tem o seu arranque este domingo no Vaticano, ocorreu um facto semelhante. O quilómetro zero do sínodo, e que lançou todo o seu percurso de preparação, foi Puerto Maldonado, a fronteira de ingresso na Amazónia peruana, que o Papa visitou no final de janeiro de 2018. Ele quis propositadamente sentar-se no meio dos chefes e dos anciãos dos diferentes povos indígenas para ver de perto o reflexo daquela terra. E repetiu-lhes várias vezes: “Precisamos de vos escutar.” De facto, os 7,8 milhões de quilómetros quadrados da superfície amazónica são partilhados, em termos de soberania, por nove países (Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa), mas albergam 390 povos, falantes de 240 línguas. “Um rosto plural, duma variedade infinita e de uma enorme riqueza biológica, cultural e espiritual”, como o definiu o Papa. Por isso, dirigindo-se aos representantes das populações nativas, pediu-lhes: “Nós, que não habitamos nestas terras, precisamos da vossa sabedoria e dos vossos conhecimentos para podermos penetrar — sem o destruir — no tesouro que encerra esta região, ouvindo ressoar as palavras do Senhor a Moisés: ‘Tira as tuas sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa’ (Ex 3, 5).”

O cuidado do ecossistema é fundamental para promover a dignidade de cada indivíduo e o bem da sociedade, e não há progresso autêntico sem a garantia de um vínculo entre o campo social e o ambiental

O que é o sínodo da Amazónia? Trata-se de uma sessão especial do sínodo dos bispos, com uma concentração deliberada numa área geográfica, a Pan-Amazónica, e com um manifesto objetivo pastoral que o Papa deixou expresso desde o seu primeiro anúncio: “A finalidade principal é encontrar novos caminhos para a evangelização daquela porção do povo de Deus, sobretudo dos indígenas, muitas vezes esquecidos e sem perspetiva de um futuro sereno.” Mas, como é natural, uma reflexão sobre a crise que abala aquela região torna-se relevante para a Igreja no seu conjunto e diz respeito a toda a humanidade. Nesse sentido, a Amazónia é certamente um caso específico, mas também um símbolo de tantas outras realidades e constitui uma oportunidade para relançar a consciência do cuidado urgente pela casa comum. Na frase que serve de mote a este sínodo surge a mobilizadora expressão que o Papa Francisco cunhara já nesse extraordinário texto de futuro que é a encíclica “Laudato Si”. A expressão é: “para uma ecologia integral”. Tal corresponde a uma verdadeira mudança de paradigma, pois numa ecologia integral tudo surge interligado. O cuidado do ecossistema é fundamental para promover a dignidade de cada indivíduo e o bem da sociedade, e não há progresso autêntico sem a garantia de um vínculo entre o campo social e o ambiental. De facto, a ecologia não tem dono: ela deve ser a atitude normal de todos os locatários do planeta. E pela razão óbvia que Francisco escreve: “A defesa da terra não tem outra finalidade senão a defesa da vida.”
in Semanário Expresso, 04.10.2019 p 157
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2449/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/escutar-o-futuro
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XXVII COMUM Ano C
“Se tivésseis fé como um grão de mostarda,
diríeis a esta amoreira: ‘Arranca-te daí e vai plantar-te no mar’,
e ela obedecer-vos-ia.”
Lc 17, 6
A fé “canivete suíço”?

Quantas vezes gostaríamos que a fé fosse como uma espécie “canivete suíço”, instrumento para obter prodígios, como nos habitámos a ver na série MacGyver? Não será um pouco a tentação de medir a fé pela eficácia com que se realizam coisas extraordinárias e visíveis? Como se obrigássemos Deus a satisfazer os nossos desejos e caprichos!

