Frei Bento: É urgente e é possível mudar
Padre
Anselmo: Eduardo Lourenço e Deus
Cardeal
Tolentino: Advento
Padre
Vitor: A Voz, o Deserto e o Caminho
É
URGENTE E É POSSÍVEL MUDAR
Frei Bento Domingues, O.P.
O “inferno” em que transformámos o nosso
planeta não é um destino fatal: poucos com a posse e a dominação devastadora de
quase tudo e a grande maioria da humanidade com quase nada. É uma situação
absurda.
1. Segundo um conhecido conto judaico, um
rabino fez a Deus o seguinte pedido: ”Deixa-me ir dar uma vista de olhos pelo
céu e pelo inferno”. O pedido foi aceite e Deus enviou-lhe, como guia, o profeta
Elias.
O profeta levou o rabino a uma grande
sala. No centro ardia um fogo que aquecia uma panela enorme, com um guisado que
enchia o ambiente com o seu aroma.
À volta estava toda a gente pronta a
servir-se, com uma grande colher na mão. Apesar disso, viam-se as pessoas
esfomeadas, macilentas, sem forças, a cair.
As colheres eram mais compridas do que
os seus braços, de tal modo que não as conseguiam levar à boca. As pessoas estavam
tristes, desejosas e em silêncio, de olhar perdido.
O rabino, espantado e comovido, pediu
para sair desse lugar espectral. De inferno já tinha visto o suficiente.
O profeta levou-o então a outra sala. Ou
talvez fosse a mesma. Tudo parecia exactamente igual: a panela ao lume, com
apetitosas iguarias, a gente à volta com grandes colheres na mão. Via-se que
estavam todas a comer com gosto, alegres, com saúde, cheias de vida. A conversa
e as gargalhadas enchiam a sala. Isto tinha que ser o paraíso! Mas, como é que se
tinha conseguido uma tal transformação?
As pessoas tinham-se voltado umas para as outras e usavam a enorme
colher para levar comida a quem estava à sua frente, procurando que a outra
ficasse satisfeita e assim acabavam por ficar todas bem!
Mesmo quem acha piada a este conto observa
que não se lhe deve pedir demasiado: reproduz uma concepção demasiado simplista,
sem interesse num mundo espantosamente complexo. As boas parábolas são paradoxais,
enigmáticas e de inesgotáveis leituras.
Nem sempre. Este conto não se apresenta
como uma teoria económica, financeira, jurídica para a organização da sociedade
ou do Estado. Gosto do seu humor e da sua aparente ingenuidade. Não está nada
longe da antropologia e da ética do filósofo alemão, Jürgen Habermas, ao
mostrar que a vida do ser humano só se realiza na interacção com os outros[1].
O “inferno” em que transformámos o nosso
planeta não é um destino fatal: poucos com a posse e a dominação devastadora de
quase tudo e a grande maioria da humanidade com quase nada. É uma situação
absurda. O destino universal dos bens faz parte da Doutrina Social da Igreja.
Se fosse praticado, podia fazer deste mundo um paraíso do qual nos continuamos
a expulsar. Existem, hoje, recursos científicos e técnicos para corrigir erros
de um passado não muito longínquo. Como são mantidas e desenvolvidas as ambições
que provocam guerras e devastações de toda a ordem, alimentamos, na opinião
pública, a convicção de que não existem alternativas.
2. O Papa Francisco sonha com os olhos
abertos. Sabe que não é, apenas, com as suas Exortações Apostólicas,
Encíclicas, Discursos, Encontros ecuménicos e inter-religiosos, Declarações e
Entrevistas, que pode suscitar mudanças de rumo de cuja urgência não desiste[2].
Com a sua linguagem nova e a problematização
de falsas evidências, tem procurado mostrar que a Igreja deve ajudar a repensar
tudo. Mas é especialmente com os seus gestos e atitudes, perante situações que
parecem becos sem saída, que ele insiste, com os seus irmãos no episcopado e
com toda a Igreja – crianças, adolescentes, jovens e adultos – que são
possíveis mudanças que provoquem um sobressalto na sociedade.
