P / INFO: ESVAZIAMENTO
E GLÓRIA
QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
ESVAZIAMENTO E GLÓRIA
JESUS VIVEU ENTRE NÓS NUMA PRÁTICA CONTÍNUA DE
ABAIXAMENTO, EXPRESSO NA RADICAL OBLAÇÃO DE SI
Há uma primeira palavra-chave
para entender a Páscoa do ponto de vista de Cristo. Trata-se do termo grego
kenosis, que conheceu uma relevante maturação na história da teologia e da
espiritualidade cristãs, e que remonta diretamente a uma invulgar fórmula
bíblica, reproduzida na Carta de São Paulo aos Filipenses. Ali se diz que
Cristo “se esvaziou a si mesmo” (heauton ekenosenm). É verdade que Paulo
utiliza o verbo em outras quatro passagens das suas cartas (1 Cor 1,17; 9,15; 2
Cor 9,3 e Rm 4,14) com matizes diversos de significação que convergem na ideia
de “despojar”, “esvaziar”, “privar de força”, “reduzir a nada”, “anular”. Em
todas essas passagens o verbo aparece, porém, no interior de uma cláusula de
negação: o objetivo é aí o de evitar o “esvaziamento”. Mas em Filipenses 2,7
assistimos a uma clamorosa inversão: é a única vez, em toda a Sagrada Escritura,
que o verbo conhece um uso reflexivo. Conta-se então que o próprio Jesus tomou
a iniciativa de se esvaziar a si mesmo: “[Cristo Jesus, sendo de condição
divina, não se valeu da sua igualdade com Deus], mas esvaziou-se a si mesmo
assumindo uma condição de servo...”
No Evangelho de João, numa
passagem que a liturgia voltará a apresentar nestes dias, encontramos uma
imagem que talvez nos entreabra o sentido profundo do texto paulino. Trata-se
do capítulo 13 de João, quando Jesus, no contexto da última ceia com os seus
discípulos, se despoja a si mesmo, despe as suas vestes e se põe a lavar-lhes
os pés. Aquele que é Mestre e Senhor torna-se servo para deixar um exemplo: “se
eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos
outros... Como eu vos fiz, fazei vós também” (Jo 13, 14-15). De facto, a
kenosis foi uma característica permanente do caminho de Jesus, a ponto de
podermos dizer que ele viveu entre nós numa prática contínua de abaixamento,
expresso na radical oblação de si. O modo como Jesus assumiu a condição terrena
foi, até ao fim, um amoroso serviço à nossa humanidade, relegando-se a si mesmo
para o último lugar, dispondo-se a uma progressiva humilhação, sendo fiel até à
morte e uma morte de cruz. Esta é uma parte do seu legado.
O modo como Jesus assumiu a
condição terrena foi, até ao fim, um amoroso serviço à nossa humanidade,
relegando-se a si mesmo para o último lugar
Mas só compreenderemos o
sentido global dessa morte se formos além da mera crónica da crucifixão, e reconhecermos
que a consequência do autoesvaziamento de Cristo é a anulação do pecado.
Utilizando uma linguagem que depois se tornará corrente, o apóstolo Paulo fala
de uma redenção, termo do vocabulário comercial que significa uma deslocação da
pertença. O homem é “recomprado”. É devolvido a uma pertença plena a Deus e a
si mesmo através da destruição do mal operada pela morte de Cristo. E como é
que isso é selado? Isso torna-se patente na verdade que somos chamados a
acolher, a tatear e a reconhecer: que aquele Cristo crucificado é também o
Cristo ressuscitado; que ele é agora o Senhor da Glória, e nos transmite o seu
Espírito para tornar-nos participantes da sua vida divina. A Páscoa é, assim,
na sua amplitude, mistério de esvaziamento e glória.
Quando aprofundar a sua
exposição sobre a ressurreição de Cristo, São Paulo chegará na Primeira Carta
aos Coríntios a uma afirmação perentória: em última análise, diz ele, acontece
uma só ressurreição, a de Cristo, que se ramifica no tempo e no espaço até
chegar a todos. A ressurreição de Cristo estará completa também num sentido
distributivo quando, superada toda a forma de mal, e vencido o derradeiro
inimigo que é a morte (15,26), toda a criação realizar plenamente o projeto de
Deus e for como que impregnada da vitalidade de Cristo. Deus será então tudo em
todos (15,28).
in Semanário Expresso 19.04.2019 p150
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