P / INFO: Crónicas & Documento de
trabalho para o Sínodo dos Bispos
HÁ BOAS NOTÍCIAS
Frei
Bento Domingues, O.P.
1. Na última quinta-feira,
a Igreja católica celebrou a festa do Corpo de Deus, feriado nacional. As
origens desta festa estão envolvidas em histórias de muita fantasia. A chamada Lenda
Rigaldina (séc. XIV) é a mais divertida. Estava Santo António a pregar, em
Toulouse, sobre a presença real
de Cristo sob as espécies do pão e do vinho, quando um ateu, chamado Bonillo, o
enfrentou com um desafio: só acreditaria no que acabava de ouvir se a sua mula
se ajoelhasse diante do ostensório eucarístico. Frei António aceitou e ampliou o
desafio. Mandou que deixassem o animal sem comer três dias e, no final, lhe
fosse apresentado um monte de erva e, ao lado, o ostensório.
No fim do terceiro dia, a mula esfomeada foi solta e, passando por um monte
de feno e aveia, foi ajoelhar-se em frente da Custódia. Esta lenda deu origem a
outra: uma freira agostiniana, Juliana de Mont Carnillon, terá conhecido ecos
da pregação do Santo e teve visões de que era o próprio Cristo a manifestar-lhe
o desejo de que o mistério da Eucaristia fosse celebrado com mais solenidade.
Terá revelado esse desejo ao futuro Urbano IV. Entretanto, na cidade de
Bolsena, perto de Orvieto, residência do Papa, aconteceu um espantoso milagre:
um padre, ao celebrar a Eucaristia e ao partir a Hóstia consagrada, viu cair
sobre a toalha gotas de sangue!
O Papa determinou que fossem levados para Orvieto, em grande procissão, os
objectos envolvidos nesse prodígio, o que aconteceu a 19 de Junho de 1264. Terá
sido esta a primeira procissão da festa
Corpus Christi promulgada por Urbano IV.
De vários textos em concurso para a celebração da festa, foi preferido o de
S. Tomás de Aquino. É uma grande peça poética e teológica de que faz parte o Tantum Ergo Sacramentum cantado até aos
nossos dias.
A insistência na chamada presença
real tornou-se um problema, sobretudo a partir do séc. XI, em resposta às
negações do teólogo Berengário de Tours. História longa e complexa. Quando não
se entende que não existe oposição entre presença simbólica e presença real,
todos os equívocos são possíveis.
As narrativas sobre a Eucaristia evocam todas a Quinta-Feira Santa, que só
a partir do séc. IV foi solenizada. São todas festas do Corpo de Deus, do Deus
connosco, do Deus humanado.
O excesso de ritualização, no cristianismo, tende a esquecer o verdadeiro
alcance dos seus símbolos fundadores. É o que passamos a procurar.
2. Este ano, os textos escolhidos para a celebração do Corpo de Deus, são dos
mais antigos e dos mais provocadores para a nossa contemporaneidade, a nível
local e global: a persistência das escandalosas desigualdades sociais e da
fome, cuja erradicação é sempre anunciada para continuar sempre adiada. Que
pode a missa contra isto?
Pelos vistos, é uma questão com a qual S. Paulo, no texto mais antigo sobre
a Eucaristia, se viu confrontado[1].
Observou divisões sociais inaceitáveis na comunidade cristã de Corinto. Alguns
serviam-se da própria reunião eucarística para exibir a sua superioridade
económica e social. Levavam consigo boa comida e boa bebida que não
partilhavam. S. Paulo fica indignado: será que não tendes casas para comer e
beber ou vindes desprezar a Igreja de Deus e envergonhar aqueles que nada têm? Não
esperem o meu louvor.
Vale sempre a pena regressar a um texto que ele próprio recebeu do Senhor e
que, ainda hoje, é norma em todas as celebrações. Quando Jesus diz Isto é o meu corpo, evoca o sentido que
deu a toda a sua vida e que deve ser o sentido da vida dos discípulos, de cada
cristão: gastar suas energias para que todos tenham vida e vida em abundância. Nós,
ao comungarmos, recebemos essa missão. Cada um tem de se examinar sobre o que
pode fazer pelo bem dos mais marginalizados e marginalizadas.