Pode parecer ingenuidade. Mas ele não esquece
que as parábolas de Cristo, trabalhadas por quem redigiu as quatro narrativas
do Evangelho, não são triunfalistas. Por exemplo, a parábola do fermento e a do
grão de mostarda procuram não desencorajar as iniciativas que não se apresentam
como êxitos imediatos, vistosos, convincentes.
No seu escrito mais recente[3],
ele próprio pergunta: «Ainda poderemos
acreditar na possibilidade de um mundo novo, mais justo e fraterno? Poderá esperar-se,
verdadeiramente, uma transformação das sociedades em que vivemos, onde não seja
a lei do deus dinheiro a dominar, mas o respeito pela pessoa, numa lógica de
gratuidade? Teremos de assumir que o mundo é imodificável, com as suas injustiças
que «gritam vingança na presença de Deus»? E a nós, homens de Igreja, resta-nos
apenas a tarefa de pregar, com passiva resignação ou enunciar, como repetitiva
obrigação, princípios tão verdadeiros quanto abstractos?
«No entanto, nenhuma
mente honesta pode negar a força transformadora do cristianismo no devir da
história. Todas as vezes que a vida cristã se difundiu na sociedade, de maneira
autêntica e livre, deixou sempre um traço de humanidade nova no mundo. Desde os
primeiros séculos».
O lançamento da Economia de Francesco pretende reatar essa
tradição dos começos cristãos, pois o escândalo das evidentes desigualdades entre
ricos e pobres – quer se trate de desigualdades entre países ricos e países
pobres ou de desigualdades entre classes sociais no âmbito do mesmo território
nacional – não é tolerável.
O Papa sabe
que essa iniciativa é apenas um pouco de fermento, uma pequeníssima semente. Não
é o mundo transformado. Na história humana, as grandes transformações não
começaram pelo fim. Este é o primeiro desejado e o último conseguido.
3. Ao chegar a este ponto, recebi a notícia da
morte de Eduardo Lourenço, um grande amigo de há muitos anos. Ajudou-nos a não
repousar em certezas proclamadas de autores consagrados. A sua provocação
cultural e cívica exige, não só estudiosos da sua obra, mas pessoas desafiadas
a irem sempre mais longe e em muitas direcções. Provocou o catolicismo em que
cresceu, até aos primeiros anos da Universidade de Coimbra, onde frequentou o
C.A.D.C. e cuja Teologia apologética o desgostou.
O próprio
Eduardo Lourenço explicou, muitas vezes e de muitos modos, o sentido da sua Heterodoxia (I e II). Acompanhou-o
sempre a insepulta nostalgia de Deus[4]. Para
ele, o Cristianismo não é uma religião. Mas a exigência “religiosa” específica
do Cristianismo é a crítica radical do Poder pelo amor dos outros e, mais
radicalmente, crítica de um Deus-Poder[5]. Para
ele, «Cristo é o momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. (…) Foi crucificado
não por querer ser deus, mas por ensinar o que era ser homem. Dois mil anos passaram sem que esquecêssemos nem
aprendêssemos a lição»[6].
É preciso
estudar o seu legado teológico, disperso por muitos lugares, para entender o
que era e é a sua referência cristã. Precisamos deste cristão.
in Público 06.12.2020
https://www.publico.pt/2020/12/06/opiniao/opiniao/urgente-possivel-mudar-194in
[1]
Cf. Jürgen Habermas, O Futuro da Natureza
Humana, Almedina, 2006, p. 77
[2]
Exortações Apostólicas: Evangelli Gaudium
(2013), Amoris laetitia (2016), Gaudete et exsultate (2018), Christus vivit (2019), Querida Amazónia (2020); Encíclicas: Laudato Si’ (2015), Fratelli tutti (2020)
[3]
Cf. Il Cielo sulla Terra, Editrice Vaticana, 2020. Cf.
