P / Info: Crónicas
RELIGIÃO NA
SOCIEDADE PORTUGUESA
Frei Bento Domingues, O.P.
Ainda
não dispomos de uma História, que se possa considerar científica, da Igreja em
Portugal. É estranho.
1. A chamada modernidade triunfante
– libertação da tutela religiosa - reforça-se, dia a dia, em alguns domínios,
mas amplia, noutros, o regime da nossa mais profunda incerteza vital. Quando se
desencanta dos seus próprios encantamentos, de modo diferente segundo os espaços
culturais, torna-se menos arrogante e mais atenta à significação, às interrogações
e apelos sobre o sentido da vida impregnada de mistério.
É verdade que, na
Europa, as instituições religiosas perderam o antigo poder de enquadramento
social e cultural. Mas a religiosidade difusa está mais presente do que se
julga. Cada pessoa passou a ter mais possibilidades de escolha e descoberta do
que as impostas pela hierarquia eclesiástica em regime de cristandade[1].
As aldeias já não são o suporte tradicional da religião. Em alguns
lados, o clero, escasso e mal preparado para a mudança, reforça o clericalismo,
combatido pelo Papa Francisco, mediante o abuso pecuniário com os sacramentos e
vai perdendo a sua diminuta população mais jovem. Em algumas localidades
torna-se o agente mais eficaz de desertificação religiosa institucional.
Nos grandes meios de comunicação social, os temas preferidos
dos noticiários dedicados à religião são a pedofilia dos eclesiásticos de
colarinho e de mitra, no âmbito católico, e o terrorismo, no mundo muçulmano.
Noticiam a excepção que não pode ser mais perversa.
2. Segundo as estatísticas,
oitenta por cento da população portuguesa apresenta-se como católica. Apesar
disso, ainda não dispomos de uma História, que se possa considerar científica,
da Igreja em Portugal. É estranho.
Para Salazar, nos anos 40 do século passado, dizer-se
português e dizer-se católico era a mesma coisa. Nos finais dos anos 50,
verificava que essa unidade católica se tinha rompido. Desde 2001, o nosso país
consagrou legalmente a liberdade religiosa. Cada vez sabemos um pouco mais
acerca da diversidade no interior do catolicismo e da pluralidade religiosa em
Portugal, mas a ignorância da significação do que está a acontecer no mundo
religioso é persistente. Os grandes meios de comunicação social sabem mais de
futebol do que qualquer outra manifestação cultural ou religiosa. Por essa
razão, o aparecimento do jornal online, 7Margens,
é um acontecimento de primeira importância.
Em 1992, a simbologia religiosa foi bem servida pela tradução
e publicação de uma obra fundamental de Mircea Eliade, com prefácio de Georges
Dumézil[2]. Importa destacar, na
mesma linha, um livro do investigador, Fernando Schwarz, director do Instituto Internacional Hermes. Veio
dissipar o nevoeiro de certa antropologia do sagrado[3].
Duas obras, inesperadas e notáveis, de Régis Debray[4],
vieram, em novos moldes e grande estilo, repor na actualidade questões
fundamentais fora das habituais sacristias.
Em 1998, foi oficialmente criada, na Universidade Lusófona,
a primeira Licenciatura em Ciência das Religiões. A filosofia da religião tem
alguma expressão em Portugal. Anselmo Borges continua a ser o autor mais
destacado nesta área. A presença da religião nas expressões contemporâneas da
música, da literatura, do cinema, da arquitectura mostra que, entre nós, o
conflito entre as experiências estéticas e as religiosas, já não se alimentam
do conflito.
Alfredo Teixeira é o antropólogo e sociólogo com o olhar
mais atento acerca das transformações e reconfigurações da religião. Tem
trabalhado, não só a erosão, mas também a reconfiguração da religião em
Portugal. Entre os seus muitos estudos, também nos tinha dado um mapa para
pensar a religião[5].
Acaba de publicar o seu «percurso de investigação no domínio dos Estudos da Religião,
tanto no que diz respeito à indagação sobre esse labirinto misterioso que é a
expressividade religiosa humana, como na caracterização das identidades
religiosas em Portugal, cada vez mais plurais. Dessa sua biografia faz parte o
encontro com vários cientistas sociais que, ao longo das últimas décadas, se
cruzaram com os meus interesses de investigação. O diálogo com esses
itinerários é uma marca expressivamente tatuada neste texto», diz A. Teixeira[6].