Quando acrescenta: este cálice é a
nova aliança no meu sangue, todas as vezes que o beberdes fazei-o em memória de
mim, Jesus não estava a erguer um monumento à sua memória, como se tivesse
receio de ser esquecido. O que ele procura é que o Evangelho seja continuado,
que o seu percurso, pelo qual foi morto, não seja esquecido. A nova Aliança é o
compromisso de Deus com as populações mais pobres, que não pode ser adulterado. Ao insistir, em memória de mim, é para não esquecermos a vida perigosa em que
Jesus se envolveu: o caminho da fidelidade cristã, ao longo dos séculos, nas
situações mais imprevisíveis.
Quem vai às celebrações eucarísticas sem este compromisso está a iludir-se:
come e bebe a sua própria condenação.
Uma Eucaristia é uma convocatória para alterar o rumo do mundo desumanizado e
responsabilizar as Igrejas: como é possível missa após missa, rito após rito,
continuar tudo na mesma?
O texto do Evangelho escolhido para essa celebração é uma parábola provocatória:
os discípulos imaginam Jesus distraído. Falou e falou muito, mas fez-se tarde e
parecia que Jesus não se apercebia da situação real. O melhor era que desse por
encerrada a sessão e que cada um procurasse onde poderia ir comer. Tentaram
descartar-se. Jesus intima-os: dai-lhes
vós mesmos de comer[2].
Tinham pouco: 5 pães e 2 peixes para cinco mil pessoas? Jesus mostra uma lei
universal. O que existe no mundo ou pode ser produzido, se for bem repartido,
dá para todos e ainda sobra: é o sentido da parábola da multiplicação dos pães
e dos peixes.
Não se pode pensar em partilha dos bens quando está tudo organizado para
que os que têm, tenham cada vez mais e os que não têm fiquem ainda mais longe
da mesa que deveria ser comum, o destino universal dos bens[3]. Como
diz o Papa Francisco, cada vez há menos ricos, menos ricos com a maioria da
fortuna do mundo. E cada vez há mais pobres com menos do mínimo para viver[4].
Quando celebramos a Eucaristia, a grande preocupação não pode ser, apenas,
a de não faltarem hóstias para os fregueses. A pergunta é outra: desta
Eucaristia vai sair gente empenhada em que a ninguém falte o pão, a casa e o
trabalho? Quando Jesus diz isto é o meu
corpo é também a esse corpo social que se refere.
3. Há duas boas notícias sobre a Eucaristia. No documento de trabalho para o
Sínodo da Amazónia, está aberta a discussão sobre a ordenação de homens casados
e a revisão dos ministérios das mulheres na Igreja. Este tabu acabou. Os sinos tocaram na Ribeira Seca e ela floriu. Não
creio que Jesus Cristo estivesse de acordo com a suspensão a divinis, há 40 anos, do padre Martins Junior. Parece que o novo
Bispo também não acreditou nisso.
23. Junho. 2019
[1]
1Cor 11, 16-34
[2]
Lc 9, 11-17
[3]
Discurso aos juízes do continente americano reunidos em congresso no Vaticano.
[4]
Mensagem do Santo Padre Francisco para o
III Dia Mundial dos Pobres (17 de Novembro de 2019).
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Fim da lei do celibato dos padres?
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
1. A Igreja hierárquica, que viveu obcecada com o primado da
moral sexual, é cada vez mais confrontada com os escândalos sexuais no seu
próprio seio. Primeiro, foi a hecatombe da pedofilia. Mais recentemente, são as
"namoradas" de padres que vêm denunciar os abusos de que foram ou são
vítimas.
O Washington Post acaba de investigar o drama das mulheres
que, sem qualquer apoio, foram obrigadas a viver amores clandestinos e a
esconder e a criar sozinhas filhos das suas relações com padres. A Igreja vê-se
agora confrontada com esses dramas de mulheres que sofreram a violência sexual,
emocional e espiritual do clero. Pam Bond, por exemplo, hoje com 63 anos,
contou ao Washington Post que teve em 1986 um filho de um padre franciscano a
quem tinha recorrido pedindo ajuda para o seu casamento. "Assumo a
responsabilidade pelos meus próprios erros, deveria ter sido suficientemente
forte para me não colocar naquela situação", reconhece, mas também afirma
que aquela relação não era plenamente consensual, pois havia uma diferença de
poder entre o padre e ela.