Pastoral da Cultura, 24.11.2020
[4]
Cf. Eduardo Lourenço, Heterodoxia II, Gradiva2006,
p.47
[5]
Cf. Eduardo Lourenço, Religião –
Religiões – Laicidade, in Seminário Internacional Europa e Cultura 1998,
Gulbenkian, pp. 71-78
[6]
E. Lourenço, in Opção nº 97, Março
1978, 2-8.
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Eduardo Lourenço e Deus
1. Sobre Eduardo
Lourenço, o filósofo, o ensaísta, o pensador — um dos mais lúcidos do nosso
tempo —, o crítico da arte, das múltiplas artes, nomeadamente da literatura e
da música..., outros já falaram e escreveram.
Encontrei-o várias
vezes e gostaria de deixar aqui breves reflexões sobre o tema em epígrafe, a partir
de alguns desses encontros, sempre iluminantes para mim.
2. 1. Participámos no
Encontro de Lisboa, organizado pelo GOL — era então Grão-Mestre António Reis —,
subordinado ao tema “Religiões, Violência e Razão”. E diz-me Eduardo Lourenço
mais ou menos assim: Ainda bem que também cá está, porque se o meu avô me visse
aqui...
A abrir o Encontro,
falou da estranha crise contemporânea. Enquanto o Ocidente se desertifica de
Deus, noutras culturas não só não há morte de Deus como, em vez da laicização,
continuam na sua Idade Média, acreditando que o seu Deus é o verdadeiro e o Ocidente
está em vias de perdição. De facto, o Ocidente teve um dinamismo incomparável,
e a razão disso é que o seu debate foi sempre à volta de Deus. Noutras
culturas, Deus é um dado e está no centro de tudo; no Ocidente, Deus tem sido
uma interpelação infinita. Deus não é uma evidência, porque não é um objecto.
Deus é o nome, precisamente enquanto anti-nome, da nossa incapacidade de captar
o Absoluto, o modo de designarmos a nossa incapacidade de ocuparmos o seu
lugar. O Ocidente é a procura e o debate à volta desta questão. É-se contra a
objectivação de Deus, porque Deus-pessoa não é objectivável. Deste modo, o
Ocidente afirma-se como procura da liberdade. Quando, noutras culturas, se dá a
pretensão de apoderar-se de Deus, temos fanatismo.
E continuou, dizendo
que, quando se dogmatiza, é para dominar. A perspectiva cristã caminha sobre
outro chão. Aqui, Deus aparece como não violência, como puro amor, como espaço
de liberdade absoluta. Sem Ele, as nossas liberdades não têm lugar. Ao
revelar-se como amor, Deus mostra que, se a violência é o estado natural, a não
violência é que é o mistério, e o que liberta é o não poder.
2. 2. De outra vez,
vínhamos de um debate, já tarde na noite, do Casino da Figueira para o hotel. E
eu disse-lhe que o tinha citado num artigo, pois dissera ao EXPRESSO que lhe
“pode acontecer rezar”. E ele: “Admira-se? Todas as pessoas rezam”.
2. 3. Em 2016,
estivemos de novo no Casino da Figueira, para um debate sobre “Utopia e
distopias”. Nele, reflectiu sobre a herança europeia, atravessando a Grécia, a
cristianização, o humanismo..., e desembocando nos nossos dias, com esta
afirmação: a Europa “nunca esteve tão confrontada com um desafio tão novo”, e
“o centro da crise está em França, que está a discutir se tem ou não
identidade, e isso é de ficar aterrado”. Daí passou para o medo que a Europa
enfrenta em relação ao mundo islâmico, considerando que “o maior aliado do
islão é a Arábia Saudita, país que alimenta o cruzadismo que vem desse lado.