Jesus apresenta a fé como uma semente pequenina, grão de mostarda, a mais pequena das sementes. Que é capaz de crescer admiravelmente, enraizar na vida e virar do avesso as escolhas e os caminhos. E reconhece-a presente no coração de pessoas inesperadas e improváveis, como o centurião ou a mulher cananeia. Que lhe pedem vida para outros, um servo e uma filha, que muito amam. Como também no cego que pede visão e na mulher que toca no seu manto, anunciando-lhes que a fé os salvou.

A imagem da amoreira desenraizada e plantada no mar aponta para as obras maravilhosas da fé. É claro que importa não interpretar mal as imagens utilizadas por Jesus. As raízes mais profundas e importantes, como as da indiferença, dos ódios e rancores, são as que precisamos arrancar do íntimo de cada um e da sociedade. Alargam-se abismos e crescem montanhas entre pessoas. Preconceito, desprezo, desconhecimento ou medo são alguns nomes destes abismos e montanhas. Não é obra maravilhosa desenraizar o mal que impede proximidade, abertura e comunhão? Não são admiráveis as pontes e os caminhos de perdão e diálogo que a fé, ajudada pela esperança e pela caridade, realizam? Quem não conhece e vive com muitas dessas raízes? E vive mal ou infeliz!

A fé cristã, não é uma simples crença em verdades, mas adesão radical à pessoa e ao projecto transformador do Mestre. Uma adesão que empenha a vida toda. Os seus frutos são extraordinários, o que não significa “dobrar e manipular” a ordem natural das coisas, ou manifestar-se na “espectacularidade” de sinais “impossíveis”. Deus ama o que é simples e verdadeiro, não precisa “armar espectáculo” para convencer ninguém. Basta-lhe o nascer do sol ou uma lágrima na face de uma criança!

A fé que ganha corpo na alegria de servir é verdadeiro “canivete suíço” para transformar o mundo. Não a fé “contabilista” de méritos que espera recompensas eternas. Não a fé “utilitarista” que procura mandar na vida e “orientar” Deus aos meus desejos. Não a fé “privada” que se abala com as derrotas do clube. Mas a fé, relação viva e desacomodada com o Senhor da Vida, que traz a alegria da generosidade e a paz de fazer o maior bem possível.

in Voz da Verdade, 06.10.2019
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Igreja Católica à escuta da Amazónia, “terra que sangra”
A capacidade de intervenção do catolicismo no mundo contemporâneo joga-se também em vários fios de navalha que o Sínodo traduz e que irá debater a partir deste domingo, depois da abertura solene com a missa desta manhã de domingo, em São Pedro do Vaticano.
Uma escuta que implica reconhecer a Amazónia como “novo sujeito”, que deve escutar os povos indígenas e o grito dos povos indígenas em favor da “Mãe Terra”, que “tem sangue e está sangrando”, vítima de multinacionais e visões políticas que “cortaram as veias” da região amazónica.

Esta é a visão do documento de trabalho do Sínodo dos Bispos católicos sobre a Amazónia, convocado há dois anos pelo Papa Francisco, que neste domingo se inicia com uma missa solene, no Vaticano. Um acontecimento que é uma oportunidade histórica de a Igreja Católica se confrontar com sombras do seu passado, diagnosticar muito do seu presente e perspectivar caminhos de futuro. E fazer tudo isto em relação à sua configuração e acção, no diálogo com os povos indígenas, e na defesa económica, social e cultural das mesmas comunidades, ameaçadas por poderes políticos, financeiros e industriais poderosíssimos.

A capacidade de intervenção do catolicismo no mundo contemporâneo joga-se também em vários fios de navalha que o Sínodo traduz e que irá debater a partir deste domingo, depois da abertura solene com a missa desta manhã de domingo, em São Pedro do Vaticano.

Um “ecologismo pagão e panteísta”?
No documento que os 185 bispos participantes debaterão nos primeiros dias, escreve-se que o sínodo é “uma grande oportunidade” para a Igreja descobrir “a presença encarnada e activa de Deus” nas manifestações da criação, na espiritualidade indígena, nas organizações populares e na proposta de uma economia produtiva, sustentável e solidária que respeite a natureza.