No preâmbulo dessa viagem, o autor é ainda mais explícito no
seu desígnio: «Na sua diversidade, este ensaio tem um fio condutor. As
persistências ou as mudanças no campo religioso são pensadas no quadro mais
amplo da dinâmica social que descreve a modernidade portuguesa. Elegemos três
lugares de observação: destradicionalização, individualização, diversificação.
Cada um destes eixos permite uma leitura transversal da paisagem religiosa
portuguesa, desencadeada por algumas perguntas».
A resposta a essas perguntas configuram este magnífico
ensaio. O mapa deste itinerário «é a sociedade portuguesa nas suas dinâmicas
sociais e não o perímetro de cada um dos grupos religiosos, tomados como um
universo».
A explicitação dos enunciados três lugares de observação
constitui o corpo desse fecundo e apelativo percurso. A diversificação
religiosa da sociedade portuguesa foi marcada pelas recomposições provocadas
pelos diferentes fluxos migratórios que alteraram o nosso mapa religioso. O
território nacional já não alberga, apenas, a religião católica, embora 80% da
população assim se reconheça, mas está tudo em movimento, como esta obra
testemunha e analisa nas dimensões permitidas pela colecção em que se inscreve.
Constitui, porém, um desafio para o que falta fazer.
3. Uma questão fundamental é a
relação de Fátima com o que resta da religião popular portuguesa e a forte
individuação devocional dos peregrinos, superando o mundo rural em agonia. Uma
observação cuidada aos santuários de peregrinação – a não confundir com o
turismo religioso – poderia revelar algumas características do que permanece e
se transforma na religião popular. S. Bento da Porta Aberta é considerado,
depois de Fátima, o santuário mais procurado ao longo de todo o ano.
Depois de tudo o que
foi dito e do que não cabe numa crónica, lembro o aviso de Émile Poulat: é
necessário não confundir as vagas com o oceano ou o movimento das marés com as
profundezas submarinas.
in Público, 07.04.2019
https://www.publico.pt/2019/04/07/sociedade/opiniao/religiao-sociedade-portuguesa-1867965
[1] Cf. Tzvetan Todorov, L’Esprit des Lumières, Robert Laffont,
Paris 2006 ; O ensaio mais lúcido sobre os equívocos da sacralização da
laicidade foi escrito por Eduardo Lourenço (PUBLICO. 08.2018, pp. 18-21). A
laicidade não é inocente.
[2] Tratado de História das Religiões, Asa, Porto, 1992.
[3] Mitos, ritos e símbolos. Antropologia do sagrado, Nova Acrópole,
Lisboa 2018
[4] Deus, um itinerário, Companhia das Letras, 2004; O Fogo Sagrado, Ambar, Porto 2005.
[5] Um mapa para pensar a religião, UCP, 2015
[6] Religião na sociedade portuguesa, Fundação Francisco Manuel dos
Santos, 2019, 7-8.
in Público 07.04.2019
https://www.publico.pt/2019/04/07/sociedade/opiniao/religiao-sociedade-portuguesa-1867965
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O ícone de uma Chaimite
na Assembleia da República
Anselmo Borges
O texto que aí fica reproduz as palavras que proferi, na Assembleia da
República, na passada sexta-feira, dia 4, na abertura da exposição Cinquenta
Anos a Fazer P.Arte, de António Colaço.
Estudante em Roma, fui à Basílica de São Pedro muitas, muitas vezes,
só para ver a Pietà. De um bloco de mármore, Miguel Ângelo arrancou a Pietà,
que nos comove, e, imóveis, olhamos e olhamos... e contemplamos... o que lá
está: a dor, a compaixão de uma mãe com o filho morto nos braços, toda a
ternura compassiva do mundo, e mais e mais... E nunca nos cansamos de olhar.
Aquele mármore é sempre mais do que mármore... foi transfigurado,
transfigurou-se.
Em Amesterdão, contemplei as célebres Botas de Van Gogh. Ninguém as
pode calçar. Para que servem? Mas são as botas mais caras do mundo. O que está
lá? Todos os caminhos dos homens e das mulheres... as suas dores e sofrimentos,
os seus sonhos e esperanças... infinitamente.
O artista, grávido de mundos, vê o que outros não vêem e ensina a ver
o que se vê, sempre mais do aquilo que se vê. A arte é símbolo: uma presença
que aponta para lá, sempre mais para lá, para uma ausência presente, para a
transcendência... na coincidência.