Mas o mundo tornou-se tão pequeno que nada se pode pôr à margem”.
E ficou-me este
aviso: A força e o poder de Vladimir Putin vêm-lhe de ele considerar “a Santa
Rússia” como a última barreira contra a islamização da Europa.
2. 4. Devo uma
palavra de especial gratidão a Eduardo Lourenço pelo prefácio luminoso, logo no
título: “Suicidário Ocidente”, seguido do dito célebre de Fernando Pessoa “Não
haver Deus é um Deus também”, com que honrou o meu livro “Deus Ainda Tem
Futuro?” (2014). Ficam aí alguns parágrafos.
“Enquanto Ocidente, o
nosso mundo conhece uma desertificação religiosa sem precedentes e, na
aparência, irremediável. Tal é o diagnóstico de Marcel Gauchet, um dos seus
paradoxais exegetas inconformado com essa nova versão da tão glosada “morte de
Deus”, vivência radical da ausência de sentido para a Vida em si mesma e nós
nela. Distingue-se esta nova situação do canónico “ateísmo” que sob a figura da
negação de Deus era ao mesmo tempo uma figura da certeza, a mais radical de
todas.
... o conteúdo único
daquilo que ainda chamamos “história humana” não explicita uma luta análoga a
uma fábula à Saramago, um desafio mítico entre o Homem e Deus, mas uma luta sem
fim do Homem consigo mesmo como o Outro, com a inconsciente esperança de que o
vencedor dela seja enfim o Deus criador e todo-poderoso que nos forneceu o
modelo da vontade de poderio que é a essência demoníaca da Humanidade.
Questão atrevida e
que na verdade soa a blasfémia (ou soaria, se a formulássemos em terras do
islão) esta, que sabemos grave e urgente como nenhuma outra para ocidentais em
vésperas de descerem a novas catacumbas: Deus ainda tem futuro? Quando aquela,
menos vertiginosa mas não menos apocalíptica, seria: O Homem, a Humanidade,
ainda tem futuro?
... Não tardará muito
que entremos no tempo da hipercomunicação com o mundo à volta convertido numa
espécie de deserto ignorado dos antigos. Foi desta autodesertificação que a
dúvida apenas formulável acerca de Deus pôde nascer. Não esperemos que o Deus
imaginado por nós como sem futuro venha, como o Cristo de um célebre conto de
Eça de Queirós, confirmar-nos que ainda está entre nós. Do silêncio de Deus que
nós mesmos criámos não virá nenhum socorro. É diante dele como Ausência suposta
e Presença agostinianamente mais interior a nós do que nós que somos convocados
para fazer prova de vida. E de vida eterna. A única que nos ajuda a suportar
todas as ausências dos que nesta vida nos foram, à maneira de Dante, reflexos
de uma Luz mais clara do que a do sol e das estrelas.”
3. O Deus de Eduardo
Lourenço era o Deus de Jesus e dos místicos.
in DN 05.12.20
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/05-dez-2020/eduardo-lourenco-e-deus-13103429.html?target=conteudo_fechado
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ADVENTO
Cardeal
Tolentino
SÓ
QUEM TEM A FACULDADE DE SE ABANDONAR AO ABERTO EXPERIMENTA O QUE SEJA A ESPERA.
DE PEQUENAS ESPERAS OS NOSSOS DIAS TRANSBORDAM E, NÃO RARO, PARECE QUE AÍ TUDO
SE ESGOTA
QUE
COISA SÃO AS NUVENS
Não, o confinamento não é apenas uma invenção
desta estação atribulada, e nem sempre é um limite que nos chega imposto de
fora. Se pensarmos mais a fundo na experiência humana que realizamos, não é
difícil nos reconhecermos confinados há muito tempo, blindados por decisão
própria, como se a forma final da nossa existência coincidisse na perfeição com
o exíguo território daquilo que dominamos. E, porém, se alguma coisa nos
distingue no universo é precisamente a impossibilidade de coincidirmos connosco
próprios e de sermos nós a resposta para a interrogação que trazemos. Na
verdade, é sempre na luz da candeia avizinhada por um outro, e pelos outros,
que acedemos à visão do que somos, pois o nosso olhar e as nossas
possibilidades, por si só, são inconclusivos. Mas custa-nos reconhecer isso.