Este parágrafo (33) do Instrumentum laboris – a designação latina do documento – resume bem algumas das grandes questões com que o catolicismo se vê confrontado: a Igreja tem de assumir um rosto indígena, como se insiste em diversas ocasiões ao longo do texto. Quer dizer, o protagonismo da sua missão deve ser dado em primeiro lugar aos autóctones, sem desfigurar a mensagem, mas convertendo estruturas, mentalidades e modos de agir da instituição, aproximando-os das populações locais. O anúncio do evangelho deve ser feito pelos povos amazónicos, a partir de dentro, e não apenas por missionários que chegam de fora, insiste também o texto.

Não por acaso, o Papa presidiu sexta-feira a uma pequena cerimónia nos jardins do Vaticano, de plantação de uma árvore que, vinda de Assis, assinalou o dia de São Francisco e como que pré-inaugurou a assembleia sinodal e na qual os indígenas presentes cantaram e rezaram nas suas línguas. Logo várias publicações conhecidas pela sua oposição ao pontificado de Francisco denunciaram o que consideram uma confusão entre o “amor da criação” e o “ecologismo pagão e panteísta”.

Não é esta uma questão de somenos: há sectores católicos que continuam a considerar qualquer aproximação nas linguagens ou modos de fazer como uma abdicação de princípios “inegociáveis”.

Mulheres e ordenação de homens casados

Neste campo, entram as duas questões mais mediáticas do Instrumentum laboris: a eventual ordenação de homens casados e a atribuição de maiores responsabilidades às mulheres no interior da estrutura eclesial – ambas integram um vasto conjunto de propostas no parágrafo 129.

A possibilidade de ordenar homens casados, oriundos das próprias comunidades, é uma medida defendida por muitos grupos católicos; mas também tem havido quem chama a atenção para o facto de, em muitas comunidades, não haver um sentido de casamento como o que a Igreja defende – o que tornaria a medida não muito eficaz.

Já quanto ao papel das mulheres, o documento diz que “elas pedem para recuperar o espaço que Jesus reservou às mulheres”. Uma ideia que segue a estratégia de Francisco: habituar as pessoas a ver mulheres em lugares de responsabilidade de modo a que se seja natural que, um dia, a comunidade católica aceite como natural o alargamento do ministério de presbítero (sacerdotal) às mulheres.

A Mãe Terra que sangra
A Amazónia é, neste momento (e desde há muito, como denunciam grupos cristãos e civis) uma “terra que sangra”. O documento (147 parágrafos em meia centena de páginas, que pode ser lido no sítio do Vaticano na Internet) é prolixo a denunciar crimes humanos, ambientais, ecológicos, económicos e políticos de que a Amazónia está a ser vítima – sempre sustentado em números e factos.

Surgem assim como naturais as propostas do Instrumentum laboris: reconhecimento de um passado eclesiástico muitas vezes conivente com estruturas opressoras, e assunção da ideia de que o território e as pessoas da Amazónia são um “lugar teológico” –traduzido da linguagem católica, são os primeiros protagonistas da salvação que o cristianismo propõe.

Ser uma voz profética, de contra-poder contra as injustiças e a dinâmica destruidora, em defesa de uma ecologia integral, que implica as pessoas e o ecossistema e apresentando uma proposta de esperança – numa curtíssima síntese, esta é a visão do documento. Dia 27, no final do Sínodo, se verá como assumirá a Igreja este rosto amazónico.
in Público 06.10.2019
https://www.publico.pt/2019/10/06/sociedade/analise/igreja-catolica-escuta-amazonia-terra-sangra-1889014

Já escreveu na sua agenda
Sábado 19 de Outubro às 15.30
Conferência do Prof. Luca Badini  do Wijngaards Institute for Catholic Reform
às 15.30 no Convento de S. Domingos
 ANEXOS

Sights and Sounds of Rome: Encounters with three new Princes of the Church


John L. Allen Jr.
EDITOR

News Analysis
ROME - It’s an over-used metaphor, but right now ecclesiastical Rome has the feel of Super Bowl week. There’s a consistory for the creation of new cardinals today, the opening of the much-anticipated Synod of Bishops on the Amazon Sunday, and the canonization of John Henry Newman one week later - not to mention a welter of counter-synods and protests among Pope Francis’s most determined critics.

