ANO
NOVO PARA A RELIGIÃO?
Frei Bento Domingues, O.P.
A cooperação entre
ciência, ética, religião e estética pode criar um clima espiritual que nos
defende de todos os simplismos, irmãos de todos os fundamentalismos
1. O ser
humano é um animal indeciso. No animal, os instintos e o mundo ao qual estão
adaptados, ou são adaptados, formam um todo. Como escreveu Roger Garaudy[i],
o animal é um feixe de respostas. O ser humano é um feixe de perguntas. Não se
adapta apenas ao meio, transforma-o. Umas vezes para bem outras para mal.
Nunca está em equilíbrio
perfeito com a natureza. A lógica interna do seu mundo em crescimento,
construído e governado pela ciência e pela técnica, leva-nos a pensar e agir
como se todos os nossos problemas pudessem ser resolvidos pela ciência e pela
técnica. Não é verdade. Mas só a estupidez pode dizer mal da investigação
científica e das transformações tecnológicas. A sabedoria mais elementar
descobre as suas espantosas vantagens e os seus quotidianos limites. É miopia
esquecer que nenhuma actividade clarividente pode dispensar a interrogação
filosófica, as linguagens da beleza e as exigências da ética.
Não é impossível descobrir, por outro lado, que não estamos apenas em
face de problemas e enigmas que mais cedo ou mais tarde poderão encontrar
soluções. Em todos os tempos e lugares há testemunhos de pessoas que
despertaram para o mistério sem nome
que resiste a todas definições e classificações, um não sei quê, uma noite luminosa que tudo envolve e sem a qual
tudo se banaliza ou enlouquece. O fundamental na atitude religiosa é o espírito
de atenção, de releitura constante do mistério do mundo. Isto nada tem a ver
com o irracionalismo, pai da violência, seja em que domínio for. A própria religião,
sem a vigilância ética, pode tornar-se uma abominação.
Dada a complexidade de tudo o que ficou dito, parece-me que a
cooperação entre ciência, ética, religião e estética pode criar um clima
espiritual que nos defende de todos os simplismos, irmãos de todos os
fundamentalismos. Como diz o físico Antonio Rañada os fundamentalistas
religiosos e os ateus militantes têm algo em comum: acreditam que a geografia
do mundo cabe toda num só mapa, seja na interpretação intransigente de um livro
sagrado ou nos dados de uma ciência exclusivista e totalizadora.
2. Na
organização do calendário litúrgico, este Domingo celebra o Baptismo de Jesus
banhado num clima de enigmas. Há razões para julgar que lhe assiste alguma base
histórica, apresentada numa interpretação de continuidade e ruptura com o
profetismo do Antigo Testamento.
Não convinha nada que Jesus
fosse baptizado por João que tinha discípulos que sobreviveram ao seu
assassinato e ao de Jesus. Estes poderiam sempre dizer aos seguidores de
Cristo: foi o nosso mestre que baptizou o vosso e não o contrário. De facto,
nos diferentes Evangelhos existe uma vontade de mostrar que Jesus exaltou a
figura de João Baptista e este a de mostrar que não era ele o messias. Apenas
lhe preparava o caminho. A narrativa de S. Lucas é comovente. Por um lado, faz
de Jesus um discípulo de João, por outro, mostra a ruptura com o seu antigo
mestre[ii].
O que terá acontecido? João era o símbolo da necessidade de reformar a
religião de Israel, mas ainda na linha austera dos profetas. A sua pregação não
se afastava de um rigor moralista carregado de ameaças. Jesus teve uma
experiência espiritual que o obrigou a romper com esse mundo. Diz o texto que
Jesus baptizado entrou em oração. O resultado exprime a própria personalidade
do Nazareno: Ele é a terra aberta ao céu e o céu aberto à terra, aberto a todos
os mundos. O Espírito de Deus, ao banhar o seu espírito, declara que Ele é um
filho muito amado. Jesus sai dessa experiência com uma missão: mostrar que toda
a gente, a começar pela mais desclassificada, sob o ponto de vista religioso,
moral e material, é amada por Deus e chamada a viver do mesmo Espírito:
Espírito de Deus, Espírito de Cristo, Espírito de renovação da Igreja, Espírito
de transformação do mundo, numa imensa pluralidade de carismas e de caminhos. É
um Espírito que solicita a nossa inteligência e a nossa vontade, mas que nunca
se impõe à nossa liberdade.
3. Com
este novo ano surgiu um novo jornal online.
Chama-se 7Margens. Pretende
preencher uma lacuna. António Marujo e Jorge Wemans explicam o projecto: A
partir de hoje tem à sua disposição informação, notícias, alertas, opinião e
comentário sobre as mais diversas buscas espirituais que marcam o nosso tempo,
desde as acolhidas e promovidas pelas religiões estabelecidas, até àquelas sem
nome protagonizadas por pessoas de todas as formações.
Em setemargens.com encontrará
tudo isto, editado e orientado por critérios jornalísticos. Independente
de qualquer instituição, religiosa ou outra, setemargens.com rege-se
por princípios profissionais e tem como objetivo tratar informação relativa ao
fenómeno religioso, entendido na maior abrangência possível do conceito. Deste
ponto de vista, é um projeto inédito no mundo que fala português.
A entrevista a Pedro Abrunhosa a propósito do seu novo disco, Espiritual, foi uma boa escolha.