Embora seja difícil estabelecer o número de casos no mundo,
pensa-se que haverá milhares de mulheres nesta situação, vivendo uma relação
sexual abusiva e com filhos mantidos em segredo. Há estudos que concluem que
apenas 40% do clero pratica o celibato. Como já aqui dei conta, o sociólogo
Javier Elzo, da Universidade jesuíta de Deusto, escreveu que 80%, se não mais,
do clero africano, padres e bispos, têm uma vida sexual igual à dos outros
africanos.
Evidentemente, toda esta situação exige reflexão profunda,
incluindo o problema das comunidades cristãs que têm direito à celebração da
Eucaristia e não o veem satisfeito por causa da falta do clero.
2. Hoje, os historiadores sérios não têm dúvidas de que Jesus
foi celibatário. É pura "lenda de romance" pretender que Jesus foi
casado com Maria Madalena, esclarecia ainda recentemente um dos maiores
especialistas em cristianismo primitivo, Antonio Piñero, que não é crente, mas
agnóstico. Mas Jesus não impôs a lei do celibato a ninguém. Mais: teve
discípulos, como São Pedro, que eram casados. São Paulo foi igualmente
celibatário, mas também não invocou essa lei; pelo contrário, pergunta na
Primeira Carta aos Coríntios, 9, 5: "Não temos o direito de levar
connosco, nas viagens, uma mulher cristã, como os restantes Apóstolos, os
irmãos do Senhor e Cefas?" Na Primeira Carta a Timóteo, lê-se: "É
necessário que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, ponderado,
de bons costumes, hospitaleiro, capaz de ensinar, que não seja dado ao vinho,
nem violento, mas condescendente, pacífico, desinteressado, que governe bem a
própria casa, mantendo os filhos submissos, com toda a dignidade. Pois, se
alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará ele da Igreja de
Deus?" E a recomendação é repetida na Carta a Tito, 5-6: "Deixei-te
em Creta, para acabares de organizar o que ainda falta e para colocares
presbíteros (padres) em cada cidade, de acordo com as minhas instruções. Cada
um deles deve ser irrepreensível, marido de uma só mulher, com filhos crentes,
e não acusados de vida leviana ou de insubordinação."
Foi muito tarde que o celibato se foi impondo como lei: no
século XI, com o Papa Gregório VII; no século XII, nos Concílios I e II de
Latrão, em 1123 e 1139, respectivamente; mas só com o Concílio de Trento, no
século XVI, se impôs a toda a Igreja do Ocidente, pois nas Igrejas católicas do
Oriente é diferente.
3. Assim, vê-se claramente que o celibato enquanto lei não é
um dogma. O próprio Papa Francisco já o reconheceu.
Pessoalmente, estou convicto de que será já no Sínodo sobre a
Amazónia, a realizar em Roma em Outubro próximo, que assistiremos, com a
ordenação de homens casados, ao fim da lei do celibato obrigatório para os
padres.
Não sou o único com essa convicção. Há bispos alemães que
alimentam a esperança de que neste Sínodo se operará uma "ruptura" e
que, depois dele, "nada ficará como antes". Quem o diz é o bispo de
Essen, Franz-Josef Overbeck. Também o vice-presidente da Conferência Episcopal
Alemã, Franz-Josef Bode, manifestou a convicção de que o Sínodo trará grandes
mudanças para a Igreja universal, esperando que o celibato para os padres seja
"enriquecido com outras formas sacerdotais de vida", esclarecendo:
"Eu poderia imaginar padres com famílias e trabalhos civis, como os
actuais diáconos permanentes, alguns dos quais são casados e trabalham."
"Devemos reconsiderar a conexão entre o celibato e o sacerdócio",
advogando também o diaconado feminino "como sinal de reconhecimento,
apreço e mudança de estatuto das mulheres na Igreja." Estes "padres
com vocação civil" poderiam "celebrar a Eucaristia e realizar o
correspondente ministério sacerdotal". O bispo Overbeck explicitou o seu
pensamento, declarando que no Sínodo para a Amazónia serão debatidas muitas
questões, como a moral sexual, o celibato obrigatório, o papel das mulheres na
Igreja, a estrutura hierárquica da Igreja com o clericalismo, cada vez mais
criticado como factor determinante na crise dos abusos de menores, sem esquecer
outros temas igualmente fundamentais, como a "imensa exploração" do
meio ambiente, as violações dos direitos humanos dos indígenas, o
"eurocentrismo" da Igreja. Por causa da falta de clero, lembrou que
muitas Igrejas locais na região começam a ser geridas por religiosas e
observou: "O rosto da Igreja local é feminino."