Herewith, a sampling of sights and sounds from an extraordinary Roman period. I’ll be providing a daily digest as the month rolls on.

New Cardinals
The Vatican has been making several of the new cardinals in today’s consistory available to the press over the last couple of days, which gave me the opportunity Friday to spend some time with three new Princes of the Church: Sigitas Tamkevicius of Lithuania, Jean-Claude Hollerich of Luxembourg and  Fridolin Ambongo Besungu of the Democratic Republic of Congo.

Each man was impressive in his own way.

Hollerich, for example, is a remarkably gifted polyglot, serving up fluent answers to questions from reporters in French, English, Italian and even Japanese, reflecting his twenty years in Japan teaching at the Jesuit-founded Sophia University.

Only 61 years old, Hollerich also revealed himself to have a lively sense of humor. I noted that he’s one of three Jesuits in this consistory out of 13 total new red hats, and asked how he sees the Jesuit influence on Pope Francis.

“Very small, to tell you the truth,” he laughed.

“I rather see the influence of this pope on the Jesuits,” he said. “The Jesuits are a bunch of people who are very committed to Christ, but also very individualistic from time to time. I think this pope is succeeding at bringing the Jesuits back to their first mission, which is to serve the Church.”

Considered one of Francis’s most reliable allies among the European bishops, Hollerich was ready to pounce with a very “Franciscan” reply when asked what’s the biggest change now that he’s a cardinal.

“The first thing I have to change is myself,” he said.

“When you listen to the teaching of the pope, he calls us to a personal conversion, and that’s as true for cardinals and bishops as for lay women and men,” Hollerich said. “We have to undergo a conversion to Christ in order that our proclamation of the Gospel can be really heard by people.”

He joked that despite the Gospel story of the shepherd who leaves 99 sheep behind in order to go after the one who’s lost, in contemporary Europe it’s more there are 99 lost sheep and only one who’s still in the church.

“We have to go see which pastures these people are on,” Hollerich said. “What’s attracting them? Where do they see life? Every human being is striving for happiness, for meaning, in their lives, so we have to find people where they are.”

In the case of Tamkevicius, who’s over 80 and therefore among the “honorary” cardinals who can’t vote in the next conclave, it’s his personal story that’s most inspiring. He spent almost a decade in Soviet forced labor camps, not only because he was a Catholic priest but because of his unyielding defense of human rights.

Tamkevicius said Friday that what sustained him during those years in prison was prayer, especially saying Mass, which he had to do in secret because religious expressions were officially prohibited. How much the Mass meant can be glimpsed from his attitude to the kinds of work his jailers forced him to do, telling us he had various jobs at one time or another - cook, iron worker, dishwasher, and several others.

When I jokingly asked his favorite, his response was telling: “I liked washing dishes best, because there in the kitchen it was fairly easy to sneak away and say Mass.”

As footnote, I was curious as to how Tamkevicius managed to find wine for the liturgy. He explained that in the camps they would give prisoners a meal ticket, and generally in their food he’d find both bread and dried grapes. He’d pocket some of both, using the grapes to make a crude wine.

Obviously, giving the red hat to such a man is a way for Francis to honor both his personal suffering and that of the church he represents. Tamkevicius, however, was matter-of-fact about his own sacrifice.

“If a believer isn’t ready to suffer for his faith,” he said simply, “then he’s not much of a believer.”