Recorto uma passagem que tem a ver com o Espírito deste Domingo e desta
crónica: “ Vivem-se momentos de ausência de mistério, momentos de pura
fisicalidade, de aparência, muita aparência, de “eu sou o que tenho”, “eu sou o
que mostro que tenho”. Às vezes, nem é o que tenho, se eu mostrar as pessoas
vão deduzir que tenho. Logo, sou aquilo que mostro. E isso faz com que se viva
numa feira de vaidade, que me faz lembrar muito os vendilhões do templo, faz-me
lembrar muito este abastardamento dos valores humanos, que é uma das falências
da decadência. Os impérios começam a decair exactamente por isso, por uma certa
febre da vaidade da aparência”.
Não posso esconder a alegria que este acontecimento me provocou. Sem
pretender constituir uma alternativa ao que existe na Igreja, vai certamente
viajar por paisagens que ela ou ignora ou faz que ignora. Serão novos olhos a
ver o que a cegueira dos grandes meios de comunicação insiste em ignorar.
Outra carência do nosso catolicismo é a falta de espírito de interrogação
filosófica, sem a qual a teologia adormece. Em Coimbra, lembrando José Dias da
Silva, o Instituto Universitário Justiça e Paz vai revisitar, a várias vozes, a
Doutrina Social da Igreja e as suas incidências na intervenção política.
Em Lisboa, na Capela do Rato, vários nomes conhecidos da cultura portuguesa
vão interrogar a Filosofia, a Literatura, a Espiritualidade.
Não sou jornalista, mas desejo que este novo ano nos traga muitas e boas
surpresas.
[i]
Cf Palavra de Homem, D Quixote,
Lisboa, 1975
[ii]
Lc 3, 15-22
in Público
13. 01. 2019
www.publico.pt/2019/01/13/sociedade/opiniao/ano-novo-religiao-1857443
A A A A A A A A A A A A
A Igreja e o sexo
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Na sua obsessão pelo sexo, a
Igreja não pode reclamar-se de Jesus. De facto, segundo os Evangelhos, Jesus
raramente falou de sexo e, quando o fez, foi provocado por perguntas que lhe
fizeram. E, aí, apelou para o amor, a fidelidade no casal e a igualdade do
homem e da mulher. Apaixonado pela felicidade das pessoas, participou em festas
de casamento e até fez com que aparecesse o vinho que faltava: 600 litros! Ele
próprio celibatário, não impôs o celibato: São Pedro, por exemplo, era casado,
e o celibato obrigatório para os padres na Igreja do Ocidente só começou a
impor-se no século XI, com o Papa Gregório VII.
O que envenenou a relação da
Igreja com a sexualidade foi, essencialmente, a influência perniciosa da gnose,
que, contra o cristianismo autêntico, desprezava a matéria e o corpo. Depois,
Santo Agostinho, a partir de uma experiência pessoal negativa da sexualidade e
de uma exegese errada – ele seguiu a tradução latina de um passo célebre da
Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 5, versículo 12: Adão, “no qual” todos
pecaram, quando o original grego diz “porque” todos pecaram --, formulou, como
solução para o problema do mal, a doutrina do pecado original. E a questão é
que esse pecado foi entendido não como o primeiro de todos os pecados – todos
os seres humanos são pecadores --, mas
como um pecado herdado de Adão e transmitido por geração, portanto, no acto
sexual. Finalmente, com a reforma
gregoriana, foi-se erguendo a tríplice coluna sobre que assenta, segundo Hans
Küng, o paradigma católico-romano: papismo (poder centrado no Papa),
celibatismo (celibato obrigatório por lei para os padres), marianismo (devoção
a Nossa Senhora como compensação).
Como se determinou que tudo o
que se refere ao sexo é por princípio matéria grave e como, por outro lado, não
há ninguém que não tenha pelo menos pensamentos relacionados com o sexo e só o
sacerdote ou o bispo podem perdoar os pecados, a confissão acabou por tornar-se
não um espaço de reconciliação e paz, mas tantas vezes de opressão, e raramente
uma instituição acabou por deter tanto poder sobre as consciências, criando
infindos complexos e fardos de culpabilização. Quando se lê os manuais dos
confessores e todos aqueles interrogatórios inquisitoriais, quase reduzidos ao
campo sexual, percebe-se que muitos tenham começado a abandonar a Igreja por
causa da confissão, que consideravam ofensiva dos direitos humanos.
No universo sexual, que, como
escreve Miguel Oliveira da Silva, continua a ser “um imenso, incómodo e
multifacetado mistério”, vale tudo? É claro que não, reconhecendo o catedrático
de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa que “a
sociedade ocidental vive um profundo e grave vazio ético em matéria de
sexualidade, que a múltipla oferta de uma sexualidade por vezes devassada sem pudor
na praça pública e passível de excessos não consegue minimamente preencher – ao
contrário”. Chegou-se à degradação boçal da prostituição nos e dos média, digo
eu. Uma sexualidade degradada e desumanizante, na busca exclusiva do prazer
venéreo e utilizando o outro como simples meio!