Vida fora, tornamo-nos hábeis em substituir as portas por muros e a preferir as
estalagens ao aberto dos caminhos. Vida fora, conformamo-nos, sabe-se lá
porquê, à ideia de que só podemos contar connosco mesmos, revendo em baixa as
nossas expectativas e removendo da nossa alma a espera. E, contudo, bem mais do
que possamos imaginar, debaixo de todos os artifícios e camuflagens, nós
permanecemos os esperantes. Dependemos do ad-vento, do que está para chegar.
Uma das reflexões contemporâneas mais
incisivas sobre a espera é aquela proposta por Martin Heidegger através da
distinção entre “esperar” e “estar/ser em espera”. O esperar pontual ligase
habitualmente a um objeto, enquanto que a espera autêntica não é espera disto
ou daquilo, mas sim abandono e entrega ao aberto. Só quem tem a faculdade de se
abandonar ao aberto experimenta o que seja a espera. De pequenas esperas os
nossos dias transbordam e, não raro, parece que aí tudo se esgota. Há aquela
parábola terrível que nos é oferecida por Kierkegaard: no presente, a condução
do barco passou para as mãos do cozinheiro e o que vem transmitido ao megafone
do comando já não é a rota, mas o que comeremos amanhã. Da espera de longa
duração, daquela que nos confronta não apenas com as interrogações penúltimas,
mas arrisca tocar as últimas, dessa que se prende com o sentido da vida e com
aquilo que nos salva, aprendemos a proteger-nos. E esse é também o nosso drama.
A liturgia cristã é uma escola e um teatro da
espera. E, em particular, neste tempo até ao Natal — tempo que, não por acaso,
recebe o nome de Advento — aquilo que se treina é precisamente a grande espera.
Há dois elementos chamados a entrar em jogo: a pobreza de coração e a
compreensão de que o dom antecede a procura. Em campo está a pobreza, porque a
verdadeira espera é uma arte da despossessão. Em vez de nos apoderarmos do
tempo, como se fossemos os seus senhores, colocamo-nos à escuta, trabalhando o
esvaziamento, tanto externo como interior. E em campo está uma nova compreensão
do modo como nos articulamos com o dom. Normalmente, colocamos primeiro a
procura e depois o dom, como se fosse um fruto daquela. Ora, o tempo do Advento
opera uma viragem: referindo-se ao dom que o mistério da incarnação de Jesus
representa, mostra como é ele a anteceder e a resgatar toda a procura. Naquela
frase enigmática do profeta Isaías: “Fui buscado por aqueles que não
perguntavam por mim, reveleime àqueles que não me procuravam” (Is 65,1),
percebemos que, de facto, a prioridade pertence ao dom, e que este é o motor de
tudo o resto. Por isso, como escreve o teólogo Ermes Ronchi, o Advento
constitui “uma porta que se abre, um horizonte que se alarga, uma brecha na
muralha que nos cerca, um buraco na rede, uma fissura no teto, um punhado de
luz que a liturgia nos atira à cara. Não para ofuscar, mas para nos acordar”.