No katholisch.de, reproduzindo o jornal Frankfurter
Rundschau, podem ler-se as seguintes declarações do cardeal Walter Kasper,
presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos
Cristãos e um dos teólogos que o Papa Francisco ouve com mais atenção,
produzidas recentemente: Se precisamente no próximo Sínodo sobre a Amazónia,
"os bispos concordassem em ordenar homens casados, o Papa, na minha
opinião, aceitaria essa posição. O celibato não é um dogma, não é uma prática
inalterável".
Isso não seria nada de extraordinário. De facto, no
catolicismo de rito oriental, continua a ordenação de casados e os padres
anglicanos casados que se convertem são aceites na Igreja católica na condição
de casados. Mais importante: a lei do celibato, como ficou dito, não é um dogma
de fé, mas uma medida disciplinar. O que é essencial é que as comunidades
cristãs possam celebrar a Eucaristia, o que nem sempre acontece, e uma das
causas é a exigência, que não provém do Evangelho, do celibato.
Confirmando o que aí fica, acaba de ser publicado o
Instrumentum Laboris (intrumento de trabalho), que servirá de base aos debates
durante o Sínodo para a Amazónia, que terá lugar no Vaticano, de 6 a 27 de
Outubro próximo, onde se lê: estude-se a possibilidade da ordenação sacerdotal
dos chamados "viri probati", isto é, homens de virtude comprovada,
com maturidade humana e cristã, respeitados e aceites pela sua comunidade,
"mesmo que já tenham uma família constituída e estável." Quanto às
mulheres: "Identifique-se o tipo de ministério oficial que pode ser
conferido à mulher, tendo em conta o papel central que hoje desempenham na
Igreja amazónica."
in DN, 23.06.2019
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
A VASSOURA
EM MOMENTOS DIFERENTES DA NOSSA VIDA, QUANDO NÃO É CLARO O QUE PODEMOS
FAZER OU POR ONDE COMEÇAR, ESTENDAMOS A MÃO A UMA VASSOURA
Uma vez ouvi
a um monge que o modo mais rápido de nos adaptarmos a uma nova situação é pegar
numa vassoura. Ele contava com realismo que, ao longo da vida, tudo lhe custou:
chegar a um mosteiro novo, encetar um novo ciclo, uma estação diferente,
iniciar-se numa ulterior etapa do caminho. Mas que a vassoura (em modo literal
ou figurado), mais do que qualquer outra coisa, foi a facilitadora
indispensável em cada um desses momentos. Fiquei a pensar nisso. É uma
importante aprendizagem a que nos faz preferir a vassoura à cadeira, à cela ou
ao cetro. A vassoura tem um registo humilde, é verdade. E, não raro, desarma
tanto as nossas expectativas e as idealizações de que partimos como as
disposições bem arrumadas do protocolo social. Porém, o conhecimento que ela nos
oferece é imediato, flagrante, concreto, focado no minúsculo, atento aos
detalhes, colado ao espaço da existência e ao seu quotidiano ritmo. Podemos
conhecer de muitas maneiras uma determinada realidade, mas nunca a conheceremos
de forma tão certeira como aquela que nasce do investimento do nosso cuidado.
Cuidar é, no fundo, aquilo que nos permite conhecer. Os planos que vamos
urdindo de um ponto de vista mais teórico ou mais distanciado — como o exige,
por exemplo, uma leitura crítica — têm seguramente a sua relevância e
oportunidade, mas não podemos esquecer que, em si mesmos, são ainda mapas
aproximativos. As ideias valem muito: não valem, contudo, só por si. Precisam
daquela adequação que só a prova da aplicabilidade lhes traz. Contudo, uma
relação mais plena, mais dialógica, mais incisiva tem início quando, num gesto
mínimo como representa aquele de pegar numa vassoura, passamos de espectadores
a atores. Há um saber que nos vem apenas pela entrega voluntária ao serviço.