De qualquer forma, a Igreja
precisa de reconciliar-se com o mundo e a ciência, o corpo e a sexualidade. Mas
enquanto se mantiver a lei do celibato obrigatório não estará todo o discurso
eclesiástico sobre o tema debaixo do fogo da suspeita? O Cardeal Carlo Martini,
exegeta bíblico eminente e antigo arcebispo de Milão, interrogou precisamente
esta lei do celibato obrigatório e, depois de considerar os estragos da
encíclica Humanae Vitae e que “a solidão da decisão” por parte do Papa Paulo
VI, depois de ter retirado a discussão do tema aos padres conciliares, não foi
certamente “um pressuposto favorável” para tratar a questão da sexualidade e da
família, reconheceu que os anos de distância da sua publicação “nos poderiam
permitir um novo olhar”. “É um sinal de grandeza e auto-consciência alguém
confessar os seus erros e visão limitada.” Assim, Martini pensava que um novo
Papa “talvez não retire a encíclica, mas pode escrever uma nova e ir mais
longe. É legítimo o desejo de que o
Magistério diga algo de positivo sobre o tema da sexualidade.” Muitos esperam
uma palavra de orientação sobre o corpo, o casamento e a família. “Procuramos
um caminho para, de modo fiável, falar sobre o casamento, o controlo da
natalidade, a procriação medicamente assistida, a contracepção.”
Sobre estes e outros temas é
o que tem procurado fazer o Papa Francisco. Leia-se, por exemplo, a exortação
Amoris Laetitia, “A Alegria do Amor”, precisamente sobre uma nova visão da
família e da sexualidade, que, para ser verdadeiramente humana, tem de envolver
o biológico, o afectivo, a ternura, o amor, o espiritual.
E chamo a atenção para a
elegância com que tratou o tema num diálogo recente com um grupo de jovens da
Diocese de Grenoble. Duas jovens interrogaram-no precisamente sobre a
sexualidade, perguntando concretamente se o facto de pertencerem à primeira
geração que ousa falar abertamente destes temas não explica as incompreensões e
o silêncio embaraçado dos mais velhos. Francisco respondeu: “A sexualidade, o sexo,
é um presente de Deus. Não é de modo nenhum um tabu. É um dom de Deus, um
presente que o Senhor nos dá. Tem dois objectivos: amar-se e gerar vida. É uma
paixão, e um amor apaixonado. O verdadeiro amor é apaixonado. O amor entre um
homem e uma mulher, quando é apaixonado, leva-te a dar a vida para sempre e a
dá-la com o corpo e a alma”, declarou o Papa com força.
“Quando Deus criou o homem e
a mulher, a Bíblia diz que os dois são a imagem e a semelhança de Deus. Os
dois, não apenas Adão ou só Eva, mas os dois em conjunto”, insistiu. “E Jesus
vai mais além e diz: o homem e também a mulher deixarão o seu pai e a sua mãe e
unir-se-ão e serão... uma só pessoa?... uma só identidade?... Uma só fé no
casamento?... Uma só carne! Esta é a grandeza da sexualidade. E é assim que se
deve falar da sexualidade. E deve-se viver a sexualidade assim, nesta dimensão
do amor entre homem e mulher por toda a vida. É verdade que as nossas
fraquezas, as nossas quedas espirituais, nos levam a usar a sexualidade fora
deste caminho tão belo do amor entre o homem e a mulher. Mas são quedas, como
todos os pecados. A mentira, a cólera são pecados capitais, mas isso não é a
sexualidade do amor: é a sexualidade coisificada, desligada do amor e utilizada
para o divertimento”, explicou.
Francisco sublinhou ainda o
paradoxo que consiste no facto de a mais bela dimensão da criação divina ser
também “a mais atacada pela mundanidade, pelo espírito do mal”. A pornografia,
por exemplo, depende de uma “indústria da sexualidade desligada do amor”. “É
uma degeneração em relação ao nível em que Deus a colocou, e faz-se muito
dinheiro com este comércio. Mas a sexualidade é grande: cultivai a vossa
dimensão sexual, a vossa identidade sexual. Cultivai-a bem. E preparai-a para o
amor, para inseri-la neste amor que vos acompanhará durante toda a vida”.
Por outro lado, mesmo se o
Documento final do recente Sínodo dos bispos sobre os jovens e com os jovens
ficou aquém das expectativas, no “Instrumentum laboris”, texto de preparação e
de base para o debate, reconhecia-se que “muitos jovens católicos não seguem as
indicações da moral sexual da Igreja”, e que há “temas controversos” como os
anticonceptivos, a homossexualidade, o aborto, o casamento ou a questão de
género. O texto, apresentado pelo cardeal Baldisseri, aceitava que é preciso
debater “abertamente e sem preconceitos”
esses e outros temas, do desemprego às novas tecnologias, passando pelos
desafios das migrações, o trabalho precário, as drogas, o papel da mulher.
Entretanto, nesse Sínodo, houve vozes como a do bispo auxiliar de Lyon,
Emmanuel Gobilliard, que abriu a porta do Sínodo aos LGBT: “Quem sou eu para
excluí-los?” Francisco disse sempre que o problema não é a homossexualidade,
mas “o lóbi gay”, como outros lóbis. Mais recentemente, o cardeal Reinhard
Marx, arcebispo de Munique e Presidente da Conferência Episcopal Alemã,
reclamou uma revisão do celibato obrigatório: “Estou convencido de que o grande
impulso de renovação do Vaticano II não está a avançar nem a ser entendido na
sua profundidade.”
Entretanto, a Igreja carrega
com essa chaga que é a pedofilia por parte do clero. O Papa Francisco está
disposto a usar mão firme nesse combate. No discurso natalício à Cúria, depois
de ter reafirmado que mesmo um só caso de abuso seria “uma monstruosidade por
si mesmo”, declarou: “Aos que abusam dos menores quero dizer-lhes:
convertei-vos e entregai-vos à justiça humana, e preparai-vos para a justiça
divina”. Agradeceu aos jornalistas “que procuraram desmascarar estes lobos e
dar voz às vítimas”. A Igreja levará à justiça “seja quem for” que tenha
cometido abusos. E convocou os Presidentes das Conferências Episcopais do mundo
inteiro para uma reunião anti-abusos, que enfrente esta chaga dolorosíssima.