É SEMPRE NA LUZ DA CANDEIA AVIZINHADA POR UM
OUTRO, E PELOS OUTROS, QUE ACEDEMOS À VISÃO DO QUE SOMOS, POIS O NOSSO OLHAR E
AS NOSSAS POSSIBILIDADES, POR SI SÓ, SÃO INCONCLUSIVOS
in Expresso, 05.12.20
https://pdf.leitor.expresso.pt/infinity/article_popover_share.aspx?guid=65f110c2-f7e2-46a2-9979-196c9f028ffd
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À PROCURA DA PALAVRA
DOMINGO II DO ADVENTO
Ano B
Pe. Vitor Gonçalves
“Uma voz clama no
deserto:
‘Preparai o caminho
do Senhor,
endireitai as suas
veredas’”
Mc 1, 2
A Voz, o Deserto e o Caminho
Não há Advento sem a voz de João Baptista. E porque
aprendemos a reconhecer o tom e o som das vozes que nos chamam e guiam, por
entre muitas outras que nos desviam, a voz de João acorda-nos e convoca-nos
para a mudança. Ele é coluna de amplificação da Palavra que veio fazer-se
carne, humano e divino para nos salvar. Mas a conversão custa, e nunca está
completamente feita, num processo de avanços e recuos. Quem não conhece
tentação de não escutarmos nenhuma voz que nos convida a mudar, a distracção
com qualquer coisa, o disfarce dos medos de encarar a verdade de Jesus Cristo?
Será este o “sono da mediocridade” de que falava o Papa Francisco aos novos cardeais?
“Sobrevém quando esquecemos o primeiro amor e
avançamos apenas por inércia, prestando atenção somente a viver tranquilos.” E
quase em paralelo leio uma frase de Eduardo Lourenço, o grande pensador que nos
estimulou a pensar, falecido a 1 de dezembro: “Hoje podemos estar uma vida
inteira a ver cinema, televisão ou um ecrã e morrer sem ter entrado na vida.”
Não há Advento sem deserto. Ali, onde somos despojados
de comodidades e seguranças, de mapas e sinais, onde só há céu e terra e é
preciso procurar alguma fonte escondida, é possível escutar melhor Deus. Assim
faz a multidão que deixa a Judeia e Jerusalém para ir ao deserto escutar João
Baptista, lembrando esse lugar da fidelidade primeira; e onde o profeta Oseias,
nos poemas de amor de Deus-esposo lembra a sua decisão: “ao deserto a
conduzirei, para lhe falar ao coração” (Os 2, 16-17). No imenso deserto da
humanidade assolada por esta nefasta pandemia, de que nos fala Deus, senão do
seu amor que nos convida ao essencial? É preciso mudar a nossa relação com o
mundo e o cuidado com a “casa comum”; é preciso mudar os critérios do
imediatismo, do consumismo e da ganância; é preciso mudar as relações entre as
pessoas, que precisamos reconhecer como irmãos. Pudéssemos dizer como Eduardo
Lourenço: “O que mais me surpreende nos outros: a autenticidade. Cada pessoa é
um mundo. Mesmo as pessoas que têm momentos de menos visibilidade e relevo, as
pessoas são um mistério a que nunca daremos a volta.”
Não há Advento sem caminho. Todos os caminhos impõem,
pelo menos, duas dificuldades: o começo e a perseverança. Com melhores ou
piores preparações, mapas ou a sua ausência, hora marcada ou flexível, só ou
acompanhado, o primeiro passo tem um peso inesperado. E se em qualquer caminho
há de tudo, êxitos e retrocessos, dúvidas e interrogações, decisões e provas a
superar, a tentação de desistir vai-se insinuando subtilmente. Os primeiros
cristãos eram conhecidos pelos do “Caminho”. Caminho que é Jesus Cristo e que
fazemos n’Ele e com ele. Em constante desejo de nos encontrarmos com Ele, de
abrir-lhe caminhos no mundo e na Igreja, de fazer dos pobres o centro da nossa
vida. E caminhar não é viver de alma aberta às surpresas de Deus? Que o diga
Eduardo Lourenço: “Tenho vivido deixando-me surpreender.”
in Voz da Verdade 06.12.20
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=9373&cont_=ver2
http://www.facebook.com/nossomosigreja
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