As ideias
valem muito: não valem, contudo, só por si. Precisam daquela adequação que só a
prova da aplicabilidade lhes traz
Em momentos
diferentes da nossa vida, quando não é claro o que podemos fazer ou por onde
começar, estendamos a mão a uma vassoura. A vassoura vai sujar-nos as mãos e
ensinar-nos, desse modo, uma imensidão de coisas às quais, de outra maneira,
dificilmente acederíamos. O poeta Charles Péguy escreveu, com razão, que quando
nos recusamos a sujar as mãos no cuidado da vida acabamos rapidamente por ficar
sem mãos. É um facto: muitas vezes vivemos sem mãos, perdemos as nossas mãos lá
atrás em alguma etapa do caminho, esquecemo-nos do seu significado, da sua
função, e, por anos e anos, não temos consciência disso. A vassoura — e o que
ela simboliza — realiza também um providencial movimento de resgate em relação
a nós próprios. Na verdade, as mãos que se dão também se descobrem como mãos,
como operadoras do dom, como protagonistas da história. As mãos que se dão
escutam finalmente o seu idioma; compreendem que se cumprem não como afasia,
mas como linguagem. Por isso, a vassoura tem tanta sabedoria a transmitir-nos:
revela que o exercício prático do cuidado (a começar pelo cuidado ínfimo,
elementar) nos permite, ao mesmo tempo, o conhecimento do ponto onde estamos no
mundo e do ponto onde estamos em nós próprios.
Acontece-nos
desistir de pensar na felicidade, porque a associamos, sob condição, a uma
lista longa e desorbitada de fatores. O elenco dos ‘ses’ que vamos somando
torna a felicidade inacessível e isso tem um preço: o de conformar a nossa
visão com essa declaração de impossibilidade. Um passo importante ocorre,
porém, quando temos a coragem de reajustar os nossos motivos de gratidão e de
deslumbramento. Recordo-me de um poema antigo que diz: “Não posso ser mais
feliz./ Vou buscar água ao poço./ E varro as folhas do meu pátio”.
in Semanário
Expresso, 22.06.2019
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO
XII COMUM Ano C
“Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo,
tome a sua cruz todos os dias e siga-Me.”
Lc 9, 23
TODOS
Este é um tempo de festas e de fins de etapas. Finais do ano
escolar, com os exames a confirmar o trabalho de um ano e as notas a premiarem
o esforço. Finais de ano pastoral com todas as festas da catequese, Baptismos e
primeiras comunhões com sabor a tempo pascal. Há um cheirinho a férias (para os
que as têm!), e o mar ou o campo a chamarem por nós. Descanso para uns,
continuidade para outros, vivemos em ciclos, muitas vezes sem pensar mais
fundo, nem questionar a engrenagem de tudo. É preciso ver para onde vamos e com
quem vamos.
O ritmo da liturgia leva-nos a um momento fulcral da vida de
Jesus com os discípulos. Para a etapa seguinte os amigos de Jesus precisam
passar num exame. Saber se estão capazes do nível seguinte, de arriscar o jogo
novo do “quem perde, ganha!”. Duas perguntas apenas, uma mais fácil e outra a
valer maior cotação. A matéria para a primeira resposta estava na ponta da
língua. Tinham ouvido os ditos de muitas pessoas, conheciam a esperança de
Israel, sabiam bem o passado. A resposta à segunda pergunta é que foi mais
difícil: Jesus era mais do que aquilo que se dizia, não tinham palavras para o
descrever. Tinha traços do passado mas era mais futuro, e Pedro arrisca a
resposta que compromete para algo novo. Jesus vai então revelar o seu “bilhete
de identidade”, mesmo que eles não consigam ainda entendê-lo.
A teoria ficou gravada no coração deles: um messias sofredor,
rejeitado, crucificado, morto e ressuscitado? Não estavam preparados para isto.
Então Deus não é Todo-Poderoso, vencedor dos malvados, dominador do universo,
sempre triunfador? E antes que despertassem do choque, Jesus fala a todos (os
discípulos, outros que o ouviam, aos do seu tempo e de todos os tempos, nós
inclusive), sobre o que implica “andar com Ele”, “segui-l’O”. S. Lucas é o
único evangelista a dar importância ao “todos” a quem se dirige Jesus, e a
sublinhar que a cruz é para levar “todos os dias”. Não há viver com Cristo de
diferentes categorias. Ou seguimos ou não seguimos, ou vivemos ou não vivemos.