Como disse o director editorial do Dicastério (Ministério) para a Comunicação
do Vaticano, Andrea Tornelli: “O objectivo é que todos tenham absolutamente
claro o que se deve fazer (e não fazer) frente aos abusos”. Trata-se de
“transformar os erros cometidos em oportunidades para erradicar” a praga dos
abusos “não só do corpo da Igreja, mas também da sociedade”.
in DN
12.01.2019
A A A A A A A A A A A A
A esperança digna de espanto
P. José Tolentino Mendonça
NÃO PODEMOS VIVER SEM ESPERANÇA, MAS ESTA NÃO É UMA TAREFA ESTÁVEL
E FÁCIL. MUITO PELO CONTRÁRIO
Os gregos descreviam a
experiência humana partindo de três dimensões. Trata-se de uma visão ancestral,
mas que podemos acompanhar ainda. A primeira dimensão seria a da memória
(mnemis), que fornece a base primária daquele conhecimento que torna viável a
vida. Sem a memória teríamos de reaprender tudo, a cada instante. É por ela,
por exemplo, que dormimos e, no dia seguinte, somos capazes de andar, capazes
de comer, de reconhecer o mundo a nosso lado, de saber quem somos. Se a todo o
momento tivéssemos de perguntar, “como se caminha?”, “como se fala?”, “como se
ama?”, a vida emergiria lentíssima e, certamente, muito diversa. Outra dimensão
fundamental para os gregos seria a aesthesis, isto é, a perceção sensível do
presente. A nossa experiência concretiza-se numa prática sensorial: podemos
ver, ouvir, cheirar, tocar, sentir. A vida é tátil, é isto de que nos podemos
aproximar, é o que trazemos entre mãos. Mas atenção: a vida não se resume
apenas à memória e ao presente que apreendemos com os sentidos. Os antigos
nomeavam uma ulterior e necessária dimensão, que chamavam esperança (elpis),
explicada como a consciência de que havia um além, um amanhã. A ideia de um
futuro foi sempre tida também como determinante, mesmo se para os gregos a
esperança era uma coisa na qual não se podia propriamente confiar. Píndaro
explicita-o bem quando relata que, no princípio, os deuses colocaram todas as
coisas boas para o homem dentro de um vaso e lhe puseram uma tampa, com a
proibição de removê-la. Mas o homem avizinhou-se do vaso e destapou-o. Quando
fez isso, todas as coisas saíram de repente e o único bem que ficou dentro foi
a esperança, a esperança daquelas coisas perdidas.
Creio que daqui se extrai uma
dupla conclusão: não podemos viver sem esperança, mas esta não é uma tarefa
estável e fácil. Muito pelo contrário. No extraordinário poema que lhe dedicou
Charles Péguy (e que Armando Silva Carvalho traduziu magnificamente para a
nossa língua) garante-se que a única realidade que deixa o próprio Deus
espantado, em relação ao homem, é a esperança: “Não é a fé que me espanta.../ A
caridade, diz também Deus, essa não me espanta.../ Mas a esperança, diz Deus,
essa sim causa-me espanto./ Essa sim, é digna de espanto./ Que essas pobres
crianças vejam como tudo acontece/ E acreditem que amanhã será melhor./ Que
elas vejam o que se passa hoje e acreditem/ que amanhã de manhã será melhor./
Isso é espantoso e essa é a maior maravilha da nossa graça./ E isso a mim mesmo
me espanta.”
A ideia de um futuro foi
sempre tida também como determinante, mesmo se, para os gregos, a esperança era
uma coisa na qual não se podia propriamente confiar
A esperança não é um lenitivo
que adormece a dor até que ganhemos coragem para tratar a sério da vida, mas
uma força que já hoje nos motiva para a transformação da história. A esperança
não é um adiamento, mas um compromisso. Não é uma abstração idealizada, mas um
dinamismo concreto, uma laboriosidade, um fazer. Precisamos de uma educação
para a esperança.
Sobre o seu significado
profundo, e de como se pratica, há aquela história do velho monge que se
propunha alcançar o cimo de uma montanha e que, numa das etapas iniciais do
caminho, pernoita numa estalagem. O estalajadeiro repara na sua fragilidade e
tenta dissuadi-lo, enumerando os perigos que o espreitam, e que certamente
acabarão por vencê-lo. O monge, porém, respondeu: “Tenho a certeza de que
chegarei lá.” “E como é que um homem fraco como tu pode ter semelhante certeza?
Para mais, vem aí um inverno duro.” O ancião retorquiu: “Coloquei lá em cima o
meu coração e por isso sei que, mesmo assim inseguros, os meus passos hão de
chegar lá.”
in Expresso, 12.01.2019
leitor.expresso.pt/semanario/semanario2411/html/revista-e/que-coisas-sao-as-nuvens/A-esperanca-digna-de-espanto
A A A A A A A A A A A A
À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
BAPTISMO DO SENHOR Ano C
“Quando todo o povo recebeu o baptismo,
Jesus também foi baptizado.”