Of the three new cardinals Friday, I confess I was most looking forward to meeting Ambongo, since he’s a Capuchin and I was educated by the order out on the high plains of Western Kansas. He becomes the second Capuchin cardinal in the world, after Sean O’Malley of Boston - though unlike O’Malley, he wears around clerical blacks rather than the trademark Capuchin brown robe.

In Congo, where the Catholic Church is the most trusted force in civil society, ecclesiastics also have to be skilled politicians. As Ambongo put it, “The Church is the one voice and one hope of our people.”

As proof of the point, his predecessor as the Archbishop of Kinshasa, Cardinal Laurent Monsengwo, was briefly the de facto head of state in the 1990s after the death of Mobutu Sese Seko, in a moment when the country was making a transition from authoritarianism to something approaching democracy. Monsengwo not only served as president of a transitional “High Council of the Republic,” but also as transitional speaker of the national parliament in 1994.

Ambongo certainly seems to have a knack for politics, especially the fine art of deflection. For example, asked a question about the viri probati, or married priests, a topic expected to come up in the Amazon synod, he launched into a soliloquy about the Amazon as the lung of the world and how many of the issues of deforestation and exploitation it faces also apply to the Congo Basin.

It was rousing, even if utterly unrelated to what he’d actually been asked.

That’s not to say, however, Ambongo is afraid of taking a stand. Far from it - like Tamkevicius he also did time in jail, in his case under President Laurent-Désiré Kabila at a time when Ambongo was the chair of a church-sponsored Justice and Peace Commission, denouncing corruption and human rights abuses.

The 59-year-old Ambongo spoke movingly of what it means to be a pastor in a place like Congo, ranked by the UN as the second-poorest country in the world.

He described, for instance, traveling by helicopter to visit one of the epicenters of the 2018 Ebola outbreak that had been abandoned by virtually everyone else, including the state. Upon arriving he discovered that the local pastor was himself infected, so Ambongo got as close to him as health workers would allow and then prayed over him. In the end, the priest recovered.

“Some people said it was a miracle,” Ambongo said, “but to me the miracle was that the Church never deserted the people … we’ve always stayed close, no matter what.”

Ambongo also spoke of how his vocation was born in a sense of admiration for a Belgian Catholic missionary who’d come to work in his part of the Congo. Watching him move heaven and earth to help his people, Ambongo said, he was inspired to join the Capuchins to try to be like that priest.

I asked if the fact of being a Capuchin has had an influence on his style of being a bishop.

“Without a doubt,” he said. “If I’m the kind of pastor I am today, that everyone knows, it’s because of my Capuchin formation. Everything I do today … the struggle for justice, for peace, for human dignity, these are things that have come to me from my formation as a Capuchin.”

Ambongo said he believes that despite being a Jesuit, the current pope is leading the Church in the style of St. Francis - “which means we’ll get along,” he quipped.

It remains to be seen what these new Princes of the Church may do with their newfound, exalted status, and what impact it may have either on the Church or their parts of the world. Based on Friday’s exchanges, however, it would seem that whatever they do, it will be interesting to watch.

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in CRUX Oct 5, 2019
https://cruxnow.com/news-analysis/2019/10/05/sights-and-sounds-of-rome-encounters-with-three-new-princes-of-the-church/

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Tolentino Mendonça cardeal: “Ser cristão é um risco, ser humano é um grande risco
Com o consistório deste sábado, Francisco indica claramente várias direcções que pretende para a reforma do catolicismo: o acolhimento dos migrantes e refugiados, o diálogo com o islão e a diversidade cultural, a abertura da Igreja à ideia da diversidade. Tolentino Mendonça diz que está pronto para ser cardeal

António Marujo no Vaticano 5 de Outubro de 2019
Um colégio de cardeais cada vez menos europeu e italiano, cada vez mais do Sul do mundo e onde cresce o número de membros preocupados com questões que saem das fronteiras da Igreja. Cardeais que se empenham em questões como o diálogo com o islão, os migrantes e refugiados, os pobres e as pessoas marginalizadas ou a dimensão de escuta e de diálogo cultural com artistas e pensadores – incluindo aqui o português José Tolentino Mendonça, que este sábado será formalmente investido pelo Papa, com outros 12 bispos, na função de cardeal, que corresponde à de conselheiro do líder da Igreja Católica.