Sem dúvida que a perfeição e o coração de cada um só Deus pode medir. Não é uma
prova de velocidade para haver um vencedor, mas de resistência para nos
auxiliarmos, e todos chegarmos.
O jogo do “quem perde, ganha” parece estúpido para as nossas
contabilidades. Que ganho é esse que não vê imediatamente, que não se pode
depositar num banco ou publicar numa rede social? O individualismo tem por
prémio a solidão, a vida “selficada”; a vida feita dom multiplica-se, constrói
comunhão. Ultrapassar o “salve-se quem puder” para viver a “salvar todos os que
puder”, é a cruz de todos os dias. Cruz que é vida dada, e não roubada, nem
acumulada, nem guardada. Se “todos” forem mais importantes do que “eu”, ou só
“os meus”, ganhamos verdadeiramente a vida. E, então, não importará menos “para
onde vamos”, pois sabemos “com Quem” vamos?
in Voz da Verdade, 23.06.2019
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SÍNODO DOS BISPOS
ASSEMBLEIA ESPECIAL PARA
A REGIÃO PAN-AMAZÔNICA
AMAZÔNIA
NOVOS CAMINHOS PARA A IGREJA
E PARA UMA ECOLOGIA INTEGRAL
DOCUMENTO
DE TRABALHO
Seguindo a
proposta da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), o documento se estrutura com
base nas três conversões às quais o Papa Francisco nos convida: a conversão
pastoral, à qual nos chama por meio da Exortação Apostólica Evangelii gaudium
(ver-ouvir); a conversão ecológica, por meio da Encíclica Laudato si’, que
orienta o rumo (julgar-agir); e a conversão à sinodalidade eclesial, mediante a
Constituição Apostólica Episcopalis Communio, que estrutura o caminhar juntos
(julgar-agir).
Instrumentum
Laboris é fruto de um longo processo que inclui a redação do Documento
Preparatório para o Sínodo, em junho de 2018, e uma ampla escuta às comunidades
amazônicas. A evangelização na América Latina foi um dom.
Apesar da
conquista militar e política, e para além da ganância e ambição dos
conquistadores, houve muitos missionários que partilharam sua vida para transmitir
o Evangelho.
Frequentemente
o anúncio de Cristo se realizou em conivência com os poderes que exploravam os
recursos e oprimiam as populações.
Hoje em dia,
a Igreja tem a oportunidade histórica de diferenciar-se claramente das novas
potências colonizadoras escutando os povos amazónicos para exercer com
transparência seu papel profético.
Pidamos
ante todo al Espíritu Santo para los padres sinodales
el don de
la escucha, escucha de Dios,
hasta
escuchar con Él el clamor del pueblo, escucha del pueblo,
hasta
respirar en él la voluntad a la que Dios nos llama.
Constitución Apostólica Episcopalis
Communio, Francisco, 2018.
I: A VOZ DA
AMAZÔNIA ..................................5
II: ECOLOGIA
INTEGRAL,
O clamor da
terra e dos pobres .......................15
III: IGREJA
PROFÉTICA NA AMAZÔNIA:
Desafios e
esperança ......................................37
A VOZ DA AMAZÔNIA
O rio não nos separa, nos une,
nos ajuda a conviver entre diferentes
culturas e línguas
1 -
VIDA............................................................................8
2-
TERRITÓRIO ……………………………………………………………………….11
3 – TEMPO
KAIRÓS.............................................................13
4 –
DIÁLOGO………………………………..........................................14
VIDA
“(Hoje se) exige que anunciemos Jesus
Cristo e a Boa Nova do Reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as
estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas e
fomentemos o diálogo intercultural, inter-religioso e ecumênico.”
(DAp, 95)..
O Rio Amazonas
é como uma artéria do continente e do mundo, flui como veias da flora e da
fauna do território, como manancial de seus povos, de suas culturas e de suas
expressões espirituais.
A bacia do
Rio Amazonas e os bosques tropicais que a circundam nutrem os solose regulam,
por meio da reciclagem de precipitação, os ciclos da água, energia e carbono em
nível planetário. O Rio Amazonas joga a cada ano no Oceano Atlântico 15% do
total de água doce do planeta. A Amazônia é essencial para a distribuição das
chuvas em outras regiões remotas da América do Sul e contribui com os grandes
movimentos de ar ao redor do planeta. Mas, segundo alguns especialistas
internacionais, a Amazônia é a segunda área mais vulnerável do planeta em
relação à mudança climática provocada pelos seres humanos.