Lc 3, 21
Baptizado,
hoje
Durante alguns anos julguei que me lembrava do
meu baptismo. Do padre e dos meus pais, da pia e da água a cair na minha
cabeça, da igreja no centro da cidade do Lobito. É claro que não podia lembrar
o que me aconteceu com dois meses de vida, mas foi o baptismo do meu irmão ou
dum primo, pelos dois ou três anos, que em mim ficou gravado. A fotografia
enviada aos meus avós mostra um bebé num lindo vestido, num banco do fotógrafo
Quitos! Poucos lembramos o dia do nosso baptismo, mas isso não tira força ao
que aí começou.
Descobri mais tarde a diferença entre dizer “fui
baptizado” e dizer “sou baptizado”. É a surpresa do encontro com Jesus Cristo
vivo, na diversidade da sua presença, especialmente em testemunhas cheias do
Espírito Santo. E a descoberta da Igreja, não como clube de perfeitos mas
comunidade de pessoas, frágeis e admiráveis, Igreja santa e pecadora, a
escutar, a tentar viver, e a espalhar as palavras vivas do Senhor Jesus. E
continuo a entrar no baptismo como fonte de vida e graça que não se esgota. Não
é algo simplesmente do passado, que uma fotografia e um registo assinalam. É do
presente, e vai ser do futuro, na surpresa de saborear o que é ser filho amado
de Deus, com irmãos de toda a parte. Na alegria de ser padre lembro o que dizia
Santo Agostinho: Para vós, sou Bispo; convosco sou cristão. Nome de serviço, o
primeiro; de salvação, o segundo.”
Para além de um confronto entre baptismo de
crianças ou baptismo de adultos, é fundamental a autenticidade e a verdade com
que ele é uma decisão importante para os pais de uma criança e para os
próprios. Uma decisão aprofundada no conhecimento de Cristo, uma opção de vida
renovada pelo Evangelho, um futuro empenhado na transformação do mundo. É
grande ainda a força da tradição esvaziada de sentido, e da festa, sem caminho
antes nem depois, no baptismo de crianças. Falta um dinamismo maior na proposta
da fé aos adultos e um acolhimento feliz de quem duvida e faz perguntas! É
preciso passar do banho que facilmente seca, para a torrente que leva vida e
floresce os desertos!
Baptismo tem sabor de princípio! Fala mais do
presente e do futuro. Revela o amor primeiro de Deus, que não está dependente
dos nossos sucessos, mas se dá todo, e em cada momento. Tantas vezes mal-amados
e desencantados por amores tipo “toma lá, dá cá”, é difícil acreditarmos que
somos “filhos muito amados”. Deus não espera os nossos “melhores resultados”
para um prémio proporcional, pois Ele “ama sem medida”, parafraseando Santo
Agostinho: “A medida do amor é amar sem medida”. Nunca é tarde para viver a
alegria de ser baptizado!
in Voz da Verdade 13.01.2019
A A A A A A A A A A A A
Pope's preacher goes
back to basics in talks to bishops
Jan 11, 2019
by Tom Roberts Accountability
Capuchin Fr. Raniero Cantalamessa, the official
preacher of the papal household, delivers the homily to U.S. bishops during
Mass Jan. 3 in the Chapel of the Immaculate Conception at Mundelein Seminary
during the bishops' Jan. 2-8 retreat at the University of St. Mary of the Lake
in Illinois, near Chicago. (CNS/Bob Roller)
Editor's note: The text
of the talks delivered by Capuchin Fr. Raniero Cantalamessa, preacher of the
papal household, to the U.S. bishops during their Jan. 2-8 retreat at Mundelein
Seminary, outside of Chicago, are available at this link.
Texts of the 11 talks delivered to the U.S. bishops
who gathered for a week's retreat at Mundelein Seminary outside of Chicago show
a heavy emphasis on traditional themes, a robust defense of celibacy, a severe
criticism of attachment to money and an endorsement of new lay movements as a
replacement for declining numbers of clerics.
NCR obtained the texts, 84 single-spaced pages, and
they can be seen in their entirety here. They were delivered during the Jan.
2-8 retreat by Capuchin Fr. Raniero Cantalamessa, preacher of the papal
household.
The talks contain only passing reference to the sex
abuse scandal that was the reason behind the unusual retreat, suggested by Pope
Francis, and the omission was intentional.
"I am not going to talk about pedophilia or give
advice about eventual solutions," Cantalamessa said at the outset. "That
is not my task and I would not have the competence to do it. This is a time for
taking a break, as the psalmist says 'away from the strife of tongues' (Ps
31:21), and to listen to the voice of the Lord of the Church. I am convinced
that this approach is the only way to get to the root issues that the Church is
facing, which are both different and deeper than the issues that usually come
to mind." In fact, in one brief mention of the scandal, the preacher sees
a positive result in the humbling of the church.
Cantalamessa begins with a fairly basic presentation
on the need for a personal relationship with Jesus and prayer "as the
indispensable means for cultivating a relationship with Jesus." In the
talk he draws a distinction between the "'public Jesus who casts out
demons, preaches the kingdom, works miracles, and is involved in controversies;
and on the other hand, there's the 'private' Jesus who is almost hidden between
the lines of the gospel. This latter Jesus is the praying Jesus."
He urged the bishops to "rethink … the relationship between prayer and action" moving
"beyond juxtaposition to
subordination [italics in original]. Juxtaposition is when we pray
first, and then we act. Subordination, on the other hand, is when we pray
first, and then we act," acting on the basis of "what emerges from
our prayer." He said the apostles and saints "prayed in order to know
what to do," not just before doing something.