Nestes Cinquenta Anos a Fazer P.Arte de António Colaço, o que há é
todo o seu percurso de mostrar o que só o artista vê. Ele há uma terrina com
furos e com máscaras: afinal, um escorredor de almas... Ofereceu-ma, e eu vi a
força de um confessionário, na sua força de salvação e alívio na reconciliação.
Ele há uma oliveira que ardeu e que é um Cristo crucificado, a suplicar a
libertação da tragédia dos incêndios... e tantas outras tragédias também. Ele
há uma tigela, que é outra coisa... também há tijolos... e isso tudo é símbolo
de uma reconstrução de alguém que passa por um AVC.
Ele há..., ele há..., ele há 50 anos de António Colaço a fazer-se,
fazendo arte com muitas artes, transfigurando, e ensinando a ver o que se vê,
mas, distraídos, não vemos.
Tudo sob o ícone de uma Chaimite, agora desmilitarizada e obra de
arte, símbolo da liberdade. Daí o nome da exposição: Palavril (libertação da
palavra em Abril). Na Assembleia da República, a Casa da Democracia. Daqui, em
liberdade, se luta pela igualdade radical e pela fraternidade concreta. Um
Evangelho: notícia boa e felicitante, como diz o étimo grego da palavra. A
utopia, a realizar, de um mundo outro, um mundo outro possível e urgente.
Aqui chegados, impõe-se uma palavra sobre a relação complexa entre
política, ética e estética.
Quando comparamos o ser humano e os outros animais, notamos que a
linguagem duplamente articulada é característica decisiva dos humanos. Já no
século XVIII se deu essa compreensão, pois encontramos inclusivamente
caricaturas com um missionário no meio da selva africana dizendo a um macaco:
"Fala, e eu baptizo-te." Se falasse, era humano. Evidentemente, esta
fala refere-se ao que é próprio do ser humano: dupla articulação da linguagem.
Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando,
damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos
comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só podemos compreender-nos a
nós próprios em corpo, com outros e na história.
O homem, pelo facto de ser zôon lógon échon, animal que tem logos
(razão e linguagem), é também zôon politikón, animal social, político,
diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem
viu Aristóteles, na Política: "A razão de o homem ser um ser social, mais
do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o homem,
entre os animais, possui a palavra." E continua: "A voz é uma
indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo
contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem
como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros
animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do
injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a
casa familiar e a cidade."
A linguagem humana não se reduz à expressão emotiva do prazer e do
desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo
e o injusto, partilhar e debater publicamente estas apreciações. Deste modo, a
linguagem está na base da ética e funda eticamente a pólis (a cidade, no
sentido da vida política).
O que é que isto quer dizer? A política tem de assentar em valores,
valores éticos, e espera-se que os políticos sejam éticos. Mas, precisamente
aqui, começa o paradoxo. Se fôssemos todos éticos, moralmente bons, não era
necessária a política. Mas não somos. Então, precisamos de política? Claro.
Mas, em última análise, precisamos da política no sentido estrito, que implica
o Estado enquanto organização política da sociedade, detendo ele, o Estado, o
monopólio da violência, porque não somos éticos. Se todos fossem éticos, no
quadro do cada um fazer-se bem moralmente a si próprio, prestando contas de si e
das contas, não seria necessária a política, que ficava reduzida à
administração das coisas. As leis seriam justas e todos as cumpririam. Só
porque somos egoístas, interesseiros, corruptos e corruptores, é que temos
necessidade do Estado para regular e gerir os conflitos. Como escreve o
filósofo André Comte-Sponville, se a moral reinasse, não teríamos necessidade
de polícia, de tribunais, de forças armadas, de prisões.
Assim, a política não existe directamente para a ética. Mas ai de nós,
sem uma conversão ética! Urgência maior é a formação ética, moral, para os
valores, que não são redutíveis ao valor do dinheiro divinizado. Sem valores
éticos assumidos, remeteremos constantemente para a política, para as leis,
para a regulação, para os tribunais, para as prisões... Então, só fica a lei (e
aqui há ainda a questão de legislar em causa própria) e a sua sanção, no
limite, um Estado totalitário e tirânico, mesmo que sob a aparência de
democracia. Ora, não é possível legislar sobre tudo e, sobretudo, acabaria por
ser necessário pôr um polícia junto de cada cidadão, para que cumpra a lei;
como os polícias também são humanos, seria preciso pôr um polícia junto de cada
polícia e assim sucessivamente... Juvenal disse: "Custos custodit nos.