“A cultura é um palco particular para essa dimensão do encontro, da hospitalidade do outro, da escuta”, disse ontem à tarde o arcebispo José Tolentino Mendonça, 53 anos, a um grupo de jornalistas portugueses. “Uma coisa que a cultura me ensinou é que a coisa mais importante que podemos fazer é escutar e é na escuta profunda uns dos outros que nos podemos verdadeiramente encontrar”, declarou, a propósito da sua capacidade de fazer pontes com outros sectores.
Garantindo que continua a escrever poesia – João Paulo II era Papa e escreveu poemas, lembrou –, o autor de A Noite Abre Meus Olhos disse que a poesia “é também uma chave importante para escutar Deus”. E acrescentou: “O maior dom que a poesia me deu é a necessidade profunda da escuta.”
Questionado sobre se ser cardeal o incomoda, Tolentino Mendonça respondeu: “Ser cristão é um risco, ser humano é um grande risco.” E referindo outro grande poeta, acrescentou: “Guimarães Rosa, esse autor amado da nossa língua, dizia ‘viver é perigoso’. E nós sabemos que é assim. As coisas grandes da vida são assim e todos nós vivemos, nos nossos caminhos diferentes, coisas muito perigosas: um grande amor, um filho, um encontro, um trabalho que nos apaixona.”
A diversidade é “genética” no cristianismo
Sobre o momento actual da Igreja, com as críticas de diferentes sectores ao caminho de reforma trilhado pelo Papa Francisco, Tolentino Mendonça considera que a diversidade dentro da Igreja é uma marca “genética”: “Não é um problema, a diversidade é uma riqueza. Se olharmos para a história do cristianismo, ela é feita de santos tão diferentes, de congregações religiosas, de carismas...”, disse. As diferentes sensibilidades nunca foram de deitar fora, acrescentou. Pelo contrário, são um “enriquecimento muito importante” e a Igreja é uma experiência que se encontra “não na fusão, mas numa diferença convergente”, sendo o papel do Papa o de “agregador”.
A beleza num livro de aforismos de Tolentino Mendonça
Um novo livro do novo cardeal português foi ontem posto à venda. Uma Beleza Que nos Pertence é uma colecção de aforismos e citações, retirados dos seus outros livros de ensaio e crónicas, “acerca do sentido da vida, a beleza das coisas, a presença de Deus, as dúvidas e as incertezas espirituais dos nossos dias”, segundo a nota de imprensa da editora Quetzal.
Organizado por grandes temas, o livro recolhe centenas de excertos da obra ensaística e das crónicas do bibliotecário da Santa Sé. “O grande risco é o de nos deixarmos mergulhados numa vida inautêntica, uma vida que não é vida, feita de imagens e de aparências. O que passa a contar, no fundo, é a ilusão que se projecta e que é preciso salvar a todo o custo”, diz uma das citações.
“Hoje muita gente parece mais interessada em salvar as aparências do que em salvar-se a si própria. Num vazio sempre mais amplo, a imitação acaba por obscurecer o original. E assistimos ao triunfo da sociedade do espectáculo, gerida por uma ética provisória e funcional, que não chega a tocar o homem.”
Além da obra sobre a Bíblia e da poesia, Tolentino Mendonça tem publicados vários livros com pequenas crónicas ou meditações.
Referindo-se ainda ás palavras do Papa no regresso da sua recente viagem a África (incluindo Moçambique), quando disse não ter medo de um cisma, o bibliotecário da Santa Sé afirmou: “O que o Papa disse na viagem foi ‘não tenho medo’. A mensagem não é ‘vem aí um cisma’. A mensagem é ‘eu não tenho medo’”. Socorrendo-se da sua investigação na área dos estudos bíblicos, acrescentou que a diversidade está presente “desde os primeiros textos das origens cristãs, é alguma coisa muito permanente”, exemplificando com o facto de haver quatro relatos diferentes acerca da vida de Jesus, referindo-se aos quatro evangelhos canónicos.