Cantalamessa mentions the scandal for the first time
in the second talk and says that while the clergy sex abuse scandals
"rightly" overwhelm the church "we fail to see how much more
gospel-like and humble the Church of Christ has become, how more free from
worldly power." Indeed, the preacher would term this period the
"'golden age' compared to past centuries when many bishops were more
concerned about governing their territory than caring for the flock. In the
past, to be a bishop was an honor; today it is a burden."
In the same talk he emphasized the importance of the
relationship between bishops and priests, urging bishops to spend time with
priests "even at the expense of other engagements."
In a later talk, he said he believed he was inspired
to do a reflection on the agony of Jesus in the Garden of Gethsemane
"because, due to the scandals of pedophilia, many bishops in the Catholic
church, starting with the Bishop of Rome, are experiencing right now exactly
what Jesus experienced in Gethsemane. As we have seen, the ultimate cause of
his suffering in the Garden of Olives consisted in taking upon himself sins
that he had not committed himself and in bearing responsibility for them in
front of the Father. There is a redemptive and expiatory power in doing
this."
In the third talk, "To Be With Christ Means to
Share His Celibacy for the Kingdom," Cantalamessa equates celibacy with
"a more radical way of sharing in his mission" that Jesus revealed to
his disciples. "For Catholic clergy," he said, "this is no
longer an option but an integral part of our vocation." At the same time,
he said, "Whether because of all the fuss surrounding it, or the thought
that perhaps one day — who knows? — church law might change, celibacy today is
not experienced with a sense of serenity."
Celibacy, he said, will always "be part of
Christ's design." Even if mandatory celibacy is abolished, he said,
"celibacy itself, that is, the possibility of choosing to follow Jesus in this
radical and beautiful way, can never be eradicated." He labeled as false
"the claim that celibacy as a state of life is contrary to nature and
hinders people from fully being themselves. He claims that such a view,
expounded by "founders of modern psychology, was based on a materialistic
and atheistic view of the human being."
He revisited debates of the past about whether
virginity-celibacy constituted a "more 'perfect' state than marriage. I
believe that celibacy is not ontologically more perfect: each state of life is
perfect for the person who is called to it. Virginity-celibacy is, however,
eschatologically more advanced in the sense that it more clearly approximates
the definitive state toward which we are all journeying. Saint Cyprian, a married
bishop, wrote to the first Christian virgins, 'What we shall be, already you have begun to be.' " [Italics
in the original.]
Throughout history, he writes, "the proclamation
of the gospel and the church's mission have in large part rested on the
shoulders" of men and women who have renounced marriage.
And yet he also states: "Since it is not of
divine origin, mandatory celibacy for priests can, of course, be changed by the
Church, if at a certain point she thought it necessary."
The discussion of celibacy led to discussion of love,
carnal and otherwise, and the acknowledgment that priests were attracted
"to the other sex" as well as "to someone of the same sex,"
a "delicate matter" he said he would "completely avoid"
because it "requires a pastoral discernment far beyond my competence and
the scope of a retreat."
He offered, however, that while some clerics attracted
to the same sex believed "they are permitted or at least excused to act
out accordingly," the law of celibacy also applied to them.
"The Church is born of hope. If we intend to give
new momentum to faith to empower it to conquer the world again in our age, we
will need to rekindle hope. Nothing is possible without hope."
Sharing the poverty of Jesus, he said in talk four,
doesn't mean giving up all earthy goods. "The Gospel never condemns
earthly goods and riches in themselves," he said. "What Christ
condemns is attachment to money and goods, trusting in them as if 'one's life
depended on them.' "
For several pages, Cantalamessa uses severe language
in condemning such attachment and he has especially harsh words for "the
so called 'Prosperity gospel,' " which he termed a "total
contradiction to the Gospel of Christ," a gospel that "far from being
'good news to the poor' becomes good news for the rich."
In one of his final talks, Cantalamessa said a
contemporary challenge for the church is figuring out how to incorporate the
ministry of lay people. "In various parts of the Christian world," he
said, "the Parable of the Lost sheep is being lived out in reverse:
ninety-nine sheep have gone away and only one has remained in the sheepfold.
The danger is that we spend all of our time nourishing the one remaining sheep
and, due to the scarcity of clergy, don't have time to go out in search of the
sheep who are lost."
His focus was not on incorporation of ordinary lay
people but on "ecclesial movements" which, he said, have been the
locus of many conversions "both of nonbelievers and of nominal Christians
returning to the practice of the faith."
Ending with a reflection on the Resurrection, he said,
"The Church is born of hope. If we intend to give new momentum to faith to
empower it to conquer the world again in our age, we will need to rekindle
hope. Nothing is possible without hope."
Franciscan Fr. Daniel P. Horan writes about politics,
culture and theology in his new column, Faith Seeking Understanding.
[Tom Roberts is NCR executive editor. His email
address is troberts@ncronline.org.]
in NCR 11.01.2019
A A A A A A A A A A A A
Até onde se pode debater na Igreja?
Questionar a Igreja não
significa forçosamente colocá-la em questão. Entrevista à francesa Anne-Marie
Pelletier, primeira teóloga a receber o prémio Ratzinger, considerado o “Nobel”
da Teologia, sobre algumas das questões que perpassam o catolicismo de hoje,
como o posicionamento das mulheres nas comunidades católicas, a Bíblia na vida
da Igreja e o clericalismo.
Debater no seio da nossa
Igreja parece-lhe ser hoje fácil?
Antes de falar das
dificuldades do debate, parece-me que é preciso começar por colocar a questão
da sua legitimidade na Igreja. A ideia está longe de estar adquirida. Ela
continua a colidir mais ou menos na consciência comum com a distinção entre
Igreja que ensina e Igreja que é ensinada, fortemente afirmada pelo concílio de
Trento (séc. XVI).