Quis custodiet ipsos custodes?" - "A guarda guarda-nos. Quem guardará
a guarda?"
Significativamente, o Evangelho, notícia boa e felicitante, quando
Jesus ordena: "Fazei obras boas", no original grego está: kalá érga,
obras belas. Cá está o elo entre a estética e a ética. Mesmo os pais ou os bons
educadores, quando querem chamar a atenção para o bem, criticando qualquer
coisa que não é moralmente boa os educandos fazerem, não dizem "não faças
isso, porque é mal". Dizem antes: "Não faças isso, não é bonito, é
feio."
Na conexão entre ética e estética, a Assembleia da República fez bem
ter trazido para dentro dela a exposição Cinquenta Anos a Fazer P.Arte
-Palavril, de António Colaço. Foi uma boa decisão, é bem, uma excelente
decisão, bela decisão. António Colaço, "místico" (Jaime Gama dixit),
ensina-nos a ver o que se vê e, assim, torna-nos melhores.
Padre e professor de
Filosofia. Escreve de acordo com a antiga grafia.
in DN 07.04.2018
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/07-abr-2019/interior/o-icone-de-uma-chaimite-na-assembleia-da-republica-10768904.html?target=conteudo_fechado
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
VISTE JÁ O LEOPARDO-DAS-NEVES?
NÃO SERÁ UMA RAZÃO DE
FELICIDADE QUE A VIDA NOS TENHA SURPREENDIDO, NOS TENHA DADO NÃO ISTO MAS
AQUILO?
Conta-se que um mestre interrogou, certo dia, um dos seus discípulos:
“Viste já o leopardo-das-neves?” “Confesso que há muito que o espero, mas não o
avistei ainda”, respondeu o discípulo. “E isso não é maravilhoso?”, concluiu o
mestre.
Há, de facto, uma beleza nas esperas que se cumprem. Para isso nos
acreditamos criados. Para aí se orienta, desde sempre, o nosso caminho:
sentimos que existimos para conseguir e alcançar, para conquistar e obter, para
ver e tocar. Esse é certamente um dos motores mais poderosos da nossa busca
interna e é, ao mesmo tempo, o que melhor parece cumprir a expectativa dos
outros a nosso respeito. Aquilo que se celebra são as realizações, pequenas e
grandes. Aquilo que se recorda são as chegadas à meta. O que nos mobiliza é a
ânsia de vencer, superar, transcender cada desafio, pois daí (e só daí) nos
disseram que se extrai a confiança necessária para ser. Ora, não é que isso não
esteja correto e não corresponda a uma verdade que temos de nos empenhar a
conjugar no aqui e no agora da nossa singularidade. Existe, porém, um problema
irremovível: é que essa experiência corresponde apenas a uma parte do grande
quinhão de possibilidades que nos cabe viver. E se, para a primeira
experiência, tudo nos prepara, e chegámos a ela sustentados pela presença,
confirmação e aplauso dos outros, para a experiência oposta estamos
existencialmente impreparados, entramos nela em contraciclo, interpretamo-la
como um falhanço que nos desqualifica. Para a experiência oposta (para essa
que, na verdade, deveríamos encarar como complementar) escasseiam instrumentos,
falta-nos saber adquirido e educação que nos ajude a integrá-la e a retirar
também dela algo que é necessário e precioso à maturação da vida, na sua
acumulação descontínua de começos e recomeços. Claro que nos sobrevém um
sentimento feliz quando tudo parece coincidir ou exceder aquilo que havíamos
sonhado. Mas não será, igualmente, uma razão de felicidade que a vida nos tenha
surpreendido, nos tenha dado não isto mas aquilo, nos tenha guiado por
histórias e caminhos que não poderíamos sequer supor? Claro que é esplêndido
encontrar. Contudo, se não tivermos arriscado viver de olhos abertos o
falhanço, a perda e o esvaziamento como hipóteses de sabedoria que a vida nos
dá, saberemos realmente o significado do encontro?
Se não tivermos arriscado viver de olhos abertos o falhanço, a perda e
o esvaziamento como hipóteses de sabedoria que a vida nos dá, saberemos realmente
o significado do encontro?