O Papa Francisco tem uma voz que chega longe, disse Tolentino Mendonça. Ele “tem uma autoridade muito para lá das fronteiras do mundo católico, muito na linha de uma curiosidade com os outros, de encontrar-se com o coração desarmado e de escutar até ao fim a pessoa”.
Por isso, colocado perante a possibilidade de um dia ser ele próprio a vestir de branco, o novo cardeal disse que entrar num conclave “é tão perigoso como sair dele”. “O importante é convergir, para o espírito de comunhão da Igreja, interpretar os sinais dos tempos e [deixar] que o Espírito Santo fale. Mas não falemos de conclave. Vida longa ao Papa Francisco”, disse, para insistir: “Vida longa ao Papa Francisco e a todos os papas que virão.”
Nascido no Machico (Madeira), José Tolentino Mendonça foi para o seminário aos 11 anos. Depois de ordenado padre doutorou-se em estudos bíblicos, área em que já publicou vários ensaios – nomeadamente A Construção de Jesus e Leitura Infinita. Ao mesmo tempo, é reconhecido como uma das vozes mais originais da poesia portuguesa contemporânea e vários dos seus livros de poemas foram premiados.
Em 2018, foi convidado a orientar os exercícios espirituais da Quaresma para o Papa e a Cúria Romana, o que deu origem ao livro Elogio da Sede, outra obra marcante da sua produção. Agora, pouco mais de um ano depois da sua nomeação como arcebispo e bibliotecário da Santa Sé, o Papa anunciou que o nomearia cardeal, o que o surpreendeu, aceitando “uma missão para a qual antes não [foi] escutado”. Por isso, sente-se com “uma humildade muito grande e um desprendimento no sentido de dizer ‘sou chamado, estou aqui com o que sou’, venho arregaçar as mangas e servir”. “A pergunta que repito no meu coração é neste momento mesmo dirigida a Deus: ‘O que é que queres de mim, o que é que queres que eu faça?”, acrescentou.
As direcções de uma reforma
Quando, a partir das 16h deste sábado, em Roma (menos uma hora em Lisboa), o Papa entregar aos 13 novos cardeais as insígnias representativas da sua função (barrete, anel e bula), estará a dar vários sinais. Desde logo, as escolhas do Papa destes nomes reflectem a preocupação de Francisco em ter conselheiros oriundos de todo o mundo: o Colégio Cardinalício passará a contar com 225 cardeais (incluindo os 124 que podem votar num futuro conclave de eleição de um papa, caso ele se realizasse daqui a poucos dias), oriundos de 90 países representados. Nunca a universalidade do catolicismo (uma redundância, já que dizer “católico” significa “universal”) foi tão verdadeira neste organismo de consulta do Papa.
Com esta nomeação (uma palavra que, com Francisco, não é casual – ver caixa), passará a haver 66 cardeais escolhidos por Bergoglio, além de 42 nomeados por Bento XVI e 16 por João Paulo II. O que não quer dizer tudo, mas significa muito, para um próximo conclave.
Noutro âmbito, o Papa quer significar que considera muito importantes o diálogo cultural, como no caso de Tolentino Mendonça, e áreas como o diálogo inter-religioso e o apoio a migrantes e refugiados ou a pessoas pobres e marginalizadas. No caso do diálogo inter-religioso, isso traduz-se com as escolhas dos actual e antigo presidentes do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso, Miguel Ángel Guixot, missionário comboniano, e Michael Louis Fitzgerald, que foi núncio no Egipto; e ainda do salesiano espanhol Cristóbal Romero, arcebispo de Rabat (Marrocos), reconhecido pelo seu papel de aproximação ao islão numa sociedade esmagadoramente muçulmana, e que também tem feito grandes esforços para o acolhimento de migrantes e refugiados da África subsariana.