Por um lado, o magistério é
detentor do saber e da palavra. Do outro lado, o povo dos fiéis aquiesce na
obediência às verdades da fé. O dogma da infalibilidade papal reforçou essa
visão no século XIX, num contexto da resposta defensiva da Igreja sobre
formulações intangíveis.
O concílio Vaticano II
libertou-nos dessas estreitezas. Devolveu-nos a uma visão renovada, dinâmica,
da vida da Igreja, aberta ao diálogo dentro dela e com o mundo deste tempo. Em
1964, já Paulo VI convidava a Igreja a fazer-se diálogo, palavra, conversação.
E a natureza sinodal da Igreja tem sido fortemente reafirmada desde então.
Trata-se de todos andarem
juntos, leigos, pastores, bispo de Roma, que enfrentem juntos as questões da
vida da Igreja. Mas temos de reconhecer que mesmo hoje essa inteligência da
identidade e da vida da Igreja continua a ser um pouco uma ideia nova...
Debater na Igreja será para
alguns erguer obstáculos à unidade dos cristãos?
Considerar o debate é
considerar que possa haver pluralidade na maneira de receber o Evangelho, de
compreender a vida cristã, de organizar a instituição.
Ora, nós temos muitas vezes
uma visão falseada do plural e da unidade. Pensamos o plural sob o signo da
divisão ou do relativismo. É uma simplificação muito prejudicial. Porquanto o
plural é em primeiro lugar o selo do excesso divino que a fé incorpora: é
preciso polifonia para fazer emergir o rosto do Deus da revelação
E é preciso também fazer
justiça ao plural, simplesmente porque a vida é complexa e porque é nesta
complexidade que Deus está a abrir um caminho e que a Igreja é chamada a viver.
Abramos os Atos dos
Apóstolos. Desde a primeira geração cristã houve debate entre uns e outros, por
vezes dissensões sérias que obrigaram a reunir, a falar, a inventar a superação
dos conflitos. Da mesma maneira, a história do concílio Vaticano II é a de um
amadurecimento teológico que se fez através de um debate intenso entre os
bispos do mundo.
É preciso que reencontremos
confiança no diálogo e no debate, uns com os outros. O que requer
incontestavelmente coragem, num momento em que a tendência pesada das
sociedades é a de uma regressão para as convicções e identidades voltadas para
elas mesmas.
Quais são as questões sobre
as quais seria urgente desencadear o debate?
São obviamente numerosas.
Algumas podem ser explosivas. É preciso, portanto, que comecemos por admitir
que questionar juntos uma realidade da vida da Igreja não é “ipso facto”
colocá-la em questão. Eu procuro defender, pela minha parte, a causa de uma
sabedoria cristã que privilegie a confiança e a escuta do outro, o respeito
pela complexidade da vida, sob o horizonte de uma Palavra de Deus que ninguém
deve reivindicar ter o total conhecimento.
Tomemos o exemplo do celibato
dos padres, que sabemos estar relacionado com os dramas da atualidade. Seria
impossível refletir desde já em conjunto simplesmente sobre o sinal de que ele
quer ser portador, sobre o acesso a este sinal na nossa sociedade, sobre as
condições que permitem que seja vivido, ou então sobre o que significaria a
ordenação de homens casados como na tradição oriental?
Num modo menor, secundário,
penso também nas questões das “servidoras das assembleias” [acolhem os
paroquianos, distribuem folhas/cadernos, acompanham o ministro da comunhão]. Um
tema minúsculo mas que pode desencadear paixões atribiliosas, tendo em conta
que a liturgia é uma realidade inflamável. E que, de facto, sob aparências
folclóricas, dissimula questões de fundo sobre o acesso ao altar, e portanto
sobre o feminino e o masculino na Igreja, sobre uma conceção “sacralizadora” da
função presbiteral. Um verdadeiro estaleiro, na realidade, para uma explicação
em conjunto acerca de matérias essenciais.
Há alguma questão que a
sensibilize particularmente e da qual lamente a ausência de debate?
Tendo consagrado boa parte da
minha vida a trabalhar as Escrituras, sou particularmente sensível à
necessidade de fazer dela para a Teologia, mas também para a vida quotidiana
dos cristãos, a fonte de inspiração e de conversão.
O papa Francisco convida cada
um a tomá-las como companheiras de viagens no documento “Amoris laetitia”
[sobre o amor na família]. É uma exortação soberba, mas como torná-la
realizável?
E se é suposto que a Palavra
de Deus irrigue toda a vida dos crentes, que resultado é que isso tem para
aquilo que se denomina “diaconia da Palavra”? Onde e como é que ela se exerce
na Igreja? Quem é responsável por ela na instituição eclesial? Não estou certa
de que se possa ater à consideração da homilia dominical. Isto coloca
problemas. Os leigos dizem-no em voz baixa. E o papa, em alta voz, reconhece
que este é uma verdadeira questão.
De que maneiras plurais a
Palavra de Deus pode ser servida, iluminar as inteligências e as práticas,
hoje, na Igreja? Se falássemos mais disso nas comunidades cristãs…
E sobre a questão do
clericalismo, de que o papa nos pede para sair?
É evidente que há abuso de
poder na instituição eclesial, e de maneira mais impressiva quando esse poder
se reivindica de uma autoridade divina. Nesse sentido, contesto um pouco uma
maneira de relativizar os escândalos atuais ao invocar o facto de haver
clericalismo na maneira como alguns leigos podem exercer as suas
responsabilidades. Em todo o lado onde há poder nas nossas sociedades, há
desvios e abusos. Mas o problema é levado ao extremo quando é de «direito
divino» que um poder se exerce.