Recordo aquilo que o místico São João da Cruz escreveu no livro
“Subida ao Monte Carmelo”, onde trata do que se deve fazer para alcançar a
união divina. A sua proposta é que aprendamos a desembaraçar-nos da glória, do
gozo, do saber, da consolação e do descanso, pois o caminho da perfeição é
composto apenas por uma desassossegada palavra, que cada vez somos chamados a
repetir com mais exigente (e luminosa) radicalidade. Essa palavra é: nada.
Talvez tenhamos de ler de maneira diferente os controversos mestres da
modernidade, e onde vimos anteriormente uma obstinada declaração de pessimismo
e cansaço face ao destino humano reencontremos, antes, o eco de uma outra via,
de uma silenciada e esperançosa via, com a qual nos precisamos reconciliar. É
disso que nos fala, por exemplo, Fernando Pessoa, no arranque da “Tabacaria”:
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.” É a isso que alude
o mote do escrivão Bartleby: “I would prefer not do.” Ou a deliciosa história que
se conta de Samuel Beckett, passeando por Paris, numa manhã perfeita de
primavera. Um amigo diz-lhe: “Um dia como este não te transmite a alegria por
estar vivo?” E ele, lúcido, soturno e desamparado, responde: “Não diria tanto.”
in Semanário Expresso 06.04.2019
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2423/html/revista-e-1/que-coisas-sao-as-nuvens/viste-ja-o-leopardo-das-neves-
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
Domingo V da Quaresma Ano C
Disse então Jesus: «Nem Eu te
condeno.
Vai e não tornes a pecar»”.
Lc 8, 11
Para onde vamos?
São de paixão as repetidas notícias de violência em contexto familiar,
a que se dá o nome de “violência doméstica”. Explosões de muitas violências
caladas e amordaçadas por medo e opressão, injustificáveis e desumanas, onde a
lei do mais forte fere e mata os mais fracos, na maioria dos casos, crianças e
mulheres. É a continuada Paixão de Cristo que tanto se identificou com os mais
pequeninos, onde a indiferença de muitos e os preconceitos de outros continuam
a permitir calvários!
É com extrema violência que uma mulher, apanhada em adultério, é
levada por escribas e fariseus até Jesus. Sozinha, no meio dos presentes,
transformada em objecto, qual rato de laboratório, corre risco de vida, e nem
aquele mestre parece ter poder para evitar o peso da Lei. Jesus, sentado como
mestre que ensina, recusa o debate de ideias. Quantos mortos causaram na
história da humanidade os debates de ideias? Inclina-se a escrever com o dedo
no chão, e ao longo dos tempos muitos perguntarão que palavras teria escrito.
Só uma outra passagem da Escritura fala de alguém que escreve com o dedo: Deus,
nas tábuas da lei que entregou a Moisés no Sinais (Ex. 31, 18). Perante a
insistência dos acusadores, Jesus levanta-se e interpela cada um ao reflexo da
própria vida. Ninguém é superior a outro, a ninguém pode ser dado o poder de
tirar a vida, e muito menos, usar o nome de Deus para se desresponsabilizar.
Não os confrontando com o seu olhar, Jesus inclina-se de novo e volta
a escrever no chão. Acabam por ficar só Ele e a mulher. Agora, sim, há um olhar
e um diálogo. Foi importante a pergunta de Jesus, que a trata por “Mulher”,
reconhecendo nela a humanidade e a dignidade a salvar, uma história que pode
ter um novo rumo. Como foi importante a resposta dela: “Ninguém, Senhor!”,
expectante de algo profundamente novo e recriador que Jesus pode fazer. E como
para Deus, mais importante do que “de onde vimos” é “para onde vamos”, as
palavras de Jesus abrem um futuro novo e luminoso. Não é posta em causa a
ferida que trazia, mas não se cura a doença com a morte do doente e sim com o
remédio que traz saúde. Uma Lei, uma religião, uma ideia que leva à morte de
quem falha, esquece o essencial da encarnação: estamos a caminho, e Deus nunca
desiste de ninguém!
Quando deixamos de nos olhar bem no fundo dos olhos uns dos outros,
quando legalismos e preceitos se tornam mais importantes do que a história de
cada um, quando nos julgamos “mais” e “melhores” que outros e caímos na
armadilha das comparações, diminuímos em humanidade. Não adianta “envernizar” o
que é desumano com camadas de religiosidade ou preconceitos que aprisionam: se
não há “caminho para andar” com outros (como canta o Jorge Palma), naquilo que
digo e que faço, posso até achar-me muito certo e poderoso, mas estou mais
morto que vivo! Para onde vamos?
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8084&cont_=ver2
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