O território
da Amazônia compreende parte do Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia,
Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa em uma extensão de 7,8 milhões de
quilômetros quadrados. Os bosques amazónicos cobrem 5,3 milhões de quilômetros
quadrados, 40% do bosque tropical global. A Amazônia abriga entre 10 e 15% da
biodiversidade terrestre.
O Bem Viver
A busca dos
povos indígenas amazônicos pela vida em abundância se concretiza no que eles
chamam de Bem Viver. É viver em harmonia consigo mesmo, com a natureza, com os
seres humanos e com o ser supremo. Esta compreensão da vida se caracteriza pela
harmonia de relações entre a água, o território e a natureza, a vida
comunitária e a cultura, Deus e as diversas forças espirituais. Estes povos
falam da vida como um caminho rumo à Terra Sem Males ou em busca do Monte
Santo.
Na Amazônia
se sofre pela violação dos direitos dos povos originários, como o direito ao
território, à autodeterminação, à demarcação dos territórios e à consulta e
consentimento prévios.
A ameaça a
este Bem Viver provém de interesses econômicos e políticos de setores
dominantes de empresas extrativistas, com a permissividade – e muitas vezes a
conivência – dos governos locais e nacionais. Na atualidade, desmatamento, incêndios,
mudanças no uso do solo e contaminação estão levando a Amazônia a um ponto sem
retorno. Aquecimento em torno de 4 graus centígrados e 40% de desmatamento
conduzirão à desertificação da Amazônia, e é preocupante que hoje em dia já
estejamos entre 15 e 20% de desmatamento.
Defender a vida
Vida implica a defesa do território,
de seus recursos ou bens naturais, a cultura dos povos e suas organizações,
seus direitos e a possibilidade de serem escutados.
O Bem Viver implica uma comunhão com
a natureza e uma integração com a história e o futuro. A destruição da Bacia
Pan-Amazônica gera um desequilíbrio do território local e global. Isso afeta a
reprodução da fauna e da flora e a produção, o acesso e a qualidade dos
alimentos.
O cuidado com a vida supõe confrontar
uma visão insaciável do crescimento sem limites, a idolatria do dinheiro, uma
cultura de morte. A defesa da megadiversidade cultural da Amazônia é algo que
não está resolvido no âmbito pastoral.
Somos
parte da natureza.
Somos
água, ar e terra, vida criada por Deus.
A Mãe
Terra tem sangue e está sangrando,
muitas
multinacionais cortaram-lhe as veias.
O território amazônico é um lugar
teológico a partir do qual se vive a fé, uma fonte de revelação de Deus, um
lugar de sabedoria para o planeta, de onde Deus fala. Na Amazônia se manifestam
as carícias do Deus que se encarna na história.
Um olhar contemplativo, atento e
respeitoso para os irmãos e irmãs, e também para a natureza, a irmã
árvore, a irmã flor, as irmãs aves, os irmãos peixes e até para as irmãs
pequenas como as formigas, as larvas, os fungos ou os insetos permite às
comunidades amazônicas descobrir como tudo está conectado, valorizar cada
criatura e ver a beleza de Deus revelando-se em todas elas.
O Papa Francisco, em Porto Maldonado,
nos convida a defender esta região ameaçada, para preservá-la e restaurá-la
para o bem de todos; ele nos dá esperança em nossas capacidades de construir o
bem comum e a Casa Comum.
A Amazônia também é lugar de dor e
violência. Há destruição ambiental, enfermidades e poluição de rios e terras,
derrubada e queimada de árvores, perda massiva da biodiversidade, morte de
espécies; tudo isso constitui uma crua realidade que nos interpela a todos e
todas. O grito de dor da Amazônia é um eco do grito do povo escravizado no
Egito e a quem Deus não abandona.
Este
território não é nosso, não é meu, não é seu,
é da
geração que vem depois.
Maritza
Naforo, povo Huitoto
NOTA: Infelizmente não posso formatar
as 60 páginas do documento, pq quando faço o copy paste este fica
completamente desformatado, pelo que o envio em anexo.
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