No apoio aos refugiados, também se destaca o até ontem padre checo Michael Czerny, jesuíta checo e responsável da secção dos Migrantes e Refugiados no Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. A cruz de Czerny, que ontem á tarde foi ordenado bispo, é de madeira oriunda de um barco usado por migrantes para atravessar o Mediterrâneo, rumo a Lampedusa, recordou a Ecclesia.
A linguagem que traduz a reforma de Francisco
Não é por acaso que Francisco fala da nomeação de cardeais, numa Igreja em que, durante séculos, o Papa os “criava”. Trata-se de uma nomeação, disse ele ao anunciar os diferentes nomes para os diferentes consistórios. Uma piada eclesiástica dizia que nesse momento o líder da Igreja se assemelhava ao Deus criador – quando se limitava a fazer uma nomeação e a entregar os três símbolos da função: anel, barrete e bula.
Tão pouco é casual que o Papa não fale da “elevação” de alguém a cardeal, outra palavra muito usada por estes dias, ou que insista na ideia de que o serviço e não o poder é a ideia essencial do cargo, aliás repetindo já ideias fortes de Bento XVI nos últimos tempos do seu pontificado.
A pompa com que os cardeais eram (e ainda são) tratados, as regras protocolares que subsistem em muitas cerimónias do Vaticano, com uma rígida hierarquia e insistindo mais na formalidade, nos ritos, em regras estritas de vestuário e nos títulos mostram que a reforma de Francisco, que muitos crentes desejam acelerar, ainda levará muito tempo. Até porque outros insistem na importância desses factores, considerando-os fundamentais e fazendo deles alguns dos principais argumentos da sua oposição a Francisco.
A par do apoio a refugiados, o guatemalteco Alvaro Leonel Imeri dedica muita da sua acção aos mais pobres e excluídos. Também os arcebispos do Luxemburgo, Jean-Claude Höllerich, que esteve muitos anos no Japão, e de Bolonha, Matteo Zuppi (mediador do primeiro acordo de paz de Moçambique) se incluem no lote dos que actuam nessas áreas consideradas prioritárias pelo Papa.
Das periferias geográficas vêm o cubano Juan García Rodríguez (Havana), o congolês Fridolin Ambongo Besungu (Kinshasa), e o indonésio Ignatius Hardjoatmodjo (Jacarta), líder católico no maior país muçulmano do mundo.
Com o consistório deste sábado, Francisco indica claramente várias direcções que pretende para a reforma do catolicismo.
Uma azinheira de Assis, no Vaticano, pela Amazónia
Uma azinheira plantada em terra de vários lugares do mundo, nos jardins do Vaticano, numa cerimónia presidida pelo Papa e com a presença de uma delegação de indígenas da Amazónia, que rezou e cantou nas suas línguas, assinalou simbolicamente o início do Sínodo dos Bispos, que neste domingo começa em Roma. Ao mesmo tempo, homenageou as pessoas mortas em defesa da floresta amazónica.
Oriunda de Assis, a cidade de São Francisco – patrono dos ecologistas e inspirador quer do nome do Papa quer da encíclica Laudato Si’, dedicada ao ambiente –, a azinheira assinalou a importância que o Papa atribui à realização do Sínodo e à situação social, económica e ecológica da região amazónica.
Francisco quis registar ainda o dia consagrado pela Igreja Católica a Francisco de Assis e encerrar o “Tempo da Criação”, iniciativa conjunta de várias igrejas cristãs durante as últimas semanas, destinada a sensibilizar para as questões ambientais e da “casa comum”.
*jornalista do 7Margens/especial para o PÚBLICO
in Público, 05.10.2019


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