O remédio só pode ser o de
reencontrar a justa identidade do sacerdócio ministerial [de quem é ordenado
padre] na sua relação com o sacerdócio batismal [de todos os batizados]. O que
implica desde logo renunciar a uma sacralização, que, aliás, já é pouco
evangélica, da função presbiteral. Não dissimulemos que o clericalismo se joga
já numa certa maneira de isolar o padre numa excelência que o coloca acima de
todos.
Os leigos têm uma certa parte
de responsabilidade nesta distorção da identidade sacerdotal. O remédio é
simultaneamente retomar a medida da dignidade e da missão inerentes ao Batismo.
A exortação “Gaudete et exsultate”, que descreve longamente o que é a vocação
de todos à santidade, é nesta matéria uma boa leitura, a recomendar.
Como fazer mexer as coisas,
depois de séculos de sacralidade?
Há nos humanos que somos um
gosto atávico pela sacralização. É, aliás, próprio ao mundo pagão, de acordo
com as Escrituras bíblicas, responder amplamente a essa demanda. A frequência
das Escrituras é aqui um excelente antídoto. Um só é santo, como um só é
Sacerdote. Dito isto, é preciso que o povo cristão ouça mais vezes da boca dos
seus sacerdotes como se pode conhecer melhor segundo toda a grandeza da sua
vocação batismal. O que implica, evidentemente, que estes últimos sejam
treinados no seminário a pensar e viver uma eclesiologia de comunhão.
O arcebispo de Paris pede que
haja mulheres presentes nos seminários e que participem no processo de
discernimento. Que pensa sobre isso?
Está aí, obviamente, uma
proposta maior. Mas, apesar das evoluções positivas – o próprio facto de
considerar o assunto –, é claro que a realização a curto prazo de um tal
projeto é problemática. Os seminários voltam cada vez mais hoje a ser um
microcosmo, onde os padres são formados exclusivamente por padres, sem abertura
a esse exterior que será, no entanto, o lugar do seu ministério e das suas
responsabilidades. Como subir esse monte? Confesso por agora o meu pessimismo.
A senhora, enquanto teóloga,
é convidada a ir aos seminários? A sua palavra é aí escutada?
Sim, e isso faz parte das
novidades felizes da vida da Igreja. Eu ensino no seminário há alguns anos e
hoje sou mesmo solicitada para orientar retiros a padres, como faço há muito
tempo em comunidades monásticas, inclusive masculinas.
Mas, ao mesmo tempo, sou
obrigada a constatar que o corpo docente feminino diminui nos seminários que já
lhe foram acolhedores. É evidente que alguns seminaristas rejeitam aprender a
teologia da boca das mulheres.
No entanto, seria essencial
que o curso de eclesiologia, em particular, fizesse justiça a uma inteligência
de Igreja aberta à sua amplitude total, lembrando que o sacerdócio batismal é
englobante, como o recorda fortemente o papa Francisco.
Afirma que há hoje menos
mulheres nos seminários. É porque não são convidadas ou porque há menos
mulheres formadas para o ensino da teologia.
Há todo um viveiro de
mulheres formadas, que têm todos os diplomas canónicos necessários. Mas, como é
recordado a meia voz àquelas que exprimem o desejo de se formar, os diplomas
não lhes garantem qualquer direito a aceder a responsabilidades eclesiais. (…)
E todavia o debate sobre o
lugar da mulher na Igreja não é novo.
Digamos que, após o papa João
XXIII ter feito da promoção das mulheres um «sinal dos tempos», a instituição
eclesial abriu-se à presença e à experiência das mulheres na Igreja e nas sociedades.
Recuso banalizar esta novidade.
Mas, com o recuo do tempo,
medimos hoje as dificuldades que permanecem em superar para que a Igreja
exista, pense, aja associando verdadeiramente homens e mulheres na sua teologia
e no seu governo. É preciso reconhecer que alguns discursos de celebração da
mulher fazem correr o risco de ter as mulheres à distância da vida concreta da
Igreja.
Continua a haver muito a
fazer para que ela integre o feminino no plural, se assim ouso dizer. Para que
as mulheres cristãs, na diversidade dos seus estados e das suas condições,
sejam reconhecidas como parte da missão da Igreja.
Parece-lhe que o papa
Francisco está consciente disso?
Estou convencida de que, pela
sua longa experiência de homem e de pastor, o papa Francisco tem uma visão
clara do problema. Na medida em que pode – mas um papa não é todo-poderoso –,
tem a preocupação de favorecer uma verdadeira promoção das mulheres no governo
da Igreja.
Ao mesmo tempo, ele reabre
concretamente a nossa eclesiologia à amplitude do que ele chama «o povo santo
de Deus». E ainda opera concretamente a sinodalidade, da qual reencontrámos o
sentido e a urgência durante as últimas décadas, mas que está a custar a entrar
verdadeiramente na cultura dos cristãos. Como sabemos, ele apela vigorosamente
ao povo dos batizados, a quem relembra insistentemente a sua dignidade e
missão. O apelo está lançado. Resta responder-lhe.
in Pastoral da Cultura
Sophie De Villeneuve
In Croire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 10.01.2019
www.snpcultura.org/ate_onde_se_pode_debater_na_igreja.html
Sem comentários:
Enviar